Por Maimouna Diallo. 

Vivo em um país maravilhoso da África, a Guiné. Encontramos, diariamente, a beleza da natureza, estampada no rosto das pessoas e no colorido das suas roupas. É um mundo de festa, não fossem as contradições humanas. Uma delas está na maneira como as mulheres são vistas na nossa sociedade.

Quando ainda jovens, ao completarem 17 anos, os pais começam a se inquietar sobre o futuro delas. A certeza de que fizeram tudo certo, e dentro das normas da sua tradição, não é suficiente para garantir a felicidade da família. Aliás, a felicidade é a menor das preocupações. O que os pais querem mesmo é um bom casamento para suas princesas.

Isto demanda uma tarefa intensa por parte da família como um todo. Pai e mãe se dedicam a educar as filhas na arte de ser uma “mulher submissa”. Lições reforçadas pelos parentes mais próximos: avós, tios, tias, primos e primas. É um “empreendimento” coletivo, que se apoia nos ensinamentos religiosos e recebe a benção da cultura – neste caso, estamos falando de um país essencialmente muçulmano, com hábitos bastante enraizados nas diferentes etnias.

A ideia de se tornar uma “dona de casa” (em francês parece até um título pomposo: femme de foyer) é muito viva no imaginário das meninas, desde a primeira infância. Aqui dizemos que a mulher nasceu para ser dona de casa, deve preservar o lar a todo custo – ainda que isto sacrifique sua felicidade – até a sua morte.

Logo cedo aprendemos que o sucesso de uma mulher é cuidar da casa, pajear as crianças, portá-las em nossas costas e, sobretudo, obedecer aos homens da família. Sim, qualquer homem, além do pai e do marido, tem autoridade sobre as mulheres da família e nossa vida gira em torno de atender, primeiro, a eles. Até mesmo nas brincadeiras de criança são os nossos irmãos e primos homens que lideram tudo. Afinal, pequenas e grandes decisões são consideradas tarefas dos homens e eles estão sempre qualificados a acertar tudo. Certo?!

É o que eles querem que acreditemos! Mas aprendi, com alguns exemplos próximos de mim, que existe um outro papel para as mulheres: serem donas do seu próprio destino.

Um desses exemplos veio diretamente de dentro de casa. Um primo de minha mãe realizou-se financeiramente de tal maneira que se tornou uma referência de sucesso. Respeitado por todo mundo, era considerado um “partido perfeito”. Seu casamento foi rapidamente arranjado com uma “mulher de família tradicional”, no interior do país.

Ela, fisicamente muito bonita, não havia avançado nos estudos, mas tinha sido “bem preparada” para o papel de esposa. No segundo ano do matrimônio, a pressão sobre a moça começou a pesar ainda mais, pois eles ainda não tinham tido filhos. A família, deste primo passou a hostilizar sua esposa porque, afinal, a tradição manda: mulheres devem ser mães, dando aos seus maridos a prole que ele merece.

A jovem, desolada, buscou ajuda de todos os lados. Recorreu a vários “marabus” – e aqui temos um a cada esquina praticamente – com suas garrafadas milagrosas e até mesmo foi se socorrer com os curandeiros de outras vilas. Tentou de tudo e não teve mais o que fazer. Viu-se obrigada a aceitar a solução imposta pelos sogros: uma segunda esposa para seu marido – os homens aqui podem ter até quatro esposas.

Assim foi feito um novo casamento com o especial propósito de gerar herdeiros para o nosso primo. Missão não cumprida também pela segunda esposa, que acabou falecendo muito cedo, o que motivou à família a buscar um terceiro casamento para ele.

Na ocasião, a primeira esposa sequer questionou o fato. Ela assumiu para si a culpa por não poder oferecer filhos ao marido e, como de costume fazemos quando algum produto está estragado, ela foi devolvida à sua origem, após 22 anos de união. Pouco tempo depois, contraiu um segundo casamento e, para a surpresa de todos, apareceu grávida logo em seguida, voltando a ter mais um filho já no terceiro ano do novo matrimônio. Isto foi o suficiente para que a terceira esposa, de forma inteligente e sabendo bem o que queria, mesmo não tendo frequentado a escola, contornasse a situação a seu favor.

Mudou-se com o marido para os Estados Unidos, buscando tratamento e acabou fazendo sua vida por lá. Envolveu-se com o comércio, adquirindo seu próprio negócio e tornando-se mais independente. Os dois pareciam bem, até que, depois de dez anos de casamento, não tendo a chance de engravidar, ela resolveu deixar o marido. Embora o amasse, ela queria ter filhos e sabendo que era a terceira esposa sem sucesso nesta tarefa, concluiu que deveria procurar realizar seu desejo com outra pessoa. Foi então que eles se separaram, ela casou-se novamente e teve 2 filhos.

Nosso primo, como tem muito dinheiro, casou-se duas outras vezes e hoje tem duas esposas em casa, uma jovem e outra de mais idade. Elas sabem que ele não pode ter filhos, mas se contentam com o conforto material disponível.

A vida aqui ainda é assim. Por ser homem, ele tem o direito de se casar várias vezes, mesmo que não tenha condições de dar filhos às suas esposas. Mas à mulher, a quem são atribuídos todos os falsos problemas do mundo, as pessoas dizem: você é incapaz de engravidar, portanto, não pode se casar. Isto acontece em muitos lugares da África. O interesse está na capacidade da mulher de gerar filhos e de ser subserviente. As duas coisas andam juntas e são incutidas na cabeça das meninas, fazendo-as acreditar no sonho do príncipe encantado.

Há muito a se fazer para rompermos com esta concepção e o desafio não é apenas mudarmos a maneira de pensar dos homens. Esse tipo de valor centrado no poder dos homens é tão amplamente difundido e enraizado que até mesmo um número importante de mulheres defende alguns costumes que as aprisionam.

Penso nas mulheres que continuam reproduzindo o machismo hoje como andorinhas presas em uma gaiola sem grade.

É preciso reconhecermos nossa força para batermos as asas e talvez esta seja a tarefa mais fundamental de todos os movimentos a favor das mulheres: espelhar quem realmente somos!

*Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título: “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”.

** Nascida na Guiné, África, vem realizando um intenso trabalho em favor das pessoas vivendo com o HIV/AIDS, como coordenadora da equipe comunitária do projeto do Médicos Sem Fronteiras, em Conakry. Já esteve à frente da Fundação Esperança Guiné (Fondation Espoir Guinée) e da Rede Guineana das Associações de Pessoas Vivendo com o HIV (Réseau Guinéen des Associations des Personnes Vivant avec le VIH) e atualmente é considerada uma das referências em termos de luta para a formulação de políticas públicas da área do controle do HIV em seu país.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Últimas