Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong: a crítica de Hwang Bo-reum à cultura do trabalho
Um dos principais títulos da literatura de conforto, “Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong” conquistou leitores pelo mundo ao abordar questões sociais com leveza e profundidade.
Uma mulher em seus 30 anos que decide abandonar o trabalho em uma grande empresa para investir em um sonho: trabalhar com livros. Esse poderia ser apenas um resumo da obra Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, mas é também a história de Hwang Bo-reum, autora que, com essa obra, vendeu mais de 250 mil cópias na Coreia do Sul em apenas um ano. O livro já foi traduzido para mais de vinte idiomas, conquistando público ao redor do mundo.
Contestando a cultura do trabalho e o papel da mulher na sociedade coreana, o livro se tornou um dos principais títulos na chamada “literatura de conforto”, encabeçada pela literatura asiática e que tem como objetivo trazer alento às pessoas. No entanto, Bem-vindos, vai além dessa temática e traz questões como a dificuldade em contornar expectativas sociais, em se encaixar, a toxicidade em ambientes de trabalho e o senso de comunidade, temas vivenciados pela própria autora.
O caminho até a publicação, porém, não foi tão simples. Primeiro trabalho de Bo-reum, o livro veio da vontade de fazer algo que realmente gostasse. Após pedir demissão de seu emprego como programadora em uma multinacional, ela passou a se dedicar integralmente à escrita. “Diziam que talvez esse fosse o melhor caminho para mim e que, se eu me demitisse, não conseguiria ter uma vida melhor”, conta.
Por meio de Yeongju, a protagonista da obra, acompanhamos mais do que a realização de um sonho, mas os obstáculos enfrentados por alguém que decide agir à margem do que é esperado por uma mulher em seus 30 anos e todas as dificuldades de recomeçar não apenas profissionalmente, mas em diferentes campos da vida.
Em entrevista ao Catarinas, Bo-reum reflete sobre suas vivências, questões sociais e seus próximos passos na literatura. Confira.
Assim como Yeongju, você passou por uma transição de carreira. Como foi esse momento na sua vida? Quanto da sua própria experiência você diria que transmitiu às páginas do livro?
Consegui um emprego na minha área de formação, mas acabei pedindo demissão da empresa, porque não me identificava com o trabalho lá. Quando me demiti, percebi que, até aquele momento, eu nunca tinha feito o que queria. Por isso, decidi que, dali em diante, queria fazer o que realmente desejava: ser escritora. E eu consegui. Claro, ouvi muitos comentários das pessoas ao meu redor. Diziam que talvez esse fosse o melhor caminho para mim e que, se eu me demitisse, não conseguiria ter uma vida melhor. No entanto, sair do meu emprego não fez minha vida piorar; eu só estava trilhando um caminho diferente. Nesse sentido, acho que minha experiência pessoal influenciou a mudança de carreira de Yeongju.
Li em outra entrevista que Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong não foi o primeiro romance que você escreveu, mas foi o primeiro a ser publicado. Como foi essa trajetória e como tem sido a sua experiência ao ver a sua obra fazendo tanto sucesso em mais e mais países? Você se sente pressionada de alguma forma para publicar um novo romance?
“Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong” foi o primeiro romance que escrevi e, também, o primeiro a ser publicado. Quando eu o escrevi em 2018, a ideia não era publicá-lo, então pude escrever livremente a história que eu gostaria de ler. Três anos depois, submeti o romance a um concurso e acabei ganhando, o que me permitiu publicá-lo como e-book. Ele foi tão bem recebido pelo público que ganhou versão física na Coreia. Eu já estava me sentindo bastante realizada com a publicação em e-book, então ter visto o livro ganhar versão física superou qualquer expectativa minha. Da mesma forma, é simplesmente incrível e gratificante ver o livro sendo publicado em outros países e, para minha surpresa, recebendo tanto carinho. E, sim, sinto uma certa pressão para publicar um novo romance, por isso mesmo hesitei em voltar a escrever. Mas tenho lidado com ela e já comecei a escrever meu próximo romance!
Em certo ponto, o livro fala sobre como acabamos sendo definidos pelo nosso trabalho e como isso pode nos fazer mal, ao ponto de não enxergarmos valor em nós mesmos para além desse aspecto da vida. Como você enxerga essa questão e o que te motivou a abordar esse assunto no livro?
Para muitas pessoas na Coreia, o trabalho frequentemente fala mais alto que a vida. Trabalhamos para viver, mas muitas vezes sentimos que estamos vivendo para trabalhar. Por isso, acredito que, às vezes, as pessoas deveriam parar um minuto e refletir não só sobre a relação que têm com o trabalho, mas sobre a ideia de “trabalho” em si,
assim como fizeram, no livro, as personagens que participavam do clube de leitura. Quando me formei e comecei a trabalhar, muitas vezes me pegava pensando sobre essa questão. Foi assim que virei escritora. Sempre pensei muito sobre a ideia de “trabalho”, e parece que naturalmente esse se tornou um dos temas do meu livro.
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Em muitos países, ainda se acredita fortemente que as mulheres devem cuidar das tarefas domésticas e dos filhos, muitas vezes tendo de deixar suas carreiras. Yeongju é uma personagem que sai desse padrão, certo? Ela abre o próprio negócio sozinha, enfrenta os desafios que aparecem no caminho, e até mesmo tem ressalvas quanto a entrar em um relacionamento. Como foi a construção dessa personagem? Você já tinha em mente que ela seria uma mulher independente e determinada ou foi algo que aconteceu à medida que a história se desenrolou?
Eu respeito todas as pessoas que cuidam das tarefas domésticas e dos filhos, sejam elas mulheres ou homens. Porém, desde cedo penso que as mulheres não têm que ser, necessariamente, donas de casa. Além disso, ao longo da nossa história, e em inúmeras narrativas, as mulheres foram definidas como seres passivos que apenas anseiam por amor, mas eu nunca pensei dessa forma. Basicamente, porque eu nunca fui esse tipo de pessoa. Então, se eu fosse escrever um romance com uma protagonista feminina, ela com certeza seria como Yeongju, uma mulher independente e incrível, assim como muitas outras que estão e sempre estiveram aqui.
Mais do que abordar os desafios da dona da livraria, Yeongju, o livro mostra como a livraria é um espaço de conforto e de autoconhecimento. Através da livraria, vemos como todos os personagens vão entendendo a si mesmos e se permitindo falhar ou escolher novos caminhos para a própria vida. Por que decidiu abordar esses temas e esse espaço na obra?
Na verdade, seja onde for, estamos sempre tentando entender a nós mesmos, enfrentando nossas falhas e caminhando em direção ao próximo passo na vida. É assim para as pessoas que conheço e também para aquelas que observo de longe. No entanto, penso que muitas pessoas ficam ansiosas diante de preocupações diversas e, diferentemente das personagens do meu romance, não conseguem dedicar tempo suficiente para refletir sobre si mesmas de forma tranquila e silenciosa, sem pressa. Elas tomam decisões precipitadas e correm direto para o próximo passo. Por isso, através do livro, eu quis sugerir que é possível lidar com essas preocupações, comuns a todos nós, de outra forma – pensando tranquila e profundamente.
Algo que me marcou muito foi a trajetória de Mincheol, um rapaz que se sente pressionado a decidir ainda jovem o que quer fazer pelo resto da vida. Essa é uma experiência que você mesma vivenciou ou que você percebe na juventude atualmente? Qual mensagem você quis transmitir aos leitores por meio desse personagem?
Justamente hoje conversei com uma amiga por telefone. Ela tem um filho de nove anos, que disse o seguinte: “Não gosto de nada e não há nada que eu queira fazer. E eu também não quero trabalhar.” Parece que as crianças de hoje em dia começam a se preocupar com suas carreiras muito mais cedo do que as crianças da minha época. A Coreia do Sul não é um país que tolera muito bem o fracasso, por isso há muita pressão para que as crianças definam desde cedo a carreira que desejam e a sigam com sucesso até o fim. Isso faz com que as palavras e as atitudes dos pais, mesmo sem intenção, pressionem os filhos, que, também influenciados pela atmosfera social, sentem que precisam decidir tudo o quanto antes. Acontece que, muitas vezes, a carreira que eles “decidem” seguir é apenas um modelo de sucesso predeterminado. Mas eu me pergunto: realmente é sucesso seguir esses modelos? E mais importante: será que isso traz felicidade? Foram perguntas que eu fiz para mim mesma. No livro, Mincheol é o personagem que revela essas dúvidas.
Nos livros, quando a protagonista se arrisca em algo completamente novo, como Yeongju, é comum o romance ganhar bastante destaque. Porém, em Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, o romance entre Yeongju e Seungwoo é algo sutil, que se desenvolve aos poucos e só se concretiza ao final. Por outro lado, outros relacionamentos de Yeongju se constroem ao longo de toda a história. Qual mensagem você desejou transmitir ao abandonar o clichê e focar em outros tipos de relações?
Embora o amor seja algo importante, não vivemos apenas dele, certo? Nós trabalhamos, criamos laços de amizade e, também, amamos. Isso vale para todos, homens e mulheres. Então, eu só quis retratar uma mulher comum, que trabalha, cria laços de amizade e, também, ama.
É possível perceber que, para Yeongju, as amigas são fonte de apoio e conforto em dias difíceis. O que te levou a explorar no livro a importância das amizades femininas? Foi algo proposital?
Eu me formei em engenharia e trabalhei como programadora. Dos 20 aos 30 anos, havia muito mais homens do que mulheres ao meu redor. Claro, fiz ótimos colegas e ainda mantenho contato com alguns, mas, no fim, é com as amigas que me sinto confortável para compartilhar histórias mais íntimas e ter uma conexão verdadeira. E, quanto mais envelheço, mais eu percebo que a presença de amigas me dá força para viver a vida do meu jeito – embora a gente não consiga se encontrar com frequência. Ao retratar a amizade entre Jimi, Yeongju e Jeongseo no livro, me inspirei nas amigas que estão sempre ao meu lado.
Como foi a sua experiência no Brasil e a interação com os leitores? O que mais chamou a sua atenção?
Antes de ir ao Brasil, eu já estava ansiosa para conhecer os leitores brasileiros. Muitos deixam comentários sobre o livro nas minhas redes sociais! Quando finalmente os encontrei pessoalmente, fiquei muito surpresa e grata pela recepção calorosa, que superou todas as minhas expectativas. Mais uma vez me convenci de que as emoções podem ser transmitidas através da tradução. A maneira como os leitores brasileiros expressaram seu carinho por mim, com sorrisos e olhares, é algo que provavelmente não conseguirei esquecer.