*Escrito por Sílvia Medeiros e Adriane Canan para o Portal Catarinas

Era madrugada do dia 27 para 28 de abril quando 28 famílias, com martelos, enxadas, colchões, pedaços de lona preta, madeiras e sacolas plásticas cheias de pertences, começaram a montar seus barracos e ocupar o terreno que fica ao lado do Lar Fabiano de Cristo, no alto do bairro Monte Cristo, em Florianópolis. O terreno, que tem cerca de cinco mil metros quadrados foi doado pela instituição espírita Lar Fabiano à Prefeitura Municipal de Florianópolis para construção de casas populares. Mas, quase 15 anos após a doação, apenas 12, das 46 casas prometidas, foram construídas pela administração municipal.

Três meses após a Ocupação e com tentativas de despejo coordenadas pela Prefeitura de Florianópolis, os moradores buscam agora uma negociação para doação do terreno, que permanece em nome do Lar Fabiano.

Com um déficit de 18 mil moradias em Florianópolis, as ocupações são características de formação do bairro, que fica na região continental da capital catarinense. De acordo com o último censo de 2010, somente no bairro Monte Cristo, moram mais de 12 mil pessoas, grande parte por ocupações, dez no total.

As 28 famílias que hoje ocupam o terreno do Lar Fabiano são, em grande parte, familiares dos moradores da região. Da noite da ocupação até agora, as lonas pretas deram lugar a pequenas casas de madeira, construídas em mutirão com material doado por apoiadores. Existe uma cozinha comunitária, banheiros e uma casa para lazer das dezenas de crianças que moram na ocupação.

Além da situação de vulnerabilidade social, outro ponto em comum encontrado na Ocupação Fabiano de Cristo é o protagonismo das mulheres: são elas a grande maioria das chefes de famílias e lideranças da Ocupação. Seguem resistindo às dificuldades e com histórias de busca de melhores condições de vida. Catarinas conversou com as mulheres da Ocupação e traz um pouco das suas trajetórias de vida e de resistência.

Cyntia não desiste. Cyntia é liderança e sente alegria na luta
Cyntia Cristina da Silva, 35 anos, tem certeza que está no caminho certo. Não é um caminho fácil, mas ela não tem dúvidas e não desiste: Cyntia é uma das mulheres na liderança da Ocupação Urbana Fabiano de Cristo. “Na verdade o que eu tenho é uma alegria enorme porque é a oportunidade de ter um espaço para a gente ter uma moradia digna para nossos filhos”, conta.

À frente da comissão de organização da Ocupação junto com outras companheiras e companheiros, Cyntia reflete: “Eu aprendi a me virar muito cedo. Minha mãe separou do meu pai e éramos muito pequenos. Ela criou a gente sozinha. Vou te dizer que as mulheres, e eu também crio meus filhos sozinha, se colocam sem medo de enfrentar a luta, pois até parece que ela fica pequena diante de tudo que enfrentamos todo dia como mãe e mulher”.

Cyntia diz que a construção coletiva vai frutificar. “Quero que a gente fique, construa nossas casas dignas, uma área verde, área de lazer, horta. Queremos criar nossos filhos em paz, com alegria, com educação. Quem sabe uma cooperativa de mães que possa trazer renda. Tudo isso a gente está pensando e botando em prática” ela relata, sorriso imenso e olhos marejados. E, sim, os planos estão saindo da conversa e indo para a prática. A horta comunitária já está sendo encaminhada com orientações sobre compostagem urbana e melhores verduras, chás e frutas para o espaço. Estrutura que pode garantir economia na alimentação, inclusive.

Mãe, mulher, liderança em sua coletividade, Cyntia não teve e não tem uma vida fácil. Depois de uma queda, ainda jovem, sofre com dores fortes na coluna e nas pernas. Sair do aluguel que, ainda sendo em lugares muito precários e minúsculos, tira das mulheres toda a possibilidade de dar aos filhos uma vida melhor, é uma das conquistas que Cyntia vê no horizonte. Em cima do pequeno móvel onde guarda suas roupas e dos filhos, ela expõe, orgulhosa, fotos daqueles para quem busca um futuro melhor.

“A gente não pode oferecer mais educação, um curso ou outra coisa aos filhos. O dinheiro pouco que se ganha no trabalho ia tudo pro aluguel”, explica. Cyntia, com a história de vida que tem, não conseguiu fazer mais que a terceira série primária. “Mas pros meus filhos eu quero bem mais e vou lutar pra isso”, diz. Hoje, para mandar uma carta de amor, Cyntia precisa da ajuda de alguém para escrever. “Mas isso vai mudar. Assim que tivermos nossa casinha pronta, vou voltar a estudar também”, avisa, enquanto alimenta os dois gatinhos que vivem ali em volta da casinha de madeira, de uma peça, improvisada enquanto a luta pela morada digna segue adiante. “É um barraco improvisado, mas tu não sabe a alegria que senti ao entrar aqui. É o barraco da esperança e da luta”, fala Cyntia, passando a mão na madeira sem tinta, mas cheia de história em tão pouco tempo.

Grasielle: “Já conquistamos muitas coisas que não eram das mulheres”
A Grasi é irmã da Cyntia. Um pouquinho mais velha, 39 anos, Grasielle da Silva já abrigou, numa pecinha bem pequena, além de seu filho único e seu marido, a família da irmã. “A gente trabalhava e o dinheiro ia todo para o aluguel. Ela não tinha condições de pagar um aluguel sozinha. Agora vemos a possibilidade de um pedacinho de chão, uma moradia e um espaço que seja da gente, né? Graças a Deus!”, diz Grasi. Ela conta que começaram num pedacinho de lona e hoje, depois do trabalho coletivo e diversos apoios à Ocupação, já estão em uma pecinha de madeira, mais resguardados do frio.

Na pecinha, hoje, com uma cama de casal, se revezam ela, o marido, o filho e a nora. “Eu e meu marido trabalhamos de dia e dormimos de noite. Meu filho e a nora fazem o contrário. Assim a gente faz”, diz Grasi. Na Ocupação Fabiano de Cristo, a parte de higiene (banheiros, chuveiros, pia e tanque) é coletiva. A cozinha também, um espaço de coletividade onde o povo compartilha. “Aqui a gente ajuda um ao outro”, diz Grasi.

Ela conta que tem se sentido a “mulher mais feliz do mundo”. E se vê muito forte como mulher: “Eu vejo que nós já conquistamos muitas coisas que não eram das mulheres. Olha quantos lugares que hoje têm as mulheres na frente!”. A Grasi reforça a importância da determinação feminina na condução da Ocupação Fabiano de Cristo. “As mulheres estão fortes na comissão. Somos as guerreiras que sempre cuidaram de tudo, né?”. E aí ela lembra, também, da mãe: Maria Salete: “Ela é dez, eu amo. É muito forte”.

Uma das tarefas que a Grasi assume é a de animar o povo. “Já vivemos muito sofrimento. Agora é hora de animar uns aos outros e seguir na luta por nossa moradia. A gente pode e a gente vai conseguir. É um direito da gente”, diz. Mulher com muita fé, a auxiliar de limpeza Grasielle novamente cita Deus e a luta: “Se Deus quiser, vamos ocupar o nosso lugar de direito. É uma luta que a gente vai até o fim”.

Dona Maria vê esperanças que a vida de sofrimento acabe
“A vida nunca foi fácil”, assim Maria Aparecida Godinho define seus 67 anos. Ela, que é natural de Lages, interior do estado, veio para a capital catarinense ainda jovem. Foi aqui que ela trabalhou a vida toda, conheceu seu esposo e teve sua filha, hoje com 47 anos.

Já fez de tudo na vida, como ela mesmo define: já trabalhou muito, mas na maioria das situações em trabalhos informais. Não teve condições de pagar a previdência social e hoje não consegue se aposentar. Atualmente, vive de uma pensão do seu falecido companheiro. O dinheiro que ela recebia proporcionava uma vida tranquila, em que ela conseguia até ajudar sua filha e netos. Porém, num processo de outra ex-esposa do seu marido, ela viu a pensão despencar e ser dividida com outra.

Com a divisão, não teve mais condições de pagar o aluguel da casa de dois pisos que morava com sua filha e genro, num bairro em São José. As coisas apertaram ainda mais depois que sua filha foi vítima de um AVC, que lhe fez perder os movimentos de um dos lados do corpo, e hoje vive acamada. A renda, que já era pouca, ficou menor ainda com um empréstimo que ela fez para ajudar nas despesas com remédios e exames para sua filha. Apesar disso, ela não se arrepende: “Nem que fosse pra eu ficar sem nada, eu faria este empréstimo de novo pra ajudar minha filha”.

Com todas as mudanças drásticas em pouco tempo, Maria precisou arranjar outro lugar para morar. Ficou sabendo da Ocupação através de sua neta, que também tem uma casinha de madeira no local. Na madrugada do dia em que as famílias entraram no terreno, Dona Maria era uma das pessoas que via ali uma possibilidade de vida melhor.

Na casa de madeira ela tem esperanças. “Deus nosso senhor vai ajudar a sair dessa vida de sofrimento”, espera ela. Com problemas de saúde, ela conta com a ajuda de outros moradores da Ocupação para fazer serviços domésticos e com a solidariedade de apoiadores para mobiliar sua pequena casa.

Graziela sonha com uma casa “arrumadinha”
É numa casa de um cômodo que mora Graziela, de 26 anos, com seus três filhos e o marido. Natural de Capão Alto, interior do estado, ela mostra sorridente uma cuia de chimarrão que havia comprado no dia anterior. “Vou ensinar o meu marido a tomar chimarrão”, brincou Graziela com o esposo, que é nordestino. Ele, por sua vez, comprou uma panela de fazer cuscuz, para que a esposa experimente o prato típico de lá de onde ele veio.

Vinda de um relacionamento “ruim”, como ela mesma define, Graziela hoje não é mais casada com o pai das crianças, que não visita os filhos e nem paga pensão. Ela diz que conta com o carinho e ajuda do atual marido, que trabalha de pedreiro, mas sem carteira assinada. O dinheiro certo que entra mensalmente é 150 reais referentes ao Bolsa Família que as crianças recebem. Antes de estarem na Ocupação, a maior parte deste valor era usada para pagar o aluguel do pequeno espaço de onde moravam, sobrando 50 reais para comprar comida o mês inteiro.

Caprichosa, Graziela mostra a sua casa, quer fazer como uma casa dos seus sonhos: “bem arrumadinha”. Planeja pintar as paredes e tenta a doação de uma televisão. “As crianças gostam de ver desenho e como a gente não tem, assistem pela janela da casa dos vizinhos”, diz. Na Ocupação, ela conta que todos se ajudam: “quando um não tem, empresta do outro”.

Ivani, a mulher de luta
Moradora da comunidade do Monte Cristo, Ivani Battistella não precisaria se importar. Mora com o marido e seus três filhos numa casa de material e trabalha com venda de produtos artesanais, junto com outras mulheres do bairro. Mas ela e o marido, que já são conhecidos na redondeza por ajudar os outros, se envolveram com a história de uma mãe que seria despejada.

“Deise, uma jovem com idade da minha filha, foi pedir ajuda na minha casa. Não tinha dinheiro para pagar o aluguel. Morava numa pequena garagem, embaixo de uma casa. Tinha uma filha de quatro anos e uma bebê de dois meses no colo. Aquilo me tocou muito e eu fui atrás de todas as possibilidades para arranjar um lugar para ela morar. Infelizmente, só encontramos portas fechadas e tratamento desumano na prefeitura”, relembra Ivani.

A artesã relembra que numa das várias tentativas de conversa com assistente social na Secretaria do Município, ela chegou a chorar com o tratamento dado para elas. “Fazia muito calor, estávamos na recepção da Secretaria Municipal de Assistência. Eu estava no balcão e insistia para que alguém nos atendesse. Enquanto isso, Deise pediu um copo d’água, pois estava com sede e precisava amamentar o bebê, que começou a chorar. A atendente disse que não tinha. Eu não acreditei naquilo, como ela negava um copo d’água para uma mulher com bebê no colo? Fiquei chocada e saímos dali. Na rua, a Deise começou a chorar e, desesperada com toda a situação que passava de despejo e indiferença, até tentou se jogar embaixo dos carros levando as crianças. Foi um desespero. Acalmei ela e procurei um lugar para nos acalmar as duas”.

Foi com a história de descaso do município que Ivani começou a buscar possibilidades de moradia para Deise. Descobriu o terreno do Lar Fabiano e com outras pessoas conseguiu fazer um barraco para ela morar, antes mesmo da Ocupação no final de abril. Ivani enfrentou tentativas de despejo de Deise e seus filhos. Numa das vezes, a máquina da prefeitura ameaçava derrubar a casa, mesmo com as crianças dentro. Conversou e, como resultado da negociação, tiveram que construir um banheiro na casa em menos de 48 horas.

Deste dia até a Ocupação com as quase trinta famílias, Ivani já sabia melhor quais eram os caminhos da negociação. Na madrugada em que todos ocuparam o terreno, ela, junto com toda as famílias, não dormiu. Passou a noite ajudando no cadastramento das famílias e na organização. Enfrentou mais uma vez as ameaças de despejo, agora com a Polícia Militar e Guarda Municipal. Ouviu no viva voz do celular do policial a frase que já tinha testemunhado nos espaços públicos, mas agora dita pelo Secretário do Continente: “Eu não quero falar com essa gente”.

Ela não mora na Ocupação, mas ajuda na organização. Conversa com as lideranças, orienta, apoia, encaminha para alguns serviços e, agora, quase três meses depois, ela diz que os moradores já tocam a rotina sozinhos. Ivani não participa ativamente de nenhum movimento popular, embora tenha sua trajetória de vida sempre envolvida nas lutas dos moradores. Quando questionada por que se envolveu com a luta, ela tenta pensar nos motivos e resume. “A situação de abandono é a situação de muita gente, não tem como a gente viver em paz se a gente não se importar e não ajudar o outro”, explica.

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