Afirmar que as mulheres do meu país deixam de sonhar porque são criadas para serem submissas é um grande equívoco. Isto seria o mesmo que condená-las a permanecerem anônimas em suas famílias. E, de fato, a mulher tem um papel fundamental no desenvolvimento da nossa sociedade, mesmo que ela não seja devidamente valorizada. As africanas são conhecidas pela tradição de formarem grandes famílias e se dedicarem aos cuidados do lar quase que exclusivamente. O que poucas pessoas divulgam é que elas são, também, excelentes negociadoras e comerciantes.

Na Guiné, por exemplo, o número de mulheres nos mercados abertos é massivo. Elas praticamente dominam o espaço e acabaram tornando este nicho em uma fonte importante de renda para oferecer aos filhos melhores condições de vida. É com os recursos provenientes desta atividade que elas conseguem garantir o estudo das crianças, pagando desde a mensalidade até o uniforme e o material escolar. É cada vez mais comum encontrar casos em que a mulher seja a principal responsável pela educação formal dos filhos, mesmo quando o marido também trabalha, pois o sonho de ver os filhos estudando nem sempre é endossado pelo pai. Muitos homens preferem que seus filhos comecem a trabalhar mais cedo, ao invés de avançar nos estudos.

O trabalho delas é exaustivo. Começam cedo, organizando os insumos em grandes bacias e sacolas. Chegam aos pontos de feira livre carregando, geralmente, o caçula da família nas costas e os produtos na cabeça. Deixam os mais crescidos em casa, sob os cuidados de alguém da família estendida ou da vizinhança, e enviam os demais para a escola. Não regressam até que as vendas tenham sido substanciais o suficiente para suprir a necessidade do dia. E não reclamam de nada, nem do peso das bacias ou do cansaço do corpo, nem do calor e da poeira ou da chuva que, muitas vezes, atrapalha os negócios.

Nas feiras livres ou no mercado de peixes do porto, são elas que asseguram o murmurinho e também o colorido das ruas. Não somente pela variedade de legumes, cestos, bacias e outros itens, mas também pelas estampas de suas roupas e turbantes. Trajadas, na maioria das vezes, com tecidos simples, mas sempre dispostas a marcar presença com seus gritos, anunciando os produtos em uma competição acirrada para ganhar a clientela. Invariavelmente, as mulheres se agilizam para defender a batalha do dia.

Foto: Fábio Biolchini

E isto não acontece apenas nos mercados. Na vida cotidiana, assistimos o ir e vir das mulheres, buscando gerenciar tudo o que se passa na casa delas com a mesma dedicação com que procuram cuidar das demandas sociais das famílias em seu entorno. Há, podemos dizer, uma rede de solidariedade sendo tecida à várias mãos. Umas ajudam as outras. Umas ensinam as outras. Umas defendem as outras. Mas, claro, ainda há casos de famílias poligâmicas que vivem em desarmonia porque as mulheres competem entre si pela atenção e recursos do marido. O combate interno acaba se tornando um entrave na educação dos filhos, em especial para as meninas que crescem com uma referência distorcida sobre o valor e a independência da mulher. Felizmente, cada vez mais, as mulheres estão buscando garantir sua autonomia, mesmo em casamentos poligâmicos. Se antes as co-esposas precisavam compartilhar a casa, além do marido, hoje elas procuram um lugar próprio, usando os recursos do seu trabalho para assegurar a privacidade da sua família.

Nos anos 60, um grupo de mulheres oficiais do exército e da polícia civil formou uma banda inusitada, “Les Amazones de Guinée”, justamente com o objetivo de ressaltar as questões femininas e promover novos paradigmas para a nossa sociedade. Rapidamente elas ganharam notoriedade na África do Oeste, principalmente por cantarem em língua local, em oposição à forte influência da música francesa na época da colonização. Em suas músicas, elas denunciavam a desigualdade de gênero e traziam o retrato da realidade: as mulheres têm duas mãos, mas se viram como se tivessem mil braços. Até hoje são consideradas símbolo da emancipação feminina, motivando as mulheres a refletirem sobre seu papel social e a reverem sua posição frente a educação dos filhos.

Tornaram-se um ícone em nosso país porque estimulavam uma nova perspectiva sobre a força da mulher, mas também por questionarem aspectos culturais ligados à vaidade feminina. Apesar da miséria e de todas as desigualdades que sofremos, há no nosso cotidiano uma regra cultural da qual nenhuma de nós escapa: a mulher deve se embelezar. Na prática, isso movimenta um rico comércio de ateliês de costura e salões de cabeleireiras, principalmente porque, em nosso país, os domingos são reservados para as festas de casamento e batizado e, a cada evento, as mulheres se apresentam com novos trajes e penteados ou perucas. Por outro lado, vale enfatizar que uma boa parte desse negócio também é dominado por mulheres.

Na época da minha mãe, as mulheres tinham que assumir todo o serviço doméstico, inclusive da casa dos sogros, logo que se casavam. Os homens não faziam absolutamente nada. Com o tempo, fomos ganhando força e compreendendo que os homens não podem fazer tudo por nós. Aprendemos a abrir novos caminhos para conquistar autonomia, progredindo nos estudos, no comércio, no mundo do trabalho em geral. Isto se repercutiu, até mesmo, no número de divórcio. Antes, as mulheres não ousavam pedir a separação e agora, conhecendo mais seus direitos e promovendo sua independência financeira através do seu trabalho, elas não se submetem mais facilmente às imposições masculinas.

* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título: “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixado gratuitamente em PDF ou E-Pub.

 

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  • Maimouna Diallo

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