Desafios da assistência pré-natal na Guiné
Gerar filhos é considerado uma dádiva em muitas culturas. Na Guiné, esta bênção vem acompanhada de muitos desafios. Alguns deles começam antes mesmo da gravidez, com a pressão familiar sobre a mulher recém-casada, que deve presentear o marido com filhos. Muitos, de preferência.
Socialmente, as mulheres são preparadas para essa tarefa e a família estendida se encarrega de ajudar na educação e cuidados com a crianças. É assim que as gerações são formadas e perpetuam os valores de nossas etnias. Faz parte da consolidação de uma nação, acreditam os mais antigos. Mas gerar filhos também tem custos que, nem sempre, são levados em conta. Se, em tempos anteriores, tudo acontecia de maneira mais natural e na intimidade das famílias, hoje em dia assistimos a uma mudança quase que radical neste contexto, envolvendo estruturas públicas. Em muitos casos, infelizmente, se deparando com a falta de estrutura pública e gratuita.
A assistência pré-natal é um procedimento relativamente novo para nós. Antes, as mulheres engravidavam e recorriam às outras mulheres da família para obterem informações e cuidados. Os bebes nasciam pelas mãos de parteiras experientes, no aconchego do lar. Quase não se ouvia falar de doenças, nem de problemas relacionados à gestação. Isto não significa que as crianças e as mães sempre sobreviviam, mas até mesmo esses casos eram tidos como fatalidades que fazem parte da vida. O conhecimento e o aprimoramento nesta área da saúde fizeram grande diferença nas estatísticas e também no modo de entender a importância do acompanhamento e monitoramento das gestantes. Claro, isto teve repercussões tanto políticas quanto culturais.
Do ponto de vista cultural, mudar o paradigma da mulher sobre a questão talvez seja uma das tarefas mais árduas. Na Guiné, por exemplo, ainda hoje a mulher não anuncia sua gravidez publicamente. Ela só é constatada quando o ventre já está grande o suficiente para ser ignorado. Imagine então, como é complexo fazer uma boa anamnese com uma gestante, tentando obter informações sobre sua saúde para checar possíveis intercorrências com a gestação e consequências para o bebe. E em tempos de HIV, isto se torna ainda mais sensível.
No que diz respeito às implicações políticas, foram criados alguns protocolos para o acompanhamento que incluem consultas médicas e exames. O programa é oficialmente subsidiado pelo Estado, mas, na prática, as mulheres pagam por boa parte dos procedimentos: aquisição da caderneta de gestante, consultas médicas, alguns exames e até mesmo o “kit cesariana” quando necessário. Ela se livra apenas de pagar a hospitalização. O acompanhamento do recém-nascido (consultas e vacinas) também é despesa que cabe à família. E a obrigatoriedade do teste que detecta o HIV não existe, embora tenha passado a fazer parte do protocolo do acompanhamento gestacional de uns anos para cá, gratuitamente.
Diante dessas variáveis, é de se esperar que o engajamento das gestantes no programa seja comprometido. Novamente, em tempos de HIV, isto representa uma ameaça para a prevenção da transmissão vertical do vírus. Há certa resistência quando se ouve falar do teste do HIV e nem todas as gestantes aceitam realizá-lo. Nestes casos, na hora do parto, é novamente oferecido o teste rápido. Mas isto só é possível quando a mulher recorre ao centro de saúde ou à maternidade para ganhar o bebe. O mais comum ainda é o parto em casa.
Atualmente, alguns centros de saúde estabeleceram parceria com ONGs internacionais que oferecem programas de planejamento familiar e também de tratamento para pessoas com HIV. Isto facilitou, em muito, o acesso das gestantes ao monitoramento de qualidade, de forma praticamente gratuita. Nesses centros, a mulheres pagam apenas uma taxa mínima pela caderneta de gestante (em torno de 25 centavos de dólar, contra 10 dólares em centros não conveniados), recebendo todo o restante (exames e consultas) sem nenhum custo. E, as mulheres que aceitam fazer o teste do HIV e têm resultado positivo, são imediatamente colocadas em tratamento antirretroviral 100% subsidiado. Quando a criança nasce, também é feito o teste para determinar seu status sorológico e proceder com o tratamento, sempre que o resultado for positivo. Todas as crianças de mulheres inscritas no programa dos centros conveniados são gratuitamente acompanhadas até terem alta.
Graças aos projetos de algumas ONGs, estamos conseguindo reduzir a transmissão vertical quase que completamente (entre as participantes dos projetos já consideramos totalmente eliminado o risco, com uma taxa de 99%). Cada vez mais, as mulheres grávidas que chegam nas unidades de saúde conveniadas aceitam realizar o teste rápido que detecta o HIV e, com isso, começam o tratamento imediatamente, diminuindo significativamente o risco para a criança. Entretanto, essa é uma realidade ainda a ser consolidada, pois as mães soropositivas, quando se tratam em centros não conveniados omitem a informação, comprometendo o monitoramento da gestação e o acompanhamento da criança posteriormente.
Mesmo com todo o trabalho de comunicação que fazemos em torno da questão do HIV, visando esclarecer a população sobre os riscos, formas de prevenção e de tratamento, a Guiné continua sofrendo com a estigmatização e discriminação contra as pessoas que vivem com o vírus. É triste constatar que a variável sociocultural interfere negativamente neste cenário.
* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título: “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixado gratuitamente em PDF e/ou E-Pub.