“Ter onde morar, ter o que comer, ter acesso a médicos e hospitais: isso tudo é privilégio”, o relato de uma jornalista brasileira que vive na Itália.
Em um início de semana silencioso, os primeiros resultados do decreto assinado às pressas na madrugada de sábado (7) para domingo (8) já se refletiam nas ruas: quase tudo vazio. Medo, obediência, falta de entendimento? Tudo isso. Museus, cinemas, teatros, bibliotecas, escolas e universidades, eventos esportivos, congressos, enfim, todo e qualquer tipo de evento, público ou privado, que criava um mínimo de reunião e aglomeração de pessoas estava cancelado.
Até então, o único serviço ao público que funcionava era o comércio. De fato, os únicos lugares abertos eram bares, restaurantes, sorveterias, lanchonetes que tentavam seguir as indicações do Ministério da Saúde, como manter a distância interpessoal de um metro e fornecer sabão bactericida e álcool em gel aos clientes e funcionários. Não sabíamos ainda o que estava por vir.
Até aquele momento, a Itália se viu dividida entre “zonas amarelas” (áreas de médio risco de contágio) e “zonas vermelhas” (áreas de alto risco de contágio). Essas últimas eram aquelas cidades localizadas no epicentro da epidemia, todas situadas no norte do país, o coração econômico da Itália. Regiões como Lombardia, Vêneto e Emília Romanha se viram paralisadas diante a um vírus cuja transmissão foi rápida, silenciosa, democrática.
E então, outro decreto. Por volta de 21h (hora local) de segunda-feira (9), o Premiê italiano, Giuseppe Conte, fez um pronunciamento no qual extinguia as “áreas perigosas” e declarava uma “área laranja”: “Itália, área protegida”. O país inteiro tinha se transformado em uma zona de proteção (ou de combate) contra o vírus e entrado em uma espécie de “quarentena forçada”. E claro, mais medidas restritivas: sair de casa somente para ir ao supermercado, à farmácia, ao trabalho ou ao médico – e para tal, levar consigo a “autodeclaração”, de modo a comprovar a necessidade da “saída da quarentena”. Com a redução do deslocamento, a punição: multa de €206 (cerca de R$ 1.115,00), e em casos mais graves, reclusão de seis meses a 12 anos (pena prevista no Código Penal italiano). O governo italiano tinha, de uma vez por todas, declarado guerra ao vírus.
Eu acompanhei ao vivo as declarações de Conte, o qual logo virou alvo de memes na Internet entre os jovens italianos pelo fato de ser um homem “charmoso que governa por decretos”. De um dia para o outro, tive que tomar decisões rápidas e práticas: a primeira coisa que fiz, ao sair do trabalho, foi decidir junto ao meu companheiro, onde e que horas deveríamos ir ao mercado. Dizíamos frases como “Aquele mercado é muito cheio, melhor não” / “Verdade, melhor evitar contato com as pessoas”, “Aquele é muito longe, a gente não tá com a autodeclaração, e se a Polícia parar a gente?” / “Mas aquele bairro ainda é Perúgia, não vamos ultrapassar os limites da cidade”, “Ah, eu não quero ir naquele bairro, lá tem muito condomínio, muita família” / “Ok, então vamos naquele outro porque a essa hora não tem mais ninguém”. Ao chegar ao supermercado, nos deparamos com outra restrição e um cartaz com os dizeres “Somente 25 clientes por vez. A gerência”. “As pessoas estão respeitando o decreto. Então é pra valer”, pensei.
Aqui na Itália, nos supermercados (de qualquer tamanho), a seção hortifrutigranjeira disponibiliza luvas descartáveis de plástico aos seus clientes, para evitar que as pessoas toquem os alimentos frescos. Mas naquela terça-feira (10), entramos no mercado já com luvas cirúrgicas. Confesso, eu comecei a ter um leve medo de tocar as coisas: carrinho, dinheiro (as cédulas e moedas são perigosas), garrafas de vidro, tudo me dava a impressão de contaminação. Fui um pouco influenciada pelo meu companheiro, que estava decidido a enfrentar aquela ida às compras da melhor forma possível: ou seja, sair ileso de tudo isso. Não éramos os únicos a usar luvas; na verdade, o mercado disponibilizava luvas na entrada a todos os clientes (de uso obrigatório). Mais um efeito do decreto.
Durante as compras, situações estranhas: as pessoas se evitavam e nós evitávamos as pessoas; pessoas com máscaras, com muita, muita pressa – a Itália não é como a minha cidade natal, São Paulo: aqui, quase ninguém tem pressa. Creio eu que estávamos todos nos comportando de maneira estranha e nos sentindo esquisitos. “Ah, então é assim que as pessoas do norte estavam vivendo há semanas”, refleti. Por mais que tivesse uma epidemia a 300 km de distância (o que para nós, brasileiras, é relativamente perto, mas não para os italianos!), ninguém tinha realmente vivido na pele aquela agitação da doença.
Fizemos a nossa compra e fomos pagar: todos os funcionários do mercado estavam usando máscaras cirúrgicas e luvas, inclusive os operadores de caixa. “Faz sentido, afinal quantas pessoas diferentes, por dia, eles encontram e têm contato direto? Quantas vezes, por dia, eles pegam no dinheiro?”. Paguei com o cartão. Eu só queria ir embora dali.
Antes de entrar no carro, tiramos as luvas e limpamos as mãos com álcool em gel. No carro, mais apreensão: “E se eu não tiver lavado bem as mãos? E se eu tiver tocado uma coisa contaminada?!”. “Não, chega: não dá pra viver assim. Eu não sou assim”. Decidi, então, não entrar nessa neura: vou me cuidar, lavar as mãos (como eu sempre faço) e ficar atenta.
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No dia seguinte, no trabalho, mudei o meu computador de lugar: fui mais pra perto da janela, mais longe da minha colega (na nossa sala, somos só nós duas). Ela chegou tossindo: confesso, trabalhei a manhã inteira aflita. À tarde, a nossa chefe perguntou se preferíamos entrar “em férias” (entre aspas porque era tudo muito incerto, eu não saberia quanto tempo essas “férias” iriam durar e se seriam remuneradas) ou trabalhar de casa, via home office. Eu não hesitei: “Home office”. A ideia de enfrentar uma quarentena sem ter uma rotina ou algo de estimulante para fazer, sinceramente, não me convencia. Muito pelo contrário. Além disso, eu estou terminando o mestrado – a minha banca estava marcada para abril, mas através de outro decreto (mais um!), as colações de grau e defesas de mestrado e doutorado foram adiadas para maio/junho – e não queria passar o dia todo tendo que me preocupar “só” com isso. Afinal, estávamos há um dia em quarentena – sim, eu ainda estava trabalhando – e não sabia ainda como iria lidar com a ideia do isolamento.
Confesso que os dois primeiros dias de “quarentena” foram até que divertidos. Dormi bem, fiz tudo com calma, fui produtiva, comi bem, contava aos meus amigos que tão no Brasil – que ainda não estavam muito preocupados com o coronavírus – que eu achava que eu iria conseguir seguir encarando esse isolamento de maneira minimamente sã. Mas não foi bem assim. É estressante você saber que, teoricamente, não existe uma total violação do direito de ir e vir; se você ler o decreto, você até que pode sair de casa. Você precisa comer então você pode ir ao supermercado. Convenhamos: isso não corresponde a poder sair de casa e se sentir livre para viver a cidade. Por isso que, psicologicamente falando, você não pode (ou não deveria) sair de casa. São várias as pressões externas: o decreto, o governo, a mídia, a punição, a multa, o medo, “e se eu não tiver preenchido direito a autodeclaração?”. E principalmente: não é correto nem justo sair de casa quando está em curso uma pandemia, não?
Ao mesmo tempo, comecei a refletir sobre todos os meus privilégios. Bom, por ora – e por sorte –, eu tenho onde morar, eu consigo trabalhar de casa porque eu tenho, em primeiro lugar, um trabalho, internet e computador – o que me permite trabalhar de casa, mesmo que, convenhamos, trabalhar de casa não é exatamente um privilégio; é também uma fora de precarização do trabalho, dependendo de como encararmos o home office –, eu consigo estudar, pagar as contas e comer.
Não sou vítima de violência doméstica, então posso ficar em casa sem medo nenhum do meu companheiro. Abdicar da minha liberdade de sair, se isso é para o bem comum, não é nada perto das problemáticas que nós, mulheres, conhecemos bem. Claro, estando em casa, algumas coisas se fazem mais intensas, como a separação dos afazeres domésticos. Para mim, tudo é político e muita coisa passa pelo filtro da questão de gênero. Acredito que assim como a grande maioria das mulheres, eu me vejo mais responsável pela casa, por exemplo. E ficar em casa o dia todo pode fazer você viver na própria pele algumas situações bem exaustivas. Não à toa as feministas estão cansadas, não é mesmo?
Eu até que consigo fazer uma pausa de dez minutos do trabalho ou da pesquisa para limpar uma coisa ou estender a roupa; eu consigo não deixar a louça acumular e tento sempre deixar tudo em ordem (para evitar a super faxina, do qual eu não sou fã). Afinal de contas, vamos ter que viver um mês de caos externo, vamos tentar não vive-lo dentro de casa também. A coisa mais difícil, pelo menos para mim, é ter que “lembrar” o meu parceiro de “fazer as coisas”. Isso é um reflexo da nossa sociedade e da educação patriarcal. Eu fui ensinada, desde pequena, a me comportar de certa forma, a ter o “olhar treinado” para as coisas relacionadas ao lar. Para o gênero masculino, nem tudo é tão complicado assim. Aliás, é tudo mais fácil. Por mais que a busca por igualdade, dentro da nossa relação, seja uma constante, ela nem sempre é plena.
O meu pensamento foi além, e já no quarto dia, não pensava mais no quão difícil poderia ser ficar em casa. Comecei a ser um pouco fatalista: “e se estivermos vivendo uma distopia? E se aquela caminhada, pela manhã, para ir ao trabalho tiver sido a última vez que eu pude caminhar tranquilamente pela cidade? Mas logo agora que eu vou terminar o mestrado, que comecei a me sentir realizada no trabalho, que estávamos a poucos dias do início da primavera?” E de repente: “Ok, vai ficar tudo bem”. Algo continuava errado.
“Por que antes eu não tinha tempo para falar com os meus amigos? Por que antes os meus amigos não tinham tempo pra ler ou praticar esportes? Por que eu demorei tanto para assistir esse filme? Por que eu consigo dormir 8h por dia?”.
Hoje é dia 20 de março, primeiro dia de primavera por essas bandas (o dia lá fora é a prova definitiva de que o inverno acabou, finalmente!). Há muita confusão ainda sobre como preencher a autodeclaração, se a prática de atividades físicas está contemplada no decreto ou não, se é ético comprar comida de um produtor local que usa aplicativos de entrega.
Hoje completo, também, o meu décimo dia sem sair de casa. Faz dez dias que não vejo o meu irmão, os meus amigos, que não frequento os meus lugares favoritos de Perúgia. Os casos de coronavírus continuam aumentando em todo o país. O pico é previsto para domingo (22), segundo os médicos italianos. Suspeito que a nossa reclusão não irá terminar na sexta-feira, 3 de abril, como prevê o decreto-lei. Eu preciso ir ao mercado e à farmácia e terei que copiar a mão a autodeclaração (as papelarias estão fechadas e eu não tenho impressora em casa).
Um desejo? Não encontrar ninguém pelas ruas, por mais paradoxal que possa parecer.
* Bruna é formada em Letras pela USP, quase mestre em Comunicação Política pela Universidade de Perúgia (Itália) e integrante da Asociazione Bossy, coletivo feminista interseccional italiano.