No contexto em que vivem as mulheres indígenas não há espaço para o desânimo e a inércia diante dos tempos de incertezas como o que estamos vivendo. Com o poder da coletividade e a certeza de suas tradições ligadas à terra, elas marcham em defesa dos direitos adquiridos e buscam, na coerência de seus discursos, amplificar suas reivindicações. Querem mostrar à sociedade brasileira a diversidade cultural inerente a ela e suas múltiplas identidades com o colorido das pinturas corporais, cantos e danças. Vindas de todos os estados, estarão reunidas na 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, de 9 a 13 de agosto em Brasília, se unindo à Marcha das Margaridas nos dias 13 e 14.

Sob o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, a realização da marcha, que tem início no Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, foi deliberada durante a plenária das mulheres no Acampamento Terra Livre (ATL), em abril. Desde então, lideranças de todas as regiões do país iniciaram o processo de mobilização e a captação de recursos para a realização do encontro. Doações podem ser feitas na plataforma de financiamento colaborativo Vakinha. É possível ainda colaborar doando milhas de viagens, mantimentos, cobertores e colchonetes.

A gestora ambiental Kerexu Yxapyry Eunice Antunes, da Terra Mbyá-Guarani do Morro dos Cavalos, lembra do processo de colonização e da resistência que os povos originários até os dias atuais, motivos que as levaram à marcha. “Hoje todo mundo já conhece o contexto geral das políticas que vem por todos os meios atacando os nossos direitos já garantidos. Nós sempre soubemos que a mulher assim como a terra e outras riquezas do Brasil são alvos de exploração dos colonizadores. Em carta, Pero Vaz de Caminha relatou aos reis de Portugal todas as coisas belas, as riquezas que encontrou no país. Ele fala da terra, do ouro e cita também as mulheres com a pele e rosto perfeitos, com partes descobertas. A gente percebe uma propaganda de exploração da nossa América. E a gente sofreu toda essa exploração, essa violência, de todas as formas” declara Yxapyry. 

Para ela, as mulheres sempre estiveram na comunidade exercendo tarefas de retaguarda para dar possibilidade à continuidade das tradições do grupo, frente à saída dos homens para defender seus territórios. “A gente sempre fez esse papel de protetora, em todos os sentidos. Inclusive para os nossos guerreiros que sempre foram a frente dessa luta. Enquanto avançavam nessa luta, nós estávamos nas aldeias cuidando das nossas crianças, terra, alimentação, sementes, língua e do nosso sagrado que é de todos os povos”, diz a indígena.

“Hoje a gente percebe que a parte de organização sustentável do povo indígena da floresta, da terra e da parte do sustento mesmo de sobrevivência dos povos originários está nas mãos das mulheres”, pontua a entrevistada.

Kerexu Yxapyry Eunice Antunes, sua mãe Jaxuka Rete Ivete de Souza e a irmã Ara’i Elizete Antunes, atual cacica da aldeia Yakã Porã, no Morro dos Cavalos, Palhoça (SC) /Foto: Ingrid de Assis.

Yxapyry, que já foi cacica, conta que as mulheres indígenas são responsáveis pelo desenvolvimento sustentável das comunidades. “Essa 1ª Marcha de Mulheres é justamente para dizer isso, que a gente tem esse projeto de vida, esse projeto sustentável e de proteção sempre esteve e estará conosco. E com toda certeza é o único projeto que pode salvar o planeta. E quero deixar bem claro que essa junção, a união de todas as mulheres indígenas e também com as não indígenas, está vindo com essa força para somar na luta junto dos nossos guerreiros. Não estamos indo fazer esse enfrentamento diante dos homens, dos líderes, mas estamos indo para juntar essa força pra gente conseguir vencer”, explica.

Há uma constante preocupação com a vida, diante dos assassinatos de lideranças dos grupos para tentar desmobilizar e desarticular as ações de preservação ambiental e territorial, por isso dedicam-se ao trabalho com as bases. “Porque a gente viu que enquanto nós mulheres estávamos nas aldeias fazendo toda essa proteção, muitos dos nossos guerreiros morreram e hoje, mais do que nunca, estão morrendo. Só essa semana vários guerreiros morreram. A gente soube hoje ainda que um cacique do povo Apurinã foi baleado com dez tiros. A gente está indo com tema bem forte que nos representa muito, que é ‘Território: nosso corpo, nosso espírito’”, conclui Kerexu.

Um dos anciãos do grupo Wajãpi do Amapá, cacique Emyra Wajãpi, 69 anos, da comunidade Yvytotõ, foi violentamente assassinado em julho dentro de seu território. O grupo Wajãpi vem sofrendo invasões de garimpeiros desde a década de 1970 no Amapá

A representatividade indígena na Câmara Federal fortalece a marcha

A advogada e deputada federal pelo estado de Roraima, Joênia Wapichana, da Rede Sustentabilidade (2019-2022) tem um papel importante na Câmara e já conseguiu articular ações na Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas e a luta pela permanência da Fundação Nacional do Índio (Funai) na demarcação de terras indígenas. Em entrevista ao Portal Catarinas ela fala sobre a marcha. 

Deputada Federal indígena Joênia Wapichana (RR) pela Rede Sustentabilidade (2019-2022) /Foto: Acervo Pessoal.

“A Marcha das Mulheres Indígenas vem somar a toda uma mobilização nacional que os povos indígenas iniciam em 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, e também com a Marcha das Margaridas. As mulheres estão colocando para a grande sociedade brasileira a importância de terem suas necessidades atendidas, protegidas e principalmente neste contexto onde os direitos dos povos indígenas estão ameaçados. Então, a marcha mostra à sociedade brasileira como é importante ter a proteção dos direitos dos povos indígenas a partir dos direitos das mulheres”, comenta Wapichana.

Joênia Wapichama ressalta o papel central das mulheres indígenas na continuidade da tradição das comunidades. Elas lutam contra a mineração ilegal em suas terras, contra a construção de hidrelétricas em terras imemoriais, contra o desmatamento, pela demarcação de territórios ainda não demarcados, por saúde, alimentação, educação aos moldes da tradição indígena de cada grupo. Ela faz um alerta dizendo que

“existe toda uma pressão em relação à redução das garantias constitucionais que a população tem sofrido, principalmente mulheres e crianças, com o processo de colonização que ainda não acabou”, afirma a deputada Joênia Wapichana.

“Em tempos de doença a reação das mulheres indígenas significa um movimento de cura”

Uma das organizadoras da marcha, Célia Xakriabá, integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em Minas Gerais, conta que a flexibilização do uso de armas e a pressão sofrida permanentemente nos territórios indígenas afeta de forma direta a vida das mulheres e das gerações futuras. “Para nós, essa marcha é muito importante, sobretudo neste contexto de pressão e ataques às comunidades indígenas. As mulheres indígenas estão à frente disso, principalmente se considerarmos que os ataques se dão nos territórios e que a questão da flexibilização do armamento atinge diretamente os nossos corpos”, afirma ao Portal Catarinas. 

Conforme a ativista, a marcha é mais uma forma de resistência por tocar o útero, o interior fecundo de cada cultura. “Quando atinge o território e a mulher, atinge também as gerações futuras. O nosso útero também fica comprometido e não apenas o território. A gente entende que o território é corpo e corpo também é território. É essa conexão com a ancestralidade que tem feito com que nós, povos indígenas, resistíssemos mais uma vez”. 

Célia Xakriabá (MG) da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)/Foto: Acervo Pessoal.

“Tenho falado bastante que só quem está em crise profunda sabe que são as mulheres que curam. Neste processo de 519 anos de resistência, nós povos indígenas temos muitas cicatrizes, mas nós também sabemos o remédio que cura. Por isso, acreditamos que a marcha é um movimento de cura, em que as mulheres indígenas emergem com essa voz nesse lugar como estratégia de luta e de pensar o diálogo nessa unificação da luta que é urgente”, destaca a integrante da APIB.

A entrevistada faz referência à expressão “ninguém solta a mão de ninguém” e que para ela seria “muito mais do que isso, é não soltar a luta, porque quando se tenta negociar direitos trabalhistas, a reforma da previdência, o direito à educação diferenciada, a saúde indígena, estão tentando negociar políticas públicas. Mas quando se pensa em negociar o nosso território está se tentando negociar as nossas vidas”.

Xakriabá explica que o modo de vida tem conexão com a espiritualidade e o território. “Nós, povos indígenas, vivemos sob ameaça. Quando arrancam o direito ao território estão matando o nosso modo de vida. Na marcha faremos frente em defesa dos nossos modos de vida, da sustentação da nossa cultura”.

Para ela, a marcha tem sentido de retomada do lugar de fala como estratégia de luta para as mulheres voltarem fortalecidas para seus territórios. “Nós não estamos no momento de debater pautas, mas de fazer frente à luta para não apenas sobreviver, mas pensar outras estratégias de vida também no território”. 

Célia Xakriabá enfatiza que o encontro com o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito” será um ritual para a reanimação e reorganização dos territórios. “As mulheres têm uma expectativa muito grande na marcha porque a gente tem falado que em tempos de doença a reação das mulheres indígenas significa um movimento de cura. É momento de potencializar as nossas vozes, não apenas externalizada, mas também no lugar do território. A marcha tem esse sentido de pensar a situação das mulheres indígenas preparando para um ano que é político, encorajando para assumirem outros lugares para além da aldeia”, ressalta.

A Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas foi Instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) na década de 1990.

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  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

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