Há onze anos no poder, o presidente da Nicarágua Daniel Ortega, ex-guerrilheiro que integrou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) contra a ditadura Somozista, se assemelha, hoje, ao seu antigo opositor político. Nos últimos dois meses, centenas de manifestantes foram mortos e milhares ficaram feridos pelas mãos do aparelho repressor do Estado e de forças paramilitares que o apoiam (FSLN). Jovens foram presos e parte deles torturados. No auge da crueldade, hospitais forçaram as famílias a assinar um documento para não denunciar a morte em troca da entrega do cadáver. Há relatos de famílias que tiveram que enterrar seus filhos no quintal de casa por falta de autorização para realizar o sepultamento em cemitério.

A reforma da Previdência Social, que reduzia as aposentadorias em 5% e aumentava as contribuições das empresas e dos trabalhadores, imposta por decreto em abril, foi o estopim da crise, motivando cinco dias de manifestações que levaram à morte de 30 pessoas, majoritariamente jovens. Ortega recuou e revogou a reforma, mas os protestos tomaram corpo ainda maior contra os assassinatos.

“O governo de Ortega-Murillo se tornou uma ditadura que viola sistematicamente a Constituição e os direitos humanos do povo nicaraguense, incluindo o direito à liberdade de expressão, organização e protesto”, afirma a socióloga e mestre em Gênero e Desenvolvimento, Maria Teresa Blandón. Em entrevista ao Catarinas, a professora universitária e coordenadora do Programa Feminista La Corriente denuncia a repressão brutal que assola o país.

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Em 2017, o presidente da Nicarágua foi empossado para o seu quarto mandato de cinco anos e o terceiro consecutivo, com sua esposa como vice-presidente, Rosario Murillo. No país, onde não há limite de mandatos graças a um projeto de Ortega que modificou a Constituição Federal em 2014*, manifestantes protestam também contra fraudes nas últimas eleições, contra o nepotismo e o enriquecimento ilícito da família presidencial.

Catarinas: Qual é a situação na Nicarágua hoje?
Maria Teresa Blandón: A Nicarágua vive uma situação de terror, medo e indignação, como resultado da violência desencadeada pelo governo nicaraguense contra a população. Em apenas 60 dias, forças antimotim que atuam em conjunto com paramilitares e criminosos comuns recrutados por estes últimos, mataram mais de 220 pessoas, a maioria homens jovens nas principais cidades do país. Além disso, mais de 2.500 pessoas ficaram feridas e dezenas de pessoas foram perseguidas e presas ilegalmente. As forças paramilitares que assolam os bairros de diferentes cidades disparam tiros à queima-roupa, saqueiam empresas e queimam casas de pessoas que participaram das marchas de protesto em massa contra o governo Ortega-Murillo, realizadas em todas as cidades do país. Está suficientemente documentado que nas ações de violência contra a população, não apenas membros da polícia do governo participam, mas também trabalhadores de instituições do Estado. Em todos os municípios onde a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) detém o controle dos governos municipais, os próprios prefeitos dirigem os grupos irregulares encarregados de aterrorizar a população.

Catarinas: O que desencadeou o assassinato de jovens pelo Estado? Como isso aconteceu?
É precisamente a repressão do governo Ortega-Murillo contra qualquer protesto cidadão que desencadeou esta situação de crise nacional. Em 2013, o governo reprimiu brutalmente um grupo de jovens que apoiavam as demandas dos idosos em sua exigência do pagamento de aposentadorias. Essas ações repressivas e intimidadoras foram repetidas contra organizações feministas que há 11 anos denunciam a violação de direitos, incluindo a criminalização absoluta do aborto e a impunidade contra a violência sexista. Mobilizações de colonos contra a instalação de empresas de mineração também foram reprimidas em diferentes partes do país. Em meados de abril deste ano, um grupo de jovens da capital que protestavam contra a ineficiência do governo para frear o fogo na reserva Indio Maíz, que deixou milhares de hectares de floresta arrasados, foi brutalmente reprimido por forças de choque do governo, denominadas juventude sandinista. Simultaneamente o governo anunciou uma reforma da lei de seguridade social pela qual os trabalhadores são obrigados a aumentar a taxa de contribuição, num país onde o salário mínimo não excede os 120 dólares – o menor da América Central. Um grupo de pessoas do terceiro departamento de Leon (oeste do país) protestaram contra essa medida arbitrária e também foram brutalmente atacadas por forças de choque do FSLN. Tais eventos são os gatilhos da violação sistemática do direito à liberdade de expressão, organização e mobilização, registrada na constituição política da Nicarágua. A partir desse momento, alunos das principais universidades tomaram os campi, e tornaram-se vítimas de uma repressão brutal pela polícia e paramilitares, a tal ponto que em apenas duas semanas foram assassinados mais de 50 jovens. Desde então, diferentes setores da população da Nicarágua, incluindo camponeses, homens e mulheres de universidades vizinhas e da população em geral, se mobilizaram contra a repressão e exigem a retirada imediata do governo Ortega-Murillo.

Catarinas: Qual é a justificativa formal do governo para a repressão? Que cenário político fortalece esse tipo de ação?
O governo OM no início nem sequer sentiu a necessidade de justificar estes atos repressivos – como tinha sido feito nos anos anteriores – embora posteriormente tenha acusado os estudantes universitários e jovens dos bairros de serem parte de uma estratégia desestabilizadora da direita, alternando tal acusação com a de serem responsáveis por cometer atos delinquentes (grupos de “vandalismo” é o que a vice-presidenta do país os chamava). Por 11 anos consecutivos, o casal Ortega-Murillo consolidou um modelo de governo autoritário, vertical e altamente personalizado na figura do casal presidencial. Eles conseguiram, por um lado, o controle absoluto de todos os poderes do Estado e o desaparecimento ou enfraquecimento dos partidos políticos da oposição.

Esta situação provavelmente não teria sido possível sem um esquema corporativo levado a cabo com bastante êxito, pelo qual o governo Ortega-Murillo consolidou sua aliança com as grandes empresas, o que lhe garantiu um quadro macroeconômico favorável aos seus interesses, o enfraquecimento da legislação trabalhista e o controle das organizações sindicais para evitar protestos dos empregados. Além disso, eles têm o monopólio da maioria dos meios de comunicação e meios de transmissão, através do qual eles desenvolveram uma estratégia sistemática de manipulação, ampliando as supostas realizações do governo e silenciando qualquer crítica de sua administração.

Catarinas: Você viveu durante o regime de Somoza e participou da revolução sandinista dos anos 80. Quais são as semelhanças do passado com a realidade atual?
Embora eu ainda fosse muito jovem durante a ditadura de Somoza, posso dizer que Ortega-Murillo, como Somoza, recorreu ao pacto com a grande empresa privada, baseado na concessão de regalias e corrupção; ao controle dos poderes do Estado e violação sistemática da Constituição; à perseguição ou compra de partidos da oposição; à fraude eleitoral para manter o poder e, finalmente, à repressão que estamos vivendo hoje.

Catarinas: De que maneira os países latino-americanos se envolveram com o que está acontecendo na Nicarágua?
Houve algumas declarações minoritárias de apoio ao governo Ortega-Murillo, principalmente dos governos de El Salvador, Cuba, Venezuela e Bolívia. Outros governos se pronunciaram favoravelmente à abordagem da situação de violência na Nicarágua, no âmbito da recente assembléia da ONU, destacando-se por sua beligerância com o novo governo da Costa Rica.

Catarinas: De que forma os movimentos (incluindo o feminista) responderam à repressão?
O movimento feminista junto com outros movimentos sociais dispôs-se de maneira combativa a denunciar a violência do Estado desencadeada pelo governo: fornecendo acompanhamento às vítimas dessa violência; protegendo os defensores dos direitos humanos que enfrentam situações de perseguição e ameaças; apoiando grupos de estudantes que participam de ações de resistência à repressão (ocupações de universidades, levantamentos de barricadas em suas respectivas comunidades para evitar ataques de grupos paramilitares); documentando a violação dos direitos humanos, e apoiando organizações nacionais e internacionais de direitos humanos.

Catarinas: Como políticas e políticos se posicionaram em relação à repressão?
O panorama dos partidos políticos na Nicarágua é devastador. O parlamento tem a presença majoritária da bancada da FSLN; uma facção minoritária responsável pelo pacto que levou Ortega ao governo em 2007, e uma facção liberal-conservadora que não desempenhou nenhum papel durante a crise. De qualquer forma, mesmo antes do início da atual crise, são políticos vindos de partidos já desintegrados e que formaram alianças cívicas para estabelecer posições diante da crise. Na verdade, o diálogo nacional durante cinco semanas foi instalado no país com o objetivo de encontrar uma solução negociada para a crise, cujo mediador é a Conferência Episcopal da Igreja Católica, que têm como interlocutores, por um lado o governo e, por outro lado, o Conselho Superior de Empresas Privadas (COSEP), além de representantes de várias organizações da sociedade civil, camponeses e jovens.

Catarinas: O que precisa ser denunciado ao mundo?
Que o governo de Ortega-Murillo se tornou uma ditadura que viola sistematicamente a Constituição e os direitos humanos do povo nicaraguense, incluindo o direito à liberdade de expressão, organização e protesto. Que sua permanência no poder se deve à combinação de uma aliança com a grande empresa privada, a fraude eleitoral e a repressão de todas as manifestações de protesto dos movimentos sociais e das organizações sindicais. Deve ser denunciada com voz clara a repressão brutal que Ortega-Murillo desencadeou contra o povo nicaraguense, cujas principais vítimas são homens e mulheres dos setores mais empobrecidos da sociedade.

*Em janeiro de 2014, a Assembleia Nacional da Nicarágua, majoritariamente sandinista, reformou a Constituição removendo um artigo que limitava a dois o número de mandatos presidenciais, consecutivos ou não. As alterações à Constituição constavam de uma proposta apresentada por Ortega em novembro de 2013. Além de acabar com o limite de mandatos, os deputados decidiram que o presidente é eleito com maioria relativa de votos. Até então era obrigado a obter um mínimo de 35% da votação. Militares e agentes de segurança passam a fazer parte do governo, caso o presidente considere necessário para manter a segurança nacional.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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