Aos 10 anos, Maimouna Diallo teve o seu clitóris removido cirurgicamente sem anestesia, em um ritual tradicional pelo qual passam meninas na Guiné, onde mora, e em outros países da África. Ainda que seja proibida no país e que não esteja normatizada pelo alcorão, livro sagrado do islamismo, a mutilação genital feminina é praticada massivamente como uma crença cultural que corrobora com a ideia de que apenas as mulheres sem clitóris fazem um bom casamento. E a tradição determina: toda mulher deve casar e dar filhos ao marido.

Por muito tempo, a alta taxa de mortalidade decorrente do trabalho de parto foi associada à incisão total e ao fato de a mulher ter sido costurada de tal maneira que a cicatriz impede a criança de passar pela vagina.

“Eles (a sociedade machista) acreditam realmente que uma mulher com clitóris dá muito trabalho ao marido! […] Convencionaram que retirar o clitóris da mulher é uma maneira mais fácil de administrar o sexo feminino”, conta a guineense.

Mouna, como é carinhosamente conhecida, enfrentou as adversidades do seu tempo e da sua cultura para vencer além do machismo outros dois grandes inimigos: o preconceito e o estigma associados ao HIV/Aids. Ela contraiu o vírus do primeiro marido com o qual se casou contra a vontade, aos 18 anos, para satisfazer a tradição familiar.

Hoje com 46 anos, a ativista reconhecida pela sua luta contra a estigmatização e a discriminação de pessoas que vivem com o HIV/AIDS, abriu sua vida para incentivar outras tantas mulheres a se tornarem as protagonistas de suas histórias e a mudarem o rumo da sociedade. Sua biografia é relatada no livro Guiné Fagni: a trajetória de uma mulher africana (a história de todas nós), escrito pela psicóloga brasileira Andrea Silveira, que acaba de ser lançado pela Eureka Editora.

O livro foi publicado em formato eletrônico nas versões em português, francês e inglês (em breve disponível), para que pudesse ser disponibilizado gratuitamente, atendendo ao desejo de Mouna de torná-lo acessível ao maior número de pessoas no mundo inteiro.

Acesse a versão em português:

Além de trazer a história de uma mulher em uma sociedade masculina e tradicional em um país da África Ocidental, a Guiné, o livro aborda as dificuldades de acesso ao tratamento de pessoas soropositivas nos anos 90. A publicação retrata ainda a luta, empreendida por ativistas como Mouna, pelo acesso universal aos cuidados em um país ainda marcado pelo estigma e pela enorme desigualdade ao acesso a serviços de saúde. Para se ter uma ideia, em 2016 apenas 28% das pessoas vivendo com HIV tinham acesso ao tratamento ARV, o que é essencial para a sobrevivência delas.

“Uma joia africana, pérola negra da Guiné”, assim é definida a personagem pela autora. A biografia é um convite a todas as sociedades, nos mais diferentes continentes, para que possam refletir sobre o papel da mulher.

“Se a realidade retratada no livro parece distante do contexto em que vivem outras nações, uma leitura mais precisa revelará muitos pontos comuns sobre como as mulheres foram e ainda são subjugadas nas mais variadas sociedades”, assinala a autora.

Sua narrativa também convoca a pensar sobre o papel da sociedade diante da realidade das pessoas que vivem com o HIV/Aids na África e em qualquer outro país do mundo. “A história de Mouna expõe a fragilidade deste problema de saúde pública e reforça que precisamos continuar debatendo e buscando novas estratégias de enfrentamento da doença, em seus diferentes aspectos”.

Mulher boa é a que luta

Guinée (mulher) Fagni (boa) deriva do soussou, uma língua mandês ou mandinga, pertencente ao grupo de línguas nigero-congolesas que compõe uma das três línguas nacionais mais faladas na Guiné, junto com o “malinké” e o “pulaar”. Mouna é uma “boa mulher”, não no sentido tradicional de uma sociedade masculina, mas porque se reinventou ao contestar a conduta que garantia humanidade às mulheres. Ela fugiu à regra: divorciou-se três vezes, até hoje não teve filhos, mesmo que desejasse ser mãe, e revelou publicamente sua condição de soropositiva num tempo em que o silêncio prevalecia sobre a informação.

A guineense não tinha noção do que ocorreria nas primeiras relações sexuais, mas sabia que não poderia contestar seu papel de submissa. Ela era muito nova, mas se lembra bem de uma prima que havia se recusado para o marido e acabou sendo violentada por ele com a ajuda de outros homens.

“Não havia preliminares e ele forçava bastante. Tinha aprendido no Corão que mesmo quando a esposa resiste, o marido tem o direito de pegá-la à força, então procurava não dificultar. Algumas vezes as feridas eram muitas e eu tinha que me virar sozinha para tratá-las. Sofri muito com as violências, mas não entendia que eram abusos”, relata.

Enquanto esposa fiel às tradições, Mouna, em seu primeiro casamento cuidou da casa, do marido e de mais cinco homens da família dele para os quais ela tinha que limpar, cozinhar, lavar e passar diariamente. Não bastasse a rotina de abusos, a africana sofria com o adultério e bebedeira do homem com quem estava casada e do qual contraiu o vírus que vai a acompanhar pelo resto da vida.

Não foi o único casamento infeliz, posteriormente passou por mais duas experiências de relacionamentos amorosos que a causaram inúmeros danos. Para se divorciar de cada um precisou da autorização da família deles, do pai dela ou mesmo da justiça em casos envolvendo violência doméstica.

“Se soubesse que podia tomar minhas próprias decisões, teria feito o que eu queria. Mas me disseram: teu marido é teu paraíso. Você deve obedecê-lo e tudo o que ele disser você deve fazê-lo. Eu não ousava questioná-lo. Estava longe de me sentir realmente no paraíso e não tinha nenhum prazer com ele, mas não podia recusar suas investidas. Uma das lições do Corão ensina que a mulher que se nega ao marido é uma pecadora. Portanto, eu entregava meu corpo a ele para ficar em paz com deus.”

Mouna e Andrea durante o período em que trabalhavam juntas/Foto: arquivo pessoal
Unidas pelo desejo de fortalecer outras mulheres

Personagem e autora se conheceram no projeto de HIV/AIDS da organização Médicos Sem Fronteira. A psicóloga conta que quando voltou da Guiné em 2012, escreveu um livro sobre a experiência no projeto social, no qual criticava o modelo de intervenção humanitária.

“Na ocasião, Mouna me pediu pra contar a história dela, pois queria influenciar outras mulheres no seu país e sensibilizar as pessoas pra causa. Mas foi bem quando houve o surto do ebola na Guiné e nem ela, nem eu, podíamos entrar e sair do país. E em 2017, finalmente, consegui voltar à Guiné para registrar o seu relato”.

Ainda de acordo com Andrea, a escrita do livro ocorreu em meio ao contexto de amizade e solidariedade que envolvia as duas mulheres. “Um desejo mútuo de fazer com que muitas pessoas pudessem ter acesso ao que acontece na Guiné e também que muitas mulheres africanas pudessem se fortalecer para enfrentar as adversidades culturais que o país ainda impõe”.

 

 

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