“Ser mãe é um bagulho louco que te potencializa, que te ensina, que te transforma, que te faz você ver o mundo de outras formas”. É assim que Aline Brito, 26 anos, descreve a maternidade. Ela e a companheira, Alessandra Ayabá, 32 anos, mantêm o perfil @maternidadesapatao nas redes sociais, em que compartilham o dia a dia sendo mães dos gêmeos Jamal e Jawari no Capão Redondo, periferia de São Paulo.

A_maternidade_preta_sapatão_e_da_quebrada_de_Aline_e_Alessandra_
Crédito: arquivo pessoal.

Aline e Alessandra começaram a namorar em abril de 2018. “Foi aquela coisa de sapatão mesmo, uma loucura, uma intensidade, uma explosão de sentimentos”, recorda Aline. Em 2019, Alessandra foi demitida do emprego e as duas decidiram morar juntas, a escolha da casa já foi pensando em formar uma família. “É a casa onde moramos até hoje, tem dois quartos, sala, cozinha, banheiro, lavanderia e uma salinha que virou brinquedoteca”, retrata. 

Alguns meses depois, uma amiga delas começou um novo emprego na região central de São Paulo e não tinha com quem deixar a filha no sábado. As duas se ofereceram para cuidar da criança. “Essa convivência de ter uma criancinha linda e pretinha ao nosso lado, o útero da Alessandra começou a coçar. Eu sempre tive o desejo de ser mãe e a Alessandra para além do desejo de ser mãe, ela queria gestar”, conta sobre quando começaram a pensar sobre como iriam se tornar mães.

Gravidez

O método escolhido foi a Fertilização in vitro (FIV), porém, o alto valor do procedimento impossibilitaria a realização. Foi quando outra amiga das duas contou que em uma clínica, estavam precisando da doação de óvulos e, em troca, ofereciam grande parte do procedimento. Aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o método utilizado se chama ovodoação compartilhada e ocorre quando uma mulher que está passando pela FIV divide seus óvulos com outra mulher que também passa pelo procedimento, e os gastos são divididos. “Só tivemos que pagar pela consulta, pelos ultrassons e medicações que tínhamos que tomar em casa”, explica Aline.

__A_maternidade_preta_sapatão_e_da_quebrada_de_Aline_e_Alessandra_dupla_maternidade__
Crédito: arquivo pessoal.

Elas iniciaram o tratamento em dezembro de 2019. Dois meses depois, em 28 de fevereiro de 2020, descobriram que Alessandra estava grávida. Meses depois, veio a notícia de que esperavam gêmeos. Em 11 de março daquele ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o início da pandemia de Covid-19. “A gestação inteira foi durante a pandemia, algo muito difícil porque não tínhamos a rede de apoio”, conta Aline. Em 17 de março, Aline perdeu o emprego fixo como monitora cultural por conta da pandemia.

Além disso, Alessandra foi diagnosticada com hiperêmese gravídica, doença que aumenta a intensidade de vômitos durante a gravidez e resulta em desidratação, mais comum em gravidez de gêmeos. Ela precisou ser internada oito vezes, em quatro hospitais diferentes, ficando entre 3 e 15 dias. “Não foi uma gestação romântica, não teve aquele prazer de planejar o quartinho com calma”, relata Aline. A doença afetou também os gêmeos, que nasceram pequenos para a idade gestacional. “Eles eram pequeninos e levinhos”, descreve Aline. Até hoje, Alessandra sofre algumas sequelas da doença, como estômago sensível.

Produção de conteúdo para as redes

Na época da gestação, Aline e Alessandra procuraram perfis de dupla maternidade na internet para obterem informações, mas ficaram decepcionadas quando encontraram perfis majoritariamente de mulheres brancas e de classes altas. No perfil pessoal, Aline começou a compartilhar alguns momentos da gestação. “Comecei a falar normal, a compartilhar meu dia a dia como todo mundo faz, e começaram a surgir seguidoras”, recorda. Muitas das dúvidas eram em relação à ovodoação compartilhada, técnica mais acessível para que outras mulheres da quebrada pudessem ter filhos com outras mulheres.

A_maternidade_preta_sapatão_e_da_quebrada_de_Aline_e_Alessandra
Crédito: arquivo pessoal.

Quando os gêmeos nasceram, Aline propôs à Alessandra que criassem um perfil sobre dupla maternidade com informações sobre a fertilização in vitro, o dia a dia na quebrada e o corre da mãe preta. Assim, em 7 de janeiro de 2021, foi criado o perfil @maternidadesapatao no Instagram, que, atualmente, tem mais de 28 mil seguidores. 

“É uma forma de resistência da nossa parte”, destaca Aline. Porém, ela cita como desanimador o fato do Instagram não entregar tanto os conteúdos criados por elas. “Uns dias atrás, eu fiquei horas pegando imagens nos arquivos, editando o conteúdo e não chegou a dez mil visualizações”, desabafa. “Mas nós não vamos desistir, vamos resistir e continuar compartilhando nosso conteúdo de maternidade real”, completa.

_A_maternidade_preta_sapatão_e_da_quebrada_de_Aline_e_Alessandra
Crédito: arquivo pessoal.

Criando dois meninos pretos

Ao falar sobre a maternidade, Aline não deixa de ressaltar as preocupações em criar dois meninos pretos. “Não sei o que eles vão ser quando crescer, podem se descobrir de outro gênero, mas, por enquanto, eu coloquei dois meninos pretos no mundo, em um país que é racista, que mata homens pretos à toa. Meninos pretos não podem ter a segurança de circular no mercado que podem ser chamados de ladrão, podem ser agredidos”, cita.

Há também muita esperança no fato de duas mulheres com consciência feminista criarem dois meninos e tentarem quebrar o círculo da misoginia estrutural.

“Nossos meninos vão saber como respeitar mulheres, vão ser homens que não vão ter problema em usar rosa, chorar, sentir e extravasar os sentimentos. Estamos criando dois meninos sem masculinidade tóxica”, destaca.

A transformação na forma de criar os meninos afeta toda a família, enfrentando resistência como pelo pai de Alessandra, de 63 anos, que tenta influenciar a criação dos meninos para que eles sigam papéis sociais de “machos”. “Ele critica, por exemplo, o fato de os meninos terem bonecas, roupas rosas ou ditas femininas, não temos problema nenhum com isso, quando ele vem com um papo machista, dizemos que eles não são ‘machos’, estamos criando seres humanos”, relata.

A_maternidade_preta_sapatão_e_da_quebrada_de_Aline_e_Alessandra__
Crédito: arquivo pessoal.

Para Aline, já passou da hora de outros arranjos familiares serem naturalizados na sociedade. “A tradicional família brasileira pode ser do jeito que a gente quiser”, reforça. “Respeitem nossos corres, nossas famílias, e se você não conhece famílias como a nossa, vai conhecer”, finaliza.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

Últimas