Dear white singer, Mallu Magalhães: da sua “(des) culpa”
Antes de partir direto ao papo reto que lhe cabe, quero dizer que esse texto não é somente para você e sim, para todas as pessoas brancas que já protagonizaram racismo e para as outras que ainda não, mas que tem chances reais de protagonizar, considerando que a sociedade brasileira é nele estruturada. O racismo aqui no Brasil é o normal, a lei, a norma e a regra, por isso qualquer pessoas dessa sociedade pode reproduzir, inclusive até aquelas cuja a possibilidade de serem racistas não seja visível ao horizonte que meus olhos possam alcançar, como por exemplo, pessoas negras e demais grupos étnicos-raciais vítimas desse crime. Pois, o racismo é uma estrutura de poder que é estrutural e estruturante e suas vítimas não estão nesse lugar.
Quero também me apresentar para que todos saibam do lugar de onde me coloco. Quem vos fala sou eu, Antonilde Rosa, uma mulher negra, cantora, graduada em Bacharelado em Canto pela Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e mestranda interina em musicologia dessa mesma instituição – interina por fui também aprovada no mestrado da Escola de Música da UFRJ e como as aulas começam só em agosto, estou aqui na UFG adiantando o mestrado.
Sou uma cantora muito apaixonada pelo minha profissão, mas com o tempo – assim que comecei ter mobilidade e transitar em espaços de hegemonias e conviver com pessoas que estão no mesmo lugar que você, Mallu Magalhães, fui perdendo a motivação; o tesão pela arte de cantar. Sabe por que my Dear? Se não sabe vou te dizer: foi por esse racismo expresso na sua música e pela pobreza humana que reina no campo. E a humanidade que estou tratando aqui, não é essa humanidade branca. O Ideal de Ego como diz a Neusa Santos e sim, a humanidade de fato que é inerente a todo e qualquer ser humano, aquela que reconhece a diferença e não subjuga ninguém devido a tudo aquilo que constitui um indivíduo; uma humanidade que não atravessa você que é o Ideal de Ego.
Agora que já me apresentei, vou entrar no papo reto. Li a sua nota de resposta e lembrei muito de todas as vezes quando era criança e magoava as pessoas e ia pedir desculpas, a minha avó materna me dizia: “olha, desculpa não passa a dor, o que você precisa saber é que não pode fazer isso novamente”. Esse insight me fez escrever esse texto- que não é o primeiro sobre você e demais situações de racismo.
Mallu Magalhães, você afirma na sua carta: “fico muito triste em saber que o clipe da música ‘Você não presta’ possa ter ofendido alguém. É muito decepcionante para mim que isso tenha acontecido. Gostaria de pedir desculpas a essas pessoas”. Quero te dizer que a sua música não nos causou uma ofensa qualquer, ela nos violenta por causa do RACISMO – que é crime e, essas pessoas agredidas pertencem a um grupo específico. Essas pessoas pertencem ao grupo que orgulhosamente se autoafirma “negro”. Diante dessa breve localização, fico muito curiosa em saber porque o termo RACISMO e PESSOAS NEGRAS não aparecem em sua nota de desculpa. Você está pedindo desculpa para quem mesmo? Penso que talvez seja para massagear o ego das pessoas racistas que se sentiram ofendidas não diretamente, mas sim pela denúncia que pessoas negras fizeram do racismo de sua obra que não atravessa só você mas todas as pessoas que te defenderam.
Então, você segue afirmando: “meu trabalho e minha mensagem têm sempre finalidade e ideais construtivos, nunca, de maneira nenhuma, destrutivos ou agressivos”. O que infiro aqui é uma prepotência e certeza de quem pode se achar no direito de nos impor suas concepções de mundo universal – branco, sem pelo menos se perguntar se o que você chama de construtivo, destrutivo e agressivo, tem o mesmo significado para pessoas que não estão nessa sua condição de humanidade. O seu clipe em questionamento é o exemplo disso, pois, se estivesse alguma preocupação de saber se há outras formas de concepções, saberes e de mundo – pois, a maioria das pessoas não vivem nesse seu mundo cor-de-rosa; e que os corpos que você animaliza, falam; são de seres humanos iguais a você, mesmo que estes não gozem dos privilégios que você. Se de fato a sua intenção era fazer algo positivo, deveria no mínimo consultar o grupo que sua música agride, e saber das pessoas negras a forma como elas queriam ser expostas e não vir nos impor suas regras; seu racismo. Se você afirma que está “triste” e não quer ofender ninguém, então nos responda uma pergunta: por que o clipe ainda não foi excluído de todas as mídias e você continua propagando o racismo?
E você continua: “a arte é um território muito aberto e passível de diferentes interpretações e, por mais que tentemos expressar com precisão uma ideia, acontece de alguns significados, às vezes, fugirem do nosso controle”. A arte fora do contexto social não faz sentido nem um; não existe! Ela pode ser esse território muito aberto só em sentido nato e fora da sociedade, mas, a partir do momento que ela se transforma em uma “obra de arte” concebida por um ser social que é o artistas criador, não há mais essa demasiada licença poética pois, além das normas reguladora da sociedade, uma obra de arte já não é puramente algo abstrato e neutro, uma vez que lhe são atribuídos significados e ideologia do artista que se expressa pelo discurso. O sentido de discurso que me refiro aqui é o de Michel Foucault que segundo ele: o discurso não é só o que se fala e sim tudo aquilo expresso e inclusive o não dito; não é possível se falar nada fora do discurso. O discurso é um instrumento de controle e só algumas pessoas são autorizadas e o seu, na sua música, parte do lugar de privilégio, do grupo que detém o poder.
A sua nota me faz dialogar também com o Michel Foucault quando ele fala sobre o “Autor”: Entendido o autor, claro, não como o indivíduo que fala, o indivíduo que pronunciou ou escreveu um texto, mas como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas significações, como lastro da sua coerência. Na sua nota, você se porta dentro desse ideal de autor/a. Nela você é a autora autorizada a falar, pois, enquanto nós pessoas negras somos absurdamente agredidos e desqualificados por denunciarmos o racismo expresso em sua música, você agora é aclamada com a publicação de uma nota de pedido de desculpa tão racista quanto a sua música. Ou seja, as suas significações são coerentes com o racismo que lhe convém. e matém seus privilégios.
Continua você: “sei que o racismo ainda é, infelizmente, um problema estrutural e muito presente. Eu também o vejo, o rejeito e o combato”. Olha, se você ver o racismo, certamente não é através da mesma lente que nós pessoas negras vemos, quando você faz uma afirmação dessa significa que ver não é o mesmo que enxergar. Não tente colocar o meu olhar de quem sofre racismo, no mesmo lugar de agressora – racista. Isso é desonesto; um infame! Queria saber o que você entende por “rejeito e combato”, pois, o que vejo tanto na sua música e na sua “nota de desculpa” é o contrário. Não diminua a dor de quem é brutalmente ferida/o pelo racismo desde o momento de seu nascimento até a publicação de sua nota, com a “tristeza” de uma racista que faz questão de se manter nessa condição, pois, o seu choro de crocodilo gorinha passa, já as nossas feridas, nunca deixarão de sangrar enquanto houver racistas como você.
A sua carta afirma: “li cada uma das críticas, dos posts e comentários, e o debate me fez refletir muito sobre o tema. Entendo as interpretações que derivaram do clipe, mas gostaria de deixar claras minhas intenções”. Te garanto que nós pessoas negras não temos dúvidas nem uma de suas intenções! Por mais que você tente com esse seu chororô, subestimar nossas inteligências, vale ressaltar que ao contrários de nós, quem está imersa no estado de alienação, arrogância e prepotência, é você.
Você nos deixa mais perplexa ainda quando diz: “a ideia era ter um clipe com excelentes dançarinos que despertassem nas pessoas a vontade de dançar, de se expressar. Foram convidados pela produtora e pelo diretor os bailarinos Bruno Cadinha, Aires d´Alva, Filipa Amaro, Xenos Palma, Stella Carvalho e Manuela Cabitango. Com a última, inclusive, tive a alegria de fazer aulas para me preparar para o vídeo”. Como assim, my dear? Na sua entrevista antes de denunciarmos, você disse: “A escolha dessa música como primeiro single foi por uma necessidade e vontade de quebrar o vidro, do meu trabalho, da minha carreira e da minha imagem… colocar pra fora uma energia de atitude, uma onda tão urbana quanto selvagem”. Por que o argumento é outro agora? E outra pergunta: o que te faz intuir que dançarinos negros só são excelentes dançarinos e que só são capazes de despertar nas pessoas a vontade de dançar, de se expressar, se eles forem expostos da forma racista como em seu clipe?
E quando pensei que você já tinha se superado, aí o que você nos joga? O TOKEN néh? (poderia explicar o conceito, mas, não tenho obrigação de ser didática). Porque você quando fala dos dançarinos pontua: Com a última – Manuela Cabitango, inclusive, tive a alegria de fazer aulas para me preparar para o vídeo”. Aí te pergunto novamente: desde quando o fato de você fazer aula de dança com uma dançarina negra te faz menos racista? Por favor, Mallu, seja “menas” e nos poupe, porque passar vergonha alheia é chato demais e também porque isso já não cola mais! Você vive onde? Em um castelo medieval de Portugal?
“É realmente uma tristeza enorme ter decepcionado algumas pessoas, mas ao mesmo tempo agradeço a todos por terem se expressado. E reitero o meu pedido de desculpa. É uma oportunidade de aprender”. Acho uma irresponsabilidade depois de ter gerado toda essa polêmica, permitido tanta manifestação de racismo e agressões, você vir agradecer a todos por terem se manifestado. Isso só me faz crer que essa sua nota é somente um jogo de marketing, como é de costume fazer o assessor de comunicação de todo e qualquer artista quando caga na pista.
É sério mesmo, Mallu, que você leu todos os comentários como diz em sua nota racista? Olha Mallu e qualquer pessoa racista, nós não queremos desculpas, pois como dizia a minha avó: desculpa não passa a dor e muito menos cicatriza as feridas do racismo. O que queremos, é que vocês assumam suas culpas; suas condições de racistas. Não lutamos por sua caridade, a nossa luta é por um mundo emancipatório sem pessoas como vocês. Por um mundo de cidadania, para que todos sejam reconhecidos na sua diferença e tenham direito pelo menos de viver. Se vocês não sabem, esse racismo que propagam está causando o extermínio da juventude negra e a população indígena. E feminicídio de mulheres negras, principalmente pelas instituições do próprio Estado, sendo esse o que tem direito de garantir a vida de todxs. Por isso, não precisamos do seu penar, Mallu Magalhães, e sim que você mude, saia desse lugar de resistência e assuma a sua responsabilidade porque nós que ainda estamos vivos, não queremos ser mortos, só porque somos negrxs.
E você finaliza: “espero que, após este esclarecimento, seja aliviado deste espaço de conversa qualquer sentimento de ofensa ou injustiça, ficando os fundamentos nos quais tanto acredito: a dança, a arte e o convite à música”. Esperar que com essa nota racista e que você se recusou a todo momento colocar a palavra negra/o – o grupo que sua música violenta duplamente e racismo; quer que te desculpamos quando você nos ignora e nega a nossa existência? Sobre o conteúdo da sua “nota de desculpa”, o que vejo nela é o mesmo apelo vazio; jogar palavras ao vento de mina branca racista que quando é publicamente denunciada, faz uma nota de consolo como argumento de fuga para tirar o seu da reta e não assumir a responsabilidade que lhe cabe. Essa nota não é mais que uma manifestação de resistência para que permaneça em sua zona de conforto, nessa condição de racista, que não que mais ser incomodada por um grupo que nem existe para você. O que a sua nota comprova é a expressão de uma narrativa de relato de experiência que não passa pela alteridade. É simplesmente uma falta de empatia.
Você assina sua carta assim:
MALLU
E eu, a minha:
ANTONILDE ROSA
Referências
Michel Foucault: A ordem do discurso
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro. Ed. Graal LTDA, v. 2, 1990