O começo de um ano sempre nos traz a oportunidade de um balanço e, sendo eu uma mulher, branca e educadora em Direitos Humanos, minha avaliação de 2024 (ano que passou e em que lembramos os 40 anos do fim da Ditadura), não poderia ser outra, senão pelas lentes dos avanços e retrocessos dos Direitos Humanos das mulheres.
Nesta semana, em que lembramos em 24 de fevereiro o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil, o convite é para refletirmos sobre aspectos essenciais relacionados à nossa democracia.
O voto feminino só foi reconhecido em 1932 e incorporado à Constituição em 1934, mas era facultativo. Somente em 1965 ele tornou-se obrigatório também às mulheres, tendo seu valor equiparado ao dos homens.
Ainda sobre o ano que passou, é preciso dizer que 2024 não foi fácil. O avanço da extrema direita, ocupando espaços da política institucional, levou o Congresso Nacional a discutir e votar ações que, não só impedem a ampliação dos nossos direitos, como tiram de nós direitos conquistados. É o caso do PL do Estupro, que impoe uma pena maior à pessoa que comete aborto do que ao estuprador, e da PEC do Estupro, que acaba com o aborto legal.
Soma-se a isso o resultado das eleições municipais: 60% das vereadoras eleitas nas capitais brasileiras são do espectro de partidos à direita, sendo algumas da extrema direita (19 são filiadas do PL e 16 são filiadas do PP), conforme dados do TSE organizados pelo Instituto Aurora.
O dado deve nos chamar a atenção para uma representatividade fictícia, em que mulheres foram eleitas, mas não necessariamente defendem pautas favoráveis às mulheres. Apesar do fato contraditório, as mulheres ainda são a força da resistência contra o avanço da extrema direita, de acordo com dados levantados pelo grupo Gallup e publicados no New York Times. A avaliação afirma que mesmo mulheres conservadoras tendem a não compactuar com o discurso de ódio e, por vezes, bélico, das pessoas candidatas desse campo.
Isso me lembra de uma história que li no livro “Bíblia, mulher e justiça reprodutiva”, organizado por várias autoras. Uma delas, Camila Mantovani, uma jovem evangélica progressista, é quem abre o livro contando que, certa vez, tentava conversar com a mãe – também evangélica, mas conservadora – sobre a descriminalização do aborto. A mãe estava horrorizada com aquela conversa e a postura da filha. Então, elas têm um diálogo mais ou menos assim:
- Mãe, quantas mulheres atendidas em seu gabinete pastoral já relataram ter passado por um abortamento?
- Muitas!
- E você chamou a polícia?
- Como eu poderia fazer isso? Elas precisam de aconselhamento, oração e abraço.
- Então, estamos do mesmo lado.
O que a filha tentou mostrar para a mãe é que por trás de algumas palavras que foram polemizadas, há ideias que talvez tanto mulheres progressistas quanto conservadoras concordem. E, mais, a conversa relatada prova a discordância de mulheres conservadoras com o campo político ao qual se alinham mais.
No caso, a mãe ter afirmado acreditar que um aborto não era caso de polícia, ou seja, que não deveria ser compreendido como crime, mas, sim, como um caso de saúde pública, de assistência – como ela diz -, deu espaço para que a filha revelasse àquela mãe evangélica e conservadora que, querendo ela ou não, seu posicionamento era favorável à descriminalização do aborto.
Essas e outras histórias me fazem entender que não vamos ganhar as mulheres do campo conservador com nossos protestos e ativismos barulhentos. Eles servem para nos unir, para chamar a atenção pública e para movimentar a política institucional.
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Para que uma pessoa considere uma nova ideia, ela precisa ser escutada com atenção. Já vi com meus próprios olhos esse fenômeno acontecer. À medida que vai sendo escutada e percebendo que alguém honestamente se interessa por entender seu ponto de vista, um pouco de espaço vai sendo criado, e é nesse espaço que mora a oportunidade de trazermos outras perspectivas. “Mas, o que eu vou falar?”, muitas vezes as pessoas perguntam quando decidem ir para esse diálogo.
O que digo é: um ambiente de diálogo com escuta ativa trará a resposta, porque ela proporciona com que a gente entenda as ideias do outro a partir dos seus lugares de tristezas e alegrias.
E, isso, nos permite conversar de um mesmo lugar de humanidade. A mensagem que queremos entregar importa tanto quanto o como, que se for adaptado para o contexto daquela pessoa tem mais chances de surtir efeito.
É isso que experimentamos com o projeto Meu, seu, nosso voto. Com todas as pessoas sentadas em círculo, propomos um diálogo honesto sobre democracia, Direitos Humanos e política no dia a dia. Meninas que antes diziam não ver sentido em votar – muito enraizadas no discurso apolítico de uma direita extrema que domina as redes sociais – saem do papo com uma outra perspectiva. “Eu quero votar”, é o que passam a dizer.
O Meu, seu, nosso voto, vale lembrar, foi idealizado pelo Instituto Aurora em 2020, e, desde então, é cocriado por mulheres representantes de outras organizações da sociedade civil, dentre elas, o Instituto Nossa Causa, organização cocriadora de 2024 e presente desde a primeira edição do projeto.
Ele foi reconhecido, em novembro de 2024, pelo World Forum for Democracy, o Fórum Mundial para Democracia, com o prêmio “Inovação para Democracia 2024”, como a iniciativa global que mais contribuiu para a construção de paz e valores democráticos no ano que passou. O Fórum ocorreu em Estrasburgo, na França. O Meu, seu, nosso voto já está em sua terceira edição e vem buscando promover diálogos sobre o voto responsável e fortalecer a democracia e uma cultura de Direitos Humanos.
Lembremos que faz parte da estratégia de ascensão ao poder do campo conservador provocar a desilusão nas instituições, fazendo com que a população desconfie da necessidade de suas existências assim como desinteresse pela política, o que dá espaço para a manipulação – por meio de pessoas próximas e as notícias falsas. No projeto Meu, seu, nosso voto, ainda não servimos um café em nossas conversas, mas vou considerar isso para 2025.
Antes de terminar esse texto, devo confessar: eu nem gosto de café! Na verdade, detesto. Mas, reconheço o seu poder de gerar conexão, iniciar conversa com pessoas desconhecidas. Já experimentei o seu poder tomando café junto com uma idosa enlutada em um Oeste catarinense rural invisibilizado, com mulheres refugiadas recém chegadas de uma Síria devastada (ainda sob o governo de Assad – agora deposto)… Bem, essas são outras histórias. Fato é que tomaria, com uma amiga ou parente, distante de mim em ideias, uma – e até muitas – xícaras de café pela nossa democracia.