“Jamais iria estuprar você porque você não merece”. É difícil pensar que um dos primeiros colocados ao cargo máximo do poder executivo brasileiro tenha se referido assim a uma pessoa. A agressão foi direcionada à deputada Maria do Rosário (PT/RS), dentro do salão verde da Câmara Federal. Não bastasse o reforço à violência acometida por pelo menos 50 mil brasileiras ao ano, ele a empurrou e a chamou de “vagabunda”. Mesmo registrada em vídeo, a agressão não impediu Jair Bolsonaro (PSL/RJ) de continuar exercendo sua função no legislativo, tampouco de disputar a presidência do Brasil e ser um dos líderes em intenção de voto, segundo a última pesquisa Datafolha. Sua liderança (24%), no entanto, não é maior que a rejeição ao seu nome (43%).  Na pesquisa CUT/Vox Populi, ele aparece na segunda colocação. Nenhuma mulher merece certamente um presidente que as hostilize publicamente sem nenhum pudor. Ainda mais num país em que representam 52% do eleitorado.

Em uma semana, o grupo no facebook “Mulheres unidas contra Bolsonaro” ultrapassou um milhão e meio de integrantes. O movimento #ELeNão gerou efeitos para além das redes. Até a edição desta matéria contabilizamos mais de 30 atos previstos para ocorrer entre os dias 28, 29 e 30 deste mês. Sydney (Austrália) e Berlim (Alemanha) também integram a lista. “Não só mulheres da esquerda, autodenominadas feministas, têm se posicionado contra o candidato. As posições que ele andou expressando sensibilizaram um conjunto mais amplo de mulheres na rejeição ao nome dele. Ele conseguiu ampliar e aglutinar no Brasil a rejeição contra os discursos misóginos. A resposta está aí nos dados de pesquisa. Se o maior desafio de Bolsonaro é ultrapassar aqueles 20% da intenção de voto, as mulheres são barreira fortíssima. Vejo isso com muito otimismo”, avalia Carla Almeida, professora de Ciência Política da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e pesquisadora dos temas de gênero, política e participação política.

Imagem que ilustra a chamada para o evento em Macaé (RJ)/Foto: divulgação

A rejeição ao candidato entre elas cresceu seis pontos percentuais nos últimos dias: 49% não votariam de jeito nenhum nele. Ele tem 32% de intenção de votos entre os homens ante 17% entre as mulheres. A maior discrepância da história das eleições presidenciais brasileiras. Sim, somos as mulheres, a principal frente contra essa candidatura.

“O que tem de novo é que há uma articulação de mulheres muito diversas, mas que manifestaram indignação comum contra o discurso que encontra no Bolsonaro seu porta voz. A mobilização cruza mulheres de diferentes idades e espectros políticos. O que estão dizendo é: não queremos ter um presidente da República que assuma esse discurso machista na cena pública. Há que se ter limites e acordos em torno de princípios até para que a disputa possa ocorrer. Há uma reação que extrapola a cena eleitoral. Tem a ver com um patamar que parece ter sido vencido de que as mulheres chegaram para ficar”, afirma Almeida.

Ao votar pelo impedimento da presidenta Dilma Rousseff em 2016, o ex-deputado proferiu um discurso, no mínimo anti-republicano, em que elogiou a ditadura e a tortura. “Pela memória do coronel Carlos Brilhante Alberto Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um dos coronéis da ditadura mais conhecidos pela perversidade com que torturava presas/os políticos.

“A gente teve um golpe machista e misógino e hoje a gente tem um personagem que representa esse golpe enfrentando sérios problemas pra ser bem sucedido eleitoralmente em função das forças políticas que crescerem no período da redemocratização”, afirma Almeida.

Estão representados na figurada do candidato preconceitos históricos, que hoje são acolhidos sem constrangimento por parte da sociedade brasileira (seus eleitores), contra mulheres, comunidade LGBTI+, negros, pobres, indígenas e quilombolas. “Essas forças conservadoras sempre existiram, o que tem na atualidade é que se organizaram e estão na cena pública reivindicando o espaço de sempre, aquilo que se imaginava que era direito. É uma reação aos novos personagens da cena pública, mulheres, jovens, LGBT que se organizam em coletivos para reivindicar seus direitos”, argumenta a entrevistada.

Assista à entrevista em que ele diz que não pagaria às mulheres o mesmo salário dos homens.

Como explica Carla, vivemos um “tempo cruzado”, caracterizado pelo cruzamento do legado da democracia com a reação conservadora, representada na liderança do candidato. Há uma presença inédita na cena pública de grupos organizados em torno dos direitos das mulheres e LGBTI+. “O discurso sobre direitos das mulheres e LGBT se ampliou, circulou mais para a sociedade para além daquele grupo restrito das escolarizadas, brancas, das universidades. A gente está vivendo por um lado uma sociedade que experimenta a força do período de maturidade democrática, e por outro, uma sociedade que enfrenta a reação das forças conservadoras ao que a gente assistiu de avanço”.

De acordo com a entrevistada, a ascensão do pensamento neoliberal e reacionário está inserida no contexto mundial de reorganização das novas direitas. Por sua vez, Brasil e a América Latina experimentam esse momento de forma particular em função do curto período de democracia. “Nos últimos 30 anos tivemos no Brasil a experiência mais longa de democracia. Pela primeira vez temos de fato uma reivindicação de demandas e direitos que se espraiou para a sociedade para além das forças tradicionais, como partidos de esquerda e sindicatos, que sempre foram portadoras deste discurso. Expande-se até para além de movimentos, há pessoas engajadas fora de organizações, e essa é a forma como essa nova geração se organiza politicamente. Também há formação de coletivos na ação política da direita”, analisa a pesquisadora.

O golpe de gênero
Não é possível avaliar a cena destas eleições sem entender que sua configuração é atravessada pelo processo que destituiu em 2016 a única mulher eleita democraticamente em toda a história da República brasileira. O golpe tem a marca da reação conservadora ao que representou a conquista das/os trabalhadoras/es e das mulheres no espaço público. “O golpe foi perpassado o tempo todo por questões de gênero, ainda que não se restrinja a isso. Foi um golpe acompanhado de um discurso misógino, machista, incentivado pelo projeto de desconstrução dos direitos das/os trabalhadoras/es”, destaca a pesquisadora.

Protesto em 2 de setembro de 2016; manifestantes pediam a saída de Michel Temer/ Foto: Catarinas

Para a doutora em comunicação e cultura, Linda Rubim, umas das organizadoras do livro “O golpe na perspectiva de gênero” editado neste ano pela Edufba, a destituição da única mulher a ocupar o cargo da presidência foi um grande fator de mobilização das mulheres à resistência.

“Vimos no final do governo Dilma o apoio das mulheres a ela e nesse momento se construiu um percurso de reação. Nunca vi tanta organização de mulheres florescer e enfrentar essa questão da desigualdade de gênero. As mulheres reagiram ao golpe e estão tomando posições extremamente importantes como, por exemplo, essa reação nova a um candidato que tem uma postura claramente misógina e absurda em relação às mulheres”, analisa Rubim.

Leia também Dilma e os leões do patriarcado

A pesquisadora conta que ao organizar a publicação percebeu a ausência de reconhecimento de questões relativas a gênero, que pode ser entendida como uma tentativa de silenciamento deste aspecto do golpe. “O golpe parlamentar e midiático foi também um golpe de gênero. Pela primeira vez uma mulher ousou ser presidenta e autoridade máxima do país. Ela inaugurou um espaço que até então não era para mulher e foi tirada do cargo daquele jeito. No governo Temer vivemos momentos significativos quando ele formou uma equipe formada somente por homens”, afirma a doutora.

Primavera feminista
Importante lembrar que o despertar das mulheres nas redes e nas ruas, ativado pela Primavera Feminista no final de 2015, também teve na figura de um parlamentar o motivo do levante. Elas foram às ruas para barrar o Projeto de Lei 5069, do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (hoje preso por corrupção), que buscava restringir o direito ao aborto previsto em lei. “Não é exagero afirmar que o enfrentamento que as mulheres fizeram à figura de Eduardo Cunha nas ruas das grandes cidades foi o mais contundente que um deputado jamais experimentou”, explicam Maíra Kubik Mano e Márcia Santos Macedo, autoras de um dos artigos do livro já mencionado.

Ato contra o Projeto de Lei 5069 que restringia o direito ao aborto legal, em outubro de 2015, em Florianópolis/Foto: Catarinas

As autoras explicam que após um mês das manifestações, Cunha aceitou o pedido de impedimento da presidenta, no mesmo dia em que o PT havia anunciado que votaria pela cassação do deputado, com o aval de Dilma. “Não é sem razão que um dos principais embates feministas desses últimos tempos tenha ocorrido entre Eduardo Cunha e as feministas. Ou que a votação do impeachment tenha sido marcada por discursos a favor de uma percepção limitada de família, da religião como guia para a política e da tortura como arma de destruição ao contraditório”, assinalam.

 

 

 

 

 

 

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Últimas