Por Paula Guimarães e Natália Veras.

Em 2017, 18 estados brasileiros registraram 331 processos pela prática do autoaborto, o aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento tipificado no artigo 124 do Código Penal. Boa parte deles nasceu de denúncias de profissionais de saúde no momento em que a mulher buscava o atendimento de emergência para tratar uma complicação. O levantamento [1] produzido pelo Portal Catarinas em parceria com a GHS Brasil também analisou os números de processos por aborto provocado por terceiros tipificados nos artigos 125 (sem o consentimento da gestante) e 126 (com o consentimento da gestante).

Acesse o levantamento.

Obtidos por meio dos tribunais de justiça de cada estado, os números englobam todas as fases do processo criminal que envolvem uma denúncia de aborto, desde o registro inicial na delegacia (boletim de ocorrência, prisão em flagrante da mulher, em alguns casos), passando pela abertura do inquérito policial, oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e procedimentos da ação penal. A quantidade de processos pode ser ainda maior porque em muitos casos o crime é classificado, no início do processo criminal, genericamente como aborto, sem ser tipificado em nenhum artigo do código penal. Santa Catarina, por exemplo, possui 93 processos classificados como “aborto” de 2013 a 2017 contra 89 por “aborto provocado pela gestante” e 40 por “aborto provocado por terceiros” no mesmo período.

Mas este não é o único problema para se obter o número exato de mulheres criminalizadas pelo procedimento. Cada processo pode indicar uma movimentação diferente de uma mesma acusação. Ou seja, a prisão em flagrante de uma mulher por autoaborto é contada como um processo, e a posterior denúncia pelo Ministério Público desta mesma mulher – fase que marca o início da ação penal – é catalogada como outro.

De acordo com a defensora pública de São Paulo, Ana Rita Prata, enquadram-se no artigo 124, que versa sobre o autoaborto, tanto as mulheres que praticaram o aborto, quanto as pessoas que as auxiliaram de alguma maneira durante o procedimento, como marido, namorado ou amiga. Tal enquadramento difere-se da tipificação expressa no artigo 126, em que o sujeito da ação é aquele que provoca o aborto na mulher (realiza diretamente o procedimento) com o consentimento dela. “Para cada pessoa que é criminalizada como partícipe ou coautora, há uma mulher que abortou ou morreu (em caso de procedimento inseguro)”, explica a defensora.

São Paulo é o estado com o maior número de processos por aborto provocado pela gestante do Brasil: Ao todo, foram 250 entre 2015 a 2017, um aumento de 25% no período.

Sergipe registrou crescimento de mais de 90% em processos, com 23 em 2017 contra 2 em 2016. No final do ano passado, o governo deste estado manifestou posição contrária à ação que pede a descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal (STF), ao apresentar o pedido de “Amicus Curiae” (que em latim significa Amigo da Corte) para participar da discussão, apresentando argumentos aos ministros. Na ação protocolada no Supremo, o estado não só deixa clara a sua posição contrária ao aborto como ainda afirma que se recusará a prover o serviço, caso o aborto venha a ser legalizado. “A descriminalização do abortamento não imporia a Sergipe, inexoravelmente, o dever de disponibilizar sua estrutura e profissionais de saúde a essa prática hoje criminosa, já que a licitude de um ato não o torna obrigatório e menos ainda impõe que um terceiro com ele colabore”, diz o trecho do pedido.

Porta para o sistema penal
Em geral, a denúncia prejudica a mulher em diversas áreas de sua vida. “Nesse ano eu parei. Sinto muita tristeza com tudo, nem gosto mais de sair de casa, saio só quando muito necessário. Uns dizem que estou com depressão. Até peguei anemia depois do que aconteceu. Minha rotina é ficar em casa chorando o dia todo. Quando eu lembro de tudo, só quero ficar sozinha e trancada”, revelou uma jovem denunciada por profissionais da equipe médica durante socorro no Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, em fevereiro do ano passado.

Segundo apurou estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro a prática de denúncia por profissionais de saúde – quando mulheres buscam atendimento após um abortamento inseguro – é a forma mais comum de entrada no sistema penal por aborto. Conforme a pesquisa, em 65% dos casos as acusadas foram denunciadas durante atendimento de emergência médica. Em 20% deles, as denúncias foram feitas por familiares e vizinhos. Em um dos casos (5%) a mulher alegou ter sido obrigada pelo namorado a tomar o remédio abortivo, mas acabou sendo processada pelo art. 124. Ao final, o juiz considerou a denúncia improcedente.

“Além de ser contra a ética médica, criminalizar a mulher a afasta dos hospitais e isso pode agravar ainda mais sua situação de saúde. Já vimos isso em outros casos, com mulheres usuárias de drogas que deixaram de procurar assistência porque tinham medo de ter seus filhos recolhidos à adoção”, afirma Maria Esther Vilela, mestre em saúde da Mulher e ex-coordenadora de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde.

A quebra do segredo médico é crime e pode resultar em ação indenizatória por danos morais e materiais, e processo ético-profissional no conselho de classe. O crime para revelação de segredo no exercício da profissão tem como pena detenção de seis meses a dois anos ou pagamento de multa. “O Código de Ética Médica é taxativo: é vedado ao médico revelar fato que tenha conhecimento no exercício de sua profissão”, afirma o médico Antonio Pereira Filho, Conselheiro e Coordenador do Departamento de Comunicação do Cremesp. “No momento em que o médico revela que uma paciente fez o aborto, ele infringe o Código Civil, o Código Penal e o Código de Ética Médica e cabe à pessoa prejudicada mover ação civil de reparação de danos, ação criminal e denúncia ao Conselho Regional.

A produção de provas por meio da quebra de sigilo médico contra acusadas de autoaborto pode não ter validade e resultar em trancamento da ação penal, conforme decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em favor de uma jovem de 21 anos. A Corte aceitou o argumento da Defensoria Pública de São Paulo de que as provas utilizadas para incriminá-la, além de insuficientes, eram ilícitas, pois tinham sido obtidas por meio de denúncia de uma médica que a atendeu num hospital público, o que viola o sigilo profissional. O pedido integra um conjunto de 30 habeas corpus impetrados em favor de mulheres acusadas do mesmo crime.

Entenda o fluxo do processo penal quando a denúncia parte do sistema de saúde

“As únicas mulheres criminalizadas são aquelas que já se submetem a procedimentos inseguros e arriscados, e recorrem ao sistema público de saúde – portanto, são mulheres que já se encontram em uma situação vulnerável”, afirma a advogada Mariana Prandini Assis, do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular. Segundo ela, a partir da denúncia, essas mulheres passam a sofrer ainda a violência do Estado em sua forma mais crua: o sistema penal. “Como os dados da pesquisa da Defensoria Pública do Rio nos mostram, as mulheres criminalizadas são mães, pobres, negras, e sem nenhuma condenação penal anterior. A gente pode imaginar as consequências da criminalização para essas mulheres, cujas vidas são marcadas pela cotidiana negação de direitos”, assinala.

Mariana aponta para a ausência de debate sobre o estigma e os danos psicológicos decorrentes da criminalização em um sistema de justiça como o brasileiro, que  parte do princípio que todos são culpados e não inocentes. “A pessoa está o tempo inteiro respondendo ao processo com a carga de culpa e estigma social. Imagine o que a criminalização significa para pessoas leigas, que não gozam do efetivo direito de acesso à justiça”, diz Mariana. “O próprio processo criminal já funciona como cumprimento de pena pela carga negativa que ele representa”.

[1] A metodologia aplicada consistiu no envio de e-mail às assessorias de imprensa de todos os tribunais de justiça, solicitando o número de processos por autoaborto distribuídos no estado nos três últimos anos, segundo a tipificação nos artigos 124, 125, 126 e 127, do Código Penal brasileiro. Enviaram dados os estados de Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. Acre, Amapá, Pará, Paraíba, Piauí, Roraima e Tocantins não responderam. Ceará não classificou os números de acordo com a tipificação penal e Amazonas enviou dados somente da capital. A construção metodológica contou com o suporte do projeto Trincheira integrado pelas organizações Ipas (organização internacional em defesa dos direitos reprodutivos), Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e Observatório de Sexualidade e Política (SPW sigla em inglês).

Atualizada às 14h45 de 3 de maio.

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