Maio Laranja e cartilha buscam conscientizar sobre prevenção ao abuso sexual na infância e na adolescência

18 de Maio é Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data foi instituída pela Lei Federal 9.970/00 e é uma conquista do movimento pelos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, realizada desde 2000. Para dar mais visibilidade ao assunto, foi criada a campanha Maio Laranja com o objetivo de incentivar ações do poder público para conscientizar a população.

No Brasil, 18,6% das denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes, estão ligadas a situações de violência sexual, segundo balanço da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Entre janeiro e dezembro de 2021, foram 18.681 registros contabilizados. Em 2022, já foram registradas mais de 4.400 denúncias até este mês de maio. Vale destacar que os números não fornecem toda a dimensão do problema considerando a falta de acessibilidade das delegacias especializadas onde são feitas as denúncias. 

Ainda de acordo com o levantamento do ano passado, a maioria dos abusos denunciados acontece dentro do círculo familiar. Dados compilados pelo parecer jurídico “Violência sexual em meninas e adolescentes e o direito ao aborto legal no Brasil” também mostram esse recorte do ambiente familiar como fator que pode aumentar ainda mais a vulnerabilidade das vítimas.

O parecer analisa informações dos anos de 2010 a 2018/2019 considerando a violência de gênero, sugerindo caminhos possíveis para o enfrentamento da questão e questionando a imposição social de uma gravidez a meninas, mesmo com legislação que permite o aborto legal no Brasil. Assinado pela advogada do Cladem Brasil, Rubia Abs da Cruz, o parecer é uma realização do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Portal Catarinas, Cladem Brasil e Coletivo Margarida Alves

“A violência sexual também pode ocorrer no ambiente escolar, seja por professores ou outros alunos. Meninas que trabalham em serviços domésticos correm frequentemente o risco de sofrer violência sexual por parte de membros masculinos da família onde trabalham”, completa o documento. 

O documento denuncia que no Brasil, no ano de 2018, os dados gerais de aborto entre meninas de 10 a 14 anos ficou em 1,08% do total de casos (96.285), alcançando somente 1.039 abortos em meninas nessa faixa etária. Em 2019, o número reduziu ainda mais, ficando em 982 abortos em um total de casos (91.828), chegando ao percentual de 1,07.

Além disso, dados do parecer evidenciam a importância de demarcar a violência sexual contra meninas e adolescentes como uma violência de gênero, com o objetivo de se pensar políticas públicas específicas. Isso porque esse tipo de ação criminosa toma como medida as hierarquias de poder presentes nas relações sociais, familiares e pessoais. O gênero se sobressai ainda que outros marcadores possam estar presentes, como classe social, raça e etnia, deficiências e, neste caso, faixa etária. 

A violência sexual também é considerada um crime mais grave quando as vítimas tem menos de 14 anos. Entretanto, isso não garante que as instituições públicas vão assegurar o direito ao aborto legal das vítimas que são estupradas e ficam grávidas. O parecer aponta que não há um protocolo, guia ou políticas públicas elaborado para abordar de forma específica esse problema. Protocolo esse que deveria incluir procedimentos abrangentes e multidisciplinares a serem seguidos nos casos em que tal violência resulte em gravidez infantil.

“Inexistem dados públicos institucionais quanto à atuação de médicos, conselhos tutelares, Ministério Público e Poder Judiciário em casos de gravidez e partos de meninas de 10 a 14 anos, considerando que pela nossa legislação sempre seria estupro de vulnerável. Somente quando essas meninas têm garantido o direito ao aborto legal é que são vistas pelo Poder Judiciário ou pela sociedade. É uma cultura machista, racista e classista que permite que isso continue acontecendo”, manifestam no parecer. 

Acesse o documento completo:

Eu me protejo

Preocupada com essa constante violação dos direitos das crianças e o risco de violências, a jornalista Patricia Almeida fez para a filha, uma menina com síndrome de down, um pequeno livro com linguagem simples e imagens autoexplicativas. A ideia era que ela aprendesse como se proteger e identificasse quando pedir ajuda.

A jornalista Patricia Almeida é autora de um pequeno livro sobre prevenção ao abuso sexual infantil
Foto: Acervo Pessoal

O livro fez sucesso entre educadores e deu origem ao projeto “Eu me protejo”, que atualmente conta com mais de 50 pessoas engajadas e ensina crianças a se protegerem contra o abuso sexual através de vídeos animados, cartilha ilustrada e jogos. As ações da iniciativa acontecem em diversos espaços, como escolas e reuniões de conselhos e secretarias. O acesso a todo o material é gratuito e aberto ao público. Conversamos com Patrícia para saber um pouco mais sobre a iniciativa e a importância de falar sobre o tema. 

CONFIRA A ENTREVISTA:

Catarinas: Você acha que a violência sexual contra crianças e adolescentes é um assunto ainda rodeado de dúvidas?

Patrícia Almeida: O assunto já era tabu e nos últimos tempos, como falei, foi praticamente banido. Parece radioativo. Ninguém quer chegar perto. Enquanto isso, só vemos os números da violência aumentar. Por que será?

Outro ponto é que a maioria dos familiares não teve orientações em casa, por isso nem sabem por onde começar. Eu sempre dou o meu próprio exemplo. Quando tinha uns dez anos minha mãe, super embaraçada, me falou que ia sair um sanguinho da minha vagina todo mês (que na minha casa a gente chama pipita), que tinha que usar absorvente e que não era pra eu deixar nenhum menino chegar perto de mim. Ponto final. Essa foi minha educação sexual. Na escola, zero informação. Cresci achando que engravidava beijando. Olha o tamanho do risco!

Anos mais tarde perguntei à minha mãe – que era professora (!) – por que ela não tinha me preparado direito. Ela disse que até tinha em casa o livro “De onde vêm os bebês” , mas não me mostrou porque não queria que eu visse a ilustração do galo trepando em cima da galinha… No Eu Me Protejo não tem esse tipo de imagem!

Quais questionamentos você percebe como principais a serem esclarecidos? Os mais urgentes? 

Se a gente não chega antes do agressor e fala pra criança de maneira muito clara o que é certo e o que é errado, o que pode e o que não pode, ela vai acreditar no adulto agressor – que na maior parte das vezes é muito legal, dá presentes, leva pra passear, e aos poucos vai se insinuando. Não dá pra falar por metáforas com uma criança de 4 anos, “guarde bem o seu tesourinho” … tem que ser literal, visual. Isso não estimula práticas sexuais, ao contrário do que muitos pensam. Pelo contrário, os jovens que recebem educação sexual costumam começar a ter relacionamentos mais tarde.

O quão comprometida a sociedade civil está em relação a esse assunto? Qual a sua percepção sobre isso?

Existem várias iniciativas interessantes, mas infelizmente esse tema foi polemizado e quem perde com isso são as nossas crianças que ficam desinformadas e ainda mais vulneráveis do que já são. 

Esse é um tema que precisa estar nas escolas, mesmo porque em famílias agressoras, certamente não será discutido. O assunto foi praticamente banido nas escolas. As professoras, que antes já ficavam constrangidas, agora têm medo de falar e as famílias acharem ruim.

Precisamos entender esta nova realidade e buscar formas de adaptar o conteúdo para que nenhuma criança deixe de receber as orientações necessárias. Uma das dicas que damos às escolas é que comunique às famílias que as crianças vão aprender a prevenir a violência, e enviar o site do Eu Me Protejo para conhecerem. A gente não ensina às crianças a atravessar a rua e escovar os dentes como forma de prevenção? Nós mudamos a abordagem de educação sexual para educação para proteção do corpo. Não tem a palavra sexual no livrinho e na cartilha para escolas. Até porque nessa faixa etária, o que precisamos ensinar às crianças é proteger o próprio corpo e respeitar o corpo do outro.

Como você mesma destacou, a escola tem papel fundamental nessa conscientização. Ainda há muita resistência em relação a abordar a sexualidade nesse ambiente?

A educação para prevenção contra todas as formas de violência tem que estar em todos os ambientes. Nas famílias, nas escolas, nas igrejas, em qualquer lugar onde haja crianças. Depois que lançamos a primeira versão da cartilha e ganhamos o prêmio Neide Castanha, o Henry Borel foi assassinado. Imagine se esse menino tivesse recebido essas informações na escola? De que ninguém tinha o direito de bater nele, de que ele deveria contar para uma pessoa de confiança até acreditarem nele e conseguir proteção… nós incluímos uma página na cartilha da escola sobre agressão física em homenagem ao Henry.

*Henry Borel, 4 anos, foi morto em 8 de março de 2021 após ser espancado no apartamento em que morava com a mãe, Monique Medeiros, e o padrasto, o ex-vereador Dr. Jairinho, no Rio de Janeiro.

O governo federal atual, declaradamente conservador, alimenta essa resistência?

A resistência é de toda sociedade que se escandaliza com casos escabrosos, declara guerra aos pedófilos, mas não cobra medidas realmente eficazes para chegar à raiz do problema.

Não temos números fiéis. O atendimento do Disque 100 melhorou, mas os dados são desencontrados. No caso de crianças com deficiência, por exemplo, a central possui intérpretes de Libras, mas e as delegacias? E as crianças e jovens que não falam? É preciso oferecer acessibilidade, inclusive na comunicação, por meio de pranchas de Comunicação Alternativa e Aumentativa (CAA). Meninas com deficiência são extremamente vulneráveis, sabemos de abusos que ocorrem de forma pontual, mas não temos estatísticas sobre isso nem preparo para receber essas denúncias.

Nós não planejamos, nem fazemos prevenção nesse país, infelizmente. Só se toma alguma providência depois que a violência já ocorreu. No Eu Me Protejo nós temos um lema “a prevenção só é efetiva quando a violência não acontece”. Este é o objetivo que nos guia.

Como manter o diálogo com as crianças em relação a esse tipo de violência?

Esse é o ponto forte do Eu Me Protejo. Ele dá a linha e conduz a família ou educadores com naturalidade, de maneira leve mais assertiva, para que as crianças, mesmo bem pequenas, aprendam o que precisam saber que o corpo delas é delas. A gente tem 32 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda não fomos capazes de ensinar às crianças – e aprender – que ninguém pode bater nelas e que as famílias, o Estado e toda sociedade são responsáveis pelo seu bem-estar.

Como o acesso de crianças e adolescentes à internet entra nessa equação? É preciso ter uma orientação direcionada para cuidados online? 

Com certeza, pois há muita informação inapropriada online. O ideal é que as famílias sempre monitorem, coloquem filtros no que as crianças e jovens acessam, assistam programas e filmes juntos, discutam todos os assuntos dentro de casa. Muitos adolescentes estão aprendendo sobre sexualidade com filmes pornográficos e isso é um grande problema.

E quais os avanços em relação à conscientização sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes você poderia apontar?  

Felizmente o Maio Laranja está vivo e pulsante! E agora temos uma outra ocasião para falar sobre a prevenção da violência contra a mulher em março, quando foi instituída a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher.

Como falei, o disque 100 e 180 estão mais acessíveis. Agora é possível fazer denúncia por email, WhastApp, Telegram, aplicativo e no site. A denúncia pode ser anônima, inclusive. Sabemos de casos em que as próprias crianças estão enviando vídeos dos pais batendo nas mães, por exemplo. Nós não podemos ficar calados diante da violência!

Nós sempre dizemos – na dúvida, denuncie! Cada suspeita é um caso. Denunciar não quer dizer que a pessoa vá ser presa, mas o caso vai ser investigado e o agressor afastado da criança. É esse o nosso papel enquanto cidadã e cidadão. E nossos esforços para educar as crianças para prevenção contra a violência e respeito aos outros devem ser diários.

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