A série “Pertencimento”, de Bruno Barbi, composta por dez retratos aquarelados de mulheres pretas e acompanhados de um poema homônimo, de Gislene V. Santos, foi cancelada menos de 48 antes de sua estreia, em shopping.

Tu me notas
Tu não me vês
E ao me notar
Tu me reparas
Tu me julgas
Reparas minhas vestes me medindo com teu olhar e te questionas se ali é meu lugar

Os trechos colocados ao longo desta matéria são do poema “Pertencimento”, de Gislene V. Santos, que abriria a Exposição homônima do artista plástico Bruno Barbi, que entraria em exibição no Shopping Villa Romana (antigo Shopping Iguatemi), no Bairro Santa Mônica, em Florianópolis, a partir do dia 13 de maio. 

O dia em que o Brasil recorda a assinatura da Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão no país, no entanto, foi marcado por mais um episódio de racismo em Santa Catarina. Menos de dois dias antes da estreia da exposição, o Shopping alegou que não poderia manter a data, numa atitude racista, de acordo com o artista. 

“Como as pessoas da cidade já me conhecem, sabem o que eu vou levar para os espaços, eu acredito, honestamente, que o problema não seja eu, homem branco, levando quadros de mulheres negras para dentro de um shopping de elite. Porque eles têm uma mentalidade neoliberal de eventualmente achar que isso cumpre algum papel social para eles, e que, ainda se tratando de 13 de maio, poderia até ser pintado como a “princesa Isabel” deles. Mas como esse trabalho eu já faço há pelo menos dez anos, que é um tempo que já deu pra maturar muitas coisas, eu nunca mais levo nada sem levar junto a voz e as demandas reais do povo negro. E aí, quando eu convido uma mulher negra, periférica, para escrever o texto de apresentação, eu acho que esse texto é que incomoda”, observa.

O texto de abertura da exposição, realmente, nos provoca. Após a censura, o artista publicou em sua rede social a interpretação do poema feita por Solange Adão, que dá mais força ainda ao texto que explicita a luta por pertencimento das pessoas negras aos espaços e o incômodo que essa presença pode gerar à sociedade racista onde vivemos. 

Mesmo que minha presença te incomode não desisto de caminhar
Estou em todos os lugares
Aprendi a não desistir
Aprendi a EXISTIR
Ocupo todos os lugares
Sem passar por cima de ninguém
A meta é chegar

O cancelamento da exposição escancara exatamente o que o texto da apresentação diz. “Mesmo que minha presença te incomode não desisto de caminhar/ Estou em todos os lugares”. As vozes e rostos negros expostas em um shopping de elite no Bairro Santa Mônica, mostrou ser um incômodo para a “sociedade” florianopolitana que frequenta o estabelecimento.

Tratativas com o shopping aconteciam há meses

A exposição é composta pela apresentação de Gislene V. Santos e por dez retratos em aquarela de rostos de mulheres negras. Desde que recebeu o convite do shopping, em dezembro de 2020, o artista lembra, em entrevista ao Portal Catarinas, que interagiu constantemente com as duas mulheres responsáveis pelas tratativas com o estabelecimento, dividindo imagens e textos com elas. Por isso, Barbi diz ter ficado surpreso quando, às vésperas da estreia, as responsáveis disseram que a exposição teria que ser adiada pois precisava passar pelo crivo de um comitê.

“Quando elas disseram que teria que passar pelo comitê porque ‘não pode ter assuntos polêmicos’ e ‘não pode causar desconforto em nossos clientes’, eu, imediatamente, reconheci a censura. Eu falei: ‘gente, eu não acredito que nenhuma exposição passe por um comitê na véspera. Eu admito que possa passar por um comitê, mas meses antes. A gente está com meses de interação”, relata. 

Retrato em aquarela de “Pertencimento”, série de Bruno Barbi.

Nas mensagens trocadas por aplicativo de celular, Barbi conta que argumentou e explicou que elas sabiam o que ele levaria, e que havia investido tempo, dinheiro e emoção na série, que envolveu outras pessoas e que, se houvesse qualquer impedimento, ele iria se considerar censurado. De acordo com ele, essa foi a última interação que tiveram. A partir disso, não houve mais resposta da equipe do shopping. “Então, quer dizer, eu falo ‘tu estás me censurando’, e aí tu te calas. Isso, na minha perspectiva, chancela a censura, porque não foi só o silêncio, foi o silêncio que culminou na não realização da exposição”, analisa.  

“Eu sou um artista autônomo contra a máquina do capitalismo. Então, eu tenho certa fragilidade jurídica, eu reconheço isso. Mas o meu papel é incomodar, é provocar e é denunciar. Tem um aspecto político e social e de combate às mazelas da sociedade por trás de tudo isso. Não seria a minha arte se não fosse assim”, afirma Bruno Barbi.

Barbi relata que aguardou até a data oficial em que a exposição estrearia e, não havendo mais contato do shopping, publicou um manifesto em que denuncia o que chama de “ato covarde de ocultar um racismo latente”. Segundo ele, a justificativa dada pelo estabelecimento de que tratava-se de “tema polêmico” que poderia “melindrar seus clientes brancos e ricos” significa a admissão de que a “presença Negra dentro desse espaço é tema polêmico e de que seus clientes não a admitem”. No manifesto, o artista chama a censura de “atitude elitista, racista e irresponsável”, que mostra o quanto “a presença Negra pode ser incômoda em espaços não reservados a ela”.

Em manifesto publicado em seu Facebook pessoal, Gislane V. Santos disse ter se sentido desrespeitada, assim como a arte, a cultura e a memória ancestral das mulheres negras. “Me manifesto com a conscientização em defesa do direito das pessoas negras estarem em todos os lugares com dignidade. Venho me redescobrindo e caminhando com consciência da coletividade. Um dos meus sonhos é que a cultura, a arte e a memória negra possam ter mais visibilidade, e que sejam sempre valorizadas, respeitadas e preservadas para os que vivem hoje e para as futuras gerações se espelharem”, escreveu.

O Portal Catarinas entrou em contato com o shopping, mas até o fechamento desta matéria não obteve retorno.

A representatividade liberal: incorporar sem tensionar as relações raciais

Tu me vês agora?
Eu tô chegando lá
Te ensinaram que meu lugar era
Na parte mais baixa da pirâmide social
Acreditas AINDA que este é meu lugar?
Meu lugar é onde eu quero estar
E como eu quero estar
Pertenço a todos os espaços

De acordo com a pesquisadora e professora de psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia Vainer Schucman, a análise que se deve fazer desse tipo de acontecimento precisa levar em conta que, no Brasil, o racismo nunca acontece explicitando a categoria “raça”. Eles acontecem de outras formas, como quando as pessoas impossibilitam as presenças das pessoas negras por articulações nas relações de poder.

“O racismo também nunca acontece de forma explícita, o que se faz é apelar sempre, nas instituições, ou para questões jurídicas ou para questões burocráticas. Então, a leitura de uma pessoa para a compreensão do racismo precisa ultrapassar a leitura de que a pessoa demonstrou nitidamente de que aquilo tinha a ver com raça”, explica.

Schucman também aponta que, diferente de outros espaços em que a presença de pessoas negras é incorporada sem tensionar as relações raciais, como, por exemplo, quando uma mulher preta estampa a capa de uma revista de moda, a exposição de Bruno Barbi fazia uma denúncia.

“A única forma que as pessoas querem incorporar a representatividade, e que têm incorporado na nossa sociedade, é de forma que não agrida. Ou seja, que não tensione o campo das relações raciais. As incorporações das pessoas negras de forma liberal têm sido feitas de forma a não tensionar o branco. Como a exposição tensiona, ao mostrar para o transeunte do shopping que aquele é um lugar de brancos, ou perguntar ‘cadê os negros nesse espaço?’, ela vem numa denúncia do racismo. Então, quando se coloca isso, que a exposição pode ‘agredir’ ou ser ‘polêmica’ está se demonstrando exatamente o que a exposição gostaria de demonstrar: que aquele é um espaço branco”, analisa.

Retrato em aquarela da série “Pertencimento”, de Bruno Barbi.

Assim, o fato de tornar visível às pessoas brancas que elas só alcançaram o espaço onde estão devido a uma estrutura racista que as beneficia é o que gera desconforto. Segundo Barbi, é por isso que esses grupos preferem não conhecer a história e não se comprometer com ela. 

“Esses grupos decidiram não conhecer essa história. A ignorância é uma dádiva para eles, porque se essa gente conhece a história, eles precisam se comprometer, e aí eles precisam abrir mão de privilégios. Então, eles acham que vão olhar um quadro, vão achar lindo e vão levar pra casa sem se sentirem provocados. E não vão”, argumenta.

Para Schucman, quando se expõe o racismo, se denuncia a farsa da ideia de mérito tão defendida pelas pessoas brancas. “Elas acham que correram uma corrida e chegaram em primeiro lugar, mas, a verdade é que elas correram sozinhas, e há uma recusa de entender que o lugar que elas ocupam tem muito mais a ver com o racismo do que com o quão trabalhadoras elas são”, explica. 

Enfrentar o racismo em uma sociedade capitalista e racista

Meu alicerce é a memória de meus ancestrais
É a união de forças entre mulheres atuais
Contempla…
Agora que me enxergas
Agora que me vês
Fica.
Não te apresses.
É um convite.
E tu já o aceitaste
Ao parar
E ler meu olhar.

Como argumentam Barbi e Schucman, a forma de expressar o racismo, não só neste caso, mas comumentemente na sociedade brasileira – de forma velada, mascarada ou sem explicitar nitidamente em palavras – é o que dificulta que as ações e atitudes, institucionais ou individuais, sejam enquadradas pela legislação do país. Por isso, na impossibilidade de denúncia pela via legal, judicializando esses casos, resta às pessoas o boicote aos estabelecimentos. 

No entanto, segundo Schucman, o boicote esbarra no fato de que o público desses estabelecimentos não é o mesmo que fica indignado com um ato racista, e isso é levado em conta no cálculo que esses estabelecimentos fazem antes de tomar alguma decisão – algo que ela chama de “discriminação por interesse”. Isso significa que, mesmo que a pessoa não seja racista, mas venda produtos para pessoas racistas, ela vai ter atitudes que não atrapalhem suas vendas. 

“É uma discriminação a partir dos interesses do capitalismo. Vai se fazer um cálculo que é o seguinte: se eu fizer a exposição, eu posso perder clientes, mas não quer dizer que, se eu fizer, eu vou ganhar clientes. Porque se você for perguntar: ‘Você iria no shopping porque ele tem uma exposição de pessoas negras?’, as pessoas que já são críticas e antirracistas vão dizer, ‘não é mais do que a obrigação, não vou ao shopping por causa disso”, exemplifica. E o mesmo acontece com o cancelamento da exposição. “As pessoas não irão deixar de ir ao shopping por isso. As pessoas que vão parar de ir ao shopping já não iam ao shopping. Ou seja, não tem um cálculo mal feito. O cálculo é: não perderemos os nossos clientes, porque o nosso cliente é racista”.

Por isso, para ela, mesmo o boicote tem seus limites como ação coletiva. “Só tem uma coisa que se pode fazer quando se pensa no sentido capitalista: o boicote. Só que a pergunta é: quem está apto para boicotar? A gente teria que ter uma sociedade antirracista para que o boicote aconteça. Ou seja, as pessoas teriam que ser antirracistas para o boicote acontecer. Só que as pessoas não são antirracistas, elas são racistas no Brasil”, lamenta.

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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