Há 36 anos, em 12 de agosto, morria a paraibana Margarida Alves, trabalhadora rural e uma das primeiras mulheres a exercer um cargo de direção sindical no Brasil. Assassinada por fazendeiros que a viam como ameaça aos seus interesses, Margarida é tão grande que sua morte não impediu o silenciamento de sua voz. Seu legado, hoje, inspira dezenas de milhares de mulheres: elas são as margaridas e vão ocupar Brasília em marcha nos próximos dia 13 e 14. Às trabalhadoras rurais se unem as quilombolas, ribeirinhas, trabalhadoras da cidade e mulheres indígenas, que desde 9 de agosto estão reunidas em Brasília na 1ª Marcha das Mulheres Indígenas. São esperadas mais de 100 mil manifestantes vindas de todos os estados do país e distrito federal.

Acompanhe a programação:

“Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violências”, é o lema desta 6ª marcha em contraposição a um governo autoritário e anti-direitos e ao aumento da violência às mulheres. “Estamos vendo um alto índice de violência, desrespeito à Constituição e à democracia. A marcha tem um caráter de denúncia de todo esse retrocesso de direitos, ao mesmo tempo tem caráter de resistência, de pressão e de proposição, que é essa plataforma política que foi construída por milhares de mãos de mulheres dos quatro cantos deste país e será entregue à sociedade e ao mundo nos dias 13 e 14 de agosto”, explica Maria José Morais, secretária de Mulheres Trabalhadoras Rurais Agricultoras Familiares, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e coordenadora geral da marcha.

Margaridas são as trabalhadoras do campo, floresta e das águas. A partir da marcha de 2007, as trabalhadoras rurais passaram a se chamar trabalhadoras do campo e da floresta. Em 2015, a denominação “mulheres das águas” foi incluída, para afirmar a diversidade das mulheres rurais, como agricultoras familiares, camponesas, sem-terra, acampadas, assentadas, assalariadas, trabalhadoras rurais, artesãs, extrativistas, quebradeiras de coco, seringueiras, pescadoras, ribeirinhas, quilombolas, indígenas e outras identidades construídas no País.

Foto: Portal Vermelho

Entre as pautas políticas estão a valorização da sociobiodiversidade, o acesso aos bens comuns, o direito à terra e à produção de alimentos saudáveis, a denúncia à liberação desenfreada de agrotóxicos, a proteção da Amazônia e garantia dos direitos fundamentais. “A previdência social é um dos nossos dez eixos, o direito à saúde, ao SUS, direito à educação são centrais, estão na ordem do dia. A reforma da previdência é deforma, porque quando a gente reforma faz no sentido de melhorar e não de tirar direitos”, afirma a sindicalista.

Noeli Taborda, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), conta que a organização participa desde a primeira marcha, e que nesta edição atuou também junto à coordenação. O cenário de avanço das forças conservadoras, que reforçam a violência e o machismo frente à visibilidade do feminismo, ativou ainda mais a unidade das trabalhadoras do campo e da floresta. “Fez a gente refletir de que seria necessário nos somarmos à marcha pra junto com as trabalhadoras do campo e da floresta, levar um pouco a pauta das mulheres camponesas, no sentido do enfrentamento a todas as formas de violência, a defesa do ambiente da nossa mãe terra, da agroecologia, das sementes que para nós é modo de vida, projeto de sociedade, é a possibilidade de vida no planeta, considerando que esse modelo de agricultura vigente está destruindo o planeta, animais e biodiversidade”, revela a integrante do MMC.

Noeli Taborda atua no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), no oeste catarinense/Foto: Sizan Luis Esberci e Ricardo Jataun

Segundo Taborda, a marcha é momento de defesa de um modelo de produção e consumo de alimentos baseado na agroecologia feminista.

“A missão das camponesas é a produção de alimentos e temos essa missão colada à agricultura camponesa, ao modelo agroecológico feminista, que além da produção trabalha também a construção de novas relações de gênero. Queremos uma nova sociedade de igualdade, de respeito, de vida digna, uma vida sem violências”. explica.

É, sobretudo, uma marcha em defesa dos direitos mais básicos. “Quase 300 tipos de agrotóxicos, proibidos em vários países foram liberados no Brasil. Famílias estão morrendo de câncer, de depressão, com dificuldades de manter o nosso projeto de agricultura camponesa, a partir dos quintais produtivos. Nós queremos que o povo se alimente de alimentos saudáveis. A liberação dessa quantidade de agrotóxicos coloca em risco a produção agroecológica”, afirma.

A trabalhadora lembra que a defesa da previdência social é uma bandeira história do MMC que atuou na Constituinte de 1988 pelo reconhecimento da profissão das trabalhadoras do campo. “A retirada de direitos da classe trabalhadoras atinge principalmente as mulheres, camponesas, trabalhadoras do campo e da cidade. Vamos denunciar o que significa a reforma da previdência para as trabalhadoras do campo”.

Confira os documentos com os eixos.

Politização das mulheres e o debate com a sociedade

“Essa marcha mostra pra nós que apesar de toda conjuntura, cenário desafiador de retrocessos perigosos, dizemos que as mulheres vão sair muito mais resistentes, com mais força e empoderadas para continuar na luta”, afirma a representante da Contag, Maria José Morais.

A marcha que ocorria a cada três anos, passou a ter um intervalo de quatro. Com exceção da primeira edição, realizada nos anos 2000, durante o governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, as outras marchas aconteceram nas eras progressistas do PT. O clima de otimismo que marcou a quarta marcha em 2011, com a eleição da primeira presidenta do país, foi se diluindo em 2015 com a iminência do golpe. O cenário, agora, é ainda mais desafiador. “Com certeza, o presidente terá acesso à nossa plataforma, mas não temos um processo de negociação. Nesta marcha não temos uma pauta para entregar, até porque a gente não tem o que reivindicar a esse governo, que está tirando direitos da classe trabalhadora, sobretudo das mulheres. Vamos entregar e mostrar essa plataforma política para a sociedade e para o mundo, não é para o governo”, assinala Morais.

Maria José Morais é coordenadora geral da Marcha/Foto: arquivo

Cada edição é resultado de um trabalho de mobilização, formação política nas comunidades e territórios, que leva em média quatro anos de construção. “Juntas construímos coletivamente esse documento que tem o jeito, a cara e a coragem de todas as mulheres do Brasil. Todo sentido político, processo de formação e mobilização na base que faz com que as mulheres compreendam porque vão marchar. Há todo um sentido, simbologia, história de porque a gente marcha a cada quatro anos”, coloca Morais.

A marcha das Mulheres Indígenas se junta a das Margaridas no dia 14. “É muito importante esse encontro, que os movimentos de mulheres se juntem coletivamente, porque só com unidade vamos conseguir vencer e enfrentar esses desafios à classe trabalhadoras, sobretudo para mulheres”, afirma a entrevistada.

Coordenada pela Contag, com suas 27 Federações e mais de 4 mil Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de todo o País, além de ser apoiada por 16 organizações parceiras, entre movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras, centrais sindicais e organizações internacionais, a marcha é sobretudo um espaço de politização das mulheres. Um trabalho de formiguinha que chegou a  90% dos municípios do País.

“Desde o 8 de março de 2017, quando anunciamos a marcha, dissemos: a gente precisa estar em todos os municípios, fazer com que todas as mulheres saibam o que é a marcha das margaridas, para que nenhuma mulher fique sem saber. O trabalho foi chegar em cada um dos municípios para que as mulheres soubessem e compreendessem o sentido político da Marcha das Margaridas”.

Cada vez mais as mulheres agricultoras estão se aproximando do feminismo

Os grupos de mulheres de Santa Catarina fizeram uma campanha para arrecadação de recursos para contribuir com as despesas das mulheres durante o processo de mobilização. “As mulheres saem de seus lugares e a gente quer que elas tenham o mínimo possível de gasto na participação. Muitas mulheres não entendem que para a garantia de direitos há um processo de luta. Essa é a questão da conscientização, da importância de estarmos defendendo o que foi conquistado. Isso faz parte da nossa mobilização. Deixar os nossos afazeres e fazer a luta”, coloca Lisete Maria Bernardi, agricultora familiar de Santa Terezinha do Progresso, região metropolitana de Chapecó (SC).

Lisete atua no movimento sindicalista há dez anos/Foto: arquivo pessoal

Bernardi, que começou a trabalhar no campo aos oito anos, é coordenadora do Sindicato Regional de Campo Erê e secretária de comunicação da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul do Brasil (Fetraf – SC). Ela participa da mobilização junto às mulheres sindicalizadas em parceria com a via campesina e o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Oito ônibus saíram do estado rumo a Brasília. “A marcha não acontece somente com mulheres agricultoras, o Sinte tem um movimento de mulheres que é um sindicato que está dando apoio, nós temos as mulheres do sindicato do comércio. Então a Marcha das Margaridas não acontece somente com as mulheres da agricultura” ressalta. 

A trabalhadora participou de outras edições da marcha antes de ser dirigente sindical e como liderança atua há mais de dez anos. “Como dirigente estou sempre participando e todas essas lutas que vieram garantir os nossos direitos na questão da violência contra a mulher e as várias formas de violências, elas não só existem, elas acontecem com a mulher agricultora. Eu tenho sempre participado como forma de incentivo e capacitação contra as violências que acontecem” relata.

No encontro nacional a proposta é discutir com as mulheres a retirada de direitos pelo atual governo e buscar outros caminhos possíveis frente à reforma da previdência. “É um momento que nós precisamos ter mais unidade e se desafiar muito mais. Muitas mulheres estão amedrontadas porque tem uma investida muito grande contra nós. Nossa maior reivindicação é contra a reforma da previdência que está retirando direitos da mulher trabalhadora em todas as categorias. Nós já estamos sentindo os efeitos”, analisa a sindicalista.

Ela observa que por esses motivos cada vez mais as mulheres estão se aproximando do feminismo. “Como mulher nesse contexto do machismo vejo um processo de libertação das mulheres, pela luta e pela persistência das mulheres na defesa da igualdade, da justiça, contra a violência. E não é só a mulher que é beneficiada, a família toda é beneficiada. Cada vez mais as mulheres estão se aproximando do feminismo”.

Com relação ao uso de agrotóxicos nas plantações de alimentos ela conta que esse debate vem aproximando as mulheres agricultoras. “Que qualidade de vida nós queremos? São modelos de produção que geram a morte. É um desafio. Esse debate vem aproximando nós mulheres trabalhadoras nesse contexto da agricultura familiar, onde 70% dos alimentos que vão para a mesa dos trabalhadores de fato são alimentos que vão produzir vida, estamos atacando esse modelo perverso e que traz doença para a nossa população. Vamos fazer esse enfrentamento acreditando no nosso potencial enquanto mulheres e a nossa capacidade de buscar aquilo que é de direito nosso”, destaca a sindicalista.

São eixos políticos da marcha a luta por: 1. por terra, água e agroecologia, 2. pela autodeterminação dos povos, com soberania alimentar e energética, 3. pela proteção e conservação da sociobiodiversidade e acesso aos bens comuns, 4. por autonomia econômica, trabalho e renda, 5. por previdência e à assistência social pública, universal e solidária, 6. por saúde pública e em defesa do sus, 7. por uma educação não-sexista e antirracista e pelo direito à educação do campo, 8. pela autonomia e liberdade das mulheres sobre o seu corpo e a sua sexualidade, 9. por uma vida livre de todas as formas de violência, sem racismo e sem sexismo, 10. por democracia com igualdade e fortalecimento da participação política das mulheres.

 

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