“Após a eleição de Bolsonaro, houve uma reação unânime entre nós: este grupo que chegou ao poder central no Brasil é nocivo. Neste ano e meio de trabalho em torno da exposição de Paris, Marielle Franco foi assassinada, Lula foi preso, Bolsonaro foi eleito, o conservadorismo se aprofundou, o desrespeito aos direitos humanos também, duas barragens de lama despejaram detritos sobre Mariana e Brumadinho, a polícia mata mais jovens negros do que nunca. Isso tudo nos afeta como sociedade e, obviamente, afeta os artistas, individualmente”, conta Mazé Leite, curadora da exposição Brasil em Transe – pinturas a óleo, que estará na programação cultural parisiense de 4 a 20 de outubro.

As obras de doze artistas brasileiros serão expostas na Galeria Art & Societé, reconhecida por receber artistas contemporâneos de diversos lugares do mundo e localizada em um dos bairros mais culturais da capital francesa. A exposição, com inauguração às 19h (horário de Paris) é resultado da curadoria e do planejamento da professora do Ateliê Contraponto de Arte em São Paulo, Mazé Leite, entusiasta da arte figurativa no Brasil, que expõe junto com seus onze alunos. Serão 32 pinturas, executadas em um ano e meio de trabalho intenso.

Os visitantes contarão uma variedade de abordagens, com pinturas que vão desde momentos que representam a cultura brasileira até temáticas mais políticas, como o drama da população mineira causado pelo rompimento de barragens, o genocídio da juventude negra, os preconceitos sofridos pela população LGBTI e a liberação de agrotóxicos mortais em nossa agricultura.

Além de ilustrar um país que enfrenta o crescimento da extrema-direita, as obras buscam reforçar que nesse transe brasileiro há artistas que resistem e que ao pintar transformam seus próprios medos em arte e, com suas próprias cores, mostram a beleza e riqueza do país. “Quando iniciamos nosso trabalho para esta exposição, não se tinha ideia dos rumos que o Brasil tomaria com a eleição de Bolsonaro. Isso nos afetou pessoalmente e deu ainda mais elementos para nosso processo de criação”, contou Leite.

Foto: divulgação

A exposição “Brasil em Transe – pinturas a óleo” contará com as pinturas de Ana Maria de Sousa Pereira, Ana Suitsu, Carlos Alberto Tozzi, Guilherme Martinez, Luciana Fortes Balam, Mazé Leite, Nathalia Lopes, Roque Magalhães, Rubi Conde Ferreira, Sarah Hounsell, Taïs Isensee e Virgínia de Morais.

Mazé Leite é artista plástica e fundadora do Ateliê Contraponto de Arte Figurativa. Bacharel em Letras pela Universidade de São Paulo e pesquisadora em História da Arte. Sua formação em desenho e pintura a óleo vem sendo realizada em diversas escolas e ateliês do Brasil e do exterior, desde 1980. Autora do livro As Artes Plásticas na Formação do Professor – uma perspectiva interdisciplinar, Leite também mantém desde 2010 o blog “Arte & Ofício”. Ela conversou com Catarinas sobre a iniciativa.

Catarinas –  As aulas integraram debates sobre o contexto/conjuntura do Brasil para que se chegasse ao tema escolhido? Como foram pensados os encontros?
Mazé Leite:  O tema geral da exposição, “Brasil em transe” foi escolhido em março de 2018, quando a conjuntura política ainda não havia tomado os rumos atuais. A ideia era apresentar, em Paris, um quadro dinâmico sobre o Brasil, sendo que os 12 artistas tiveram liberdade para criar seus trabalhos seguindo esse mote. Não houve debates sobre isso, mas nas aulas semanais, no ateliê, os alunos costumam trazer à tona temas importantes do momento, sejam de caráter político, cultural, artístico, social.

Foto: divulgação

Pode-se dizer que esta proposta artística constitui-se como um manifesto artístico-político (ou a arte é sempre política)?
Mazé Leite: Sim, pode-se dizer. Nas 33 pinturas que iremos apresentar na França, há um retrato do Brasil atual, mas há também o nosso trabalho artístico expresso na qualidade das pinturas, em sua composição, nas cores usadas etc. Nos trabalhos que vamos mostrar, há dois lados do mesmo país: sua riqueza cultural, a alegria do seu povo, sua criatividade imensa, sua generosidade; do outro, um país mergulhado numa noite escura de violência, conservadorismo, desrespeito aos direitos humanos, entrega das nossas riquezas, destruição do meio-ambiente e, principalmente, destruição gradual de nossa democracia. É nosso manifesto sim, a respeito deste país atual.

Qual o papel social da arte diante de contextos de avanço do autoritarismo como vivemos no Brasil?
Mazé Leite: Os artistas brasileiros têm sido alvos diretos dos ataques deste governo, desde seu início. A volta da censura, as tentativas de direcionamento  da criação artística, as tentativas de imposição de uma linha ideológica baseada na visão neo-pentecostal, tudo isso nos atinge como artistas que estão inseridos dentro desse contexto atual. Mas também somos pessoas, somos cidadãos, lemos as notícias, nos chocamos com os crimes incentivados pela propaganda armamentista do governo, que geram mais assassinatos nas periferias do nosso país, como o da menina Ágatha Félix, uma criança negra a mais assassinada pelas forças do Estado. Como desconhecer este país em que estamos mergulhados? Como nos enfiar em uma bolha e fazer de conta que nada disso nos atinge? Há artistas que vivem – ou tentam – viver assim, mesmo que isso também represente uma tomada de posição política. Na minha visão, a arte jamais esteve isolada, como uma espécie de apêndice da sociedade, em qualquer período histórico. Quando o homem pré-histórico pinta um bisão na parede de uma caverna, está expressando um símbolo do seu mundo, do seu momento. Quando Michelangelo pintou a Capela Sistina, ilustrou uma ideia, uma cosmologia baseada em uma visão de mundo. Na minha visão, sim, a arte tem um papel importante no mundo: elevar o espírito humano, o que muitas vezes quer dizer, nos deslocar, nos tirar do lugar, nos fazer refletir.

Recentemente vimos a censura no cinema e também nas letras, como fazer frente a essa tentativa de silenciamento?
Mazé Leite: Infelizmente estamos vendo a volta de momentos terríveis que pensamos já ter sido esquecidos. Precisamos estar juntos, nos posicionar contra a censura de forma prática, não só em manifestações esporádicas. Se nos calamos, a tendência é essa visão atrasada, conservadora, nos alcançar de forma muito mais terrível e arrasadora. Precisamos nos dar as mãos, artistas e sociedade, para garantir que possamos ser cada vez mais livres e ter cada vez mais os direitos básicos de todos garantidos e a Democracia preservada. O contrário disso, é a barbárie, o afundamento, o caos.

 

 

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