A transfobia na linguagem
Mulher trans/travesti, Lana de Holanda estreia a sua coluna com uma análise sobre as discussões a respeito da linguagem transinclusiva.
Desde que recebi o convite do Portal Catarinas para ocupar este espaço, para me tornar uma colunista, eu estava numa mistura de muita felicidade e muita paralisia. Não sabia sobre o quê escrever. Geralmente eu tenho muito a falar, porém a síndrome da impostora tomou conta de mim, mais uma vez. Futuramente pretendo tratar com mais profundidade sobre isso, mas hoje quero falar sobre o que deu o gatilho derradeiro para me inspirar a finalmente ocupar este espaço com palavras, com minha escrita.
No final da semana passada, a filósofa Djamila Ribeiro escreveu um texto transfóbico na Folha de São Paulo. Desculpem se não uso meias palavras, mas o texto era transfóbico, mesmo que talvez essa não tenha sido a intenção da autora. Quando estudamos as estruturas da nossa sociedade (racismo, colonialismo, patriarcado, etc), estruturas essas responsáveis pela manutenção e acirramento do capitalismo, entendemos o quanto todas e todos nós estamos sujeitas a reproduzir violências e opressões, mesmo que sem intenção.
Muito já se falou, nas redes sociais e em outros espaços de discussão, sobre o texto de Djamila. Já se apontou sobre como ele parecia um recorte de várias outras falas já feitas contra pessoas trans, em outros lugares do mundo. Já se falou sobre como ela citou outras autoras negras que, pasmem, em lugar nenhum corroboram publicamente com o posicionamento dela. Já se falou sobre a delicadeza (para dizer o mínimo) de uma autora consagrada ter espaço no maior jornal do país para atacar, através da linguagem, um grupo tão marginalizado no Brasil. Um grupo que nunca teve o mesmo espaço que ela, nem para ter direito de resposta.
Mas eu quero falar aqui, brevemente, sobre como a linguagem, utilizada por Djamila e tantas outras mulheres que se aproximam, de alguma forma, do feminismo radical, acaba se tornando uma arma que alimenta a transfobia. Djamila se mostrou incomodada com o termo “pessoas que menstruam”, ignorando que homens trans existem e que, pasmem, eles podem menstruar. Pessoas não-binárias também existem e, pasmem, muitas delas também podem menstruar. Ao travar uma batalha contra a linguagem inclusiva, insistindo na categoria “mulher” mesmo em assuntos de saúde, que afetam não apenas as mulheres, Djamila não consegue se colocar minimamente no lugar de alguém que não consegue preencher uma ficha de atendimento no SUS. Ou no lugar de alguém que tem qualquer procedimento recusado pelo plano de saúde.
O incômodo de algumas pessoas, por mais legítimo que possa parecer, não pode estar acima do debate sobre políticas públicas, e do direito à saúde, de outras. Ao fim, todas são isso: pessoas. Mas algumas estão lutando para serem tratadas como tal, enquanto outras se sentem ofendidas por assim serem referenciadas em momentos específicos.
Enquanto Djamila se sente ofendida pela linguagem inclusiva, outras pessoas estão literalmente padecendo – física e psicologicamente – pela imposição hegemônica e histórica da linguagem exclusiva, que não consegue enxergar o mundo para além do binarismo de gênero.
Outro ponto interessante é que Djamila se recusa, ao menos no tal texto, a se afirmar uma “mulher cis”. Enquanto repete o termo “trans” algumas vezes, ela não usa “cis” nenhuma. É um recurso linguístico muito interessante, também usado repetidamente por quem se aproxima do feminismo radical. Ao não usar o “cis”, supõe-se que o “trans” seja o anormal, o errado, o estranho, aquele que precisa ser apontado e nomeado. Enquanto o “cis”, suprimido, vira sinônimo de normalidade. É como uma pessoa heterossexual fazendo críticas aos gays e lésbicas, porém sem jamais reconhecer o seu lugar de hétero. O especificado é aquele que foge da curva, enquanto o padrão é reafirmado como o único possível e, portanto, aceitável.
A linguagem é sempre usada para atacar – seja através da ausência de políticas públicas, seja através da construção de subjetividades e perpetuação de preconceitos – minorias sociais que lutam por direitos. A linguagem foi o pilar de sustentação do imaginário coletivo em momentos de maior violência contra negros, contra judeus, contra mulheres. É ela, a linguagem, que hoje é terrivelmente usada para atacar LGBTs e, principalmente, a população trans. O ódio à linguagem inclusiva (presente também na esquerda e em espaços progressistas) anda muito próximo das fake news sobre “ideologia de gênero” (alimentadas pela extrema-direita).
Porém, se a linguagem é uma ferramenta de opressão, ela é também a nossa tábua de salvação. É através dela que nós pautamos os nossos direitos, é através dela que nós lembramos os outros sobre a nossa ameaçada – e aparentemente incômoda – existência.
E é com a linguagem, na sua forma escrita, que eu vou ocupar esse espaço aqui em Catarinas. Pra conversar com vocês, uma vez ao mês, sobre os desafios que temos pela frente e também sobre as esperanças de que iremos, juntas, fazerem se tornar reais.