Há 35 anos, o movimento feminista comemora com luta o 25 de novembro como Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher. Instituída no Encontro Feminista da América Latina e Caribe, realizado em Bogotá, a data dá a largada à campanha dos “16 dias de ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, com programação até 10 de dezembro – Dia Internacional dos Direitos Humanos. Cerca de 130 países aderiram à campanha para chamar a atenção da sociedade e de seus governos frente à violação sistemática dos direitos humanos das mulheres.

Em entrevista exclusiva a Catarinas, Maria Teresa Blandon, ativista do movimento feminista na Nicarágua e coordenadora do Programa Feminista La Corriente, analisa o feminismo contemporâneo na América Latina diante de violências já combatidas em outras fases do movimento, como a criminalização do aborto, estupro e feminicídio. Violências, que para ela, fazem parte de um mesmo propósito: a apropriação do corpo da mulher.

Em setembro do ano passado, a estudiosa participou de uma audiência pública no Senado Federal que discutiu a regulação do aborto até as doze semanas pelo SUS.  Ela compartilhou a difícil situação das mulheres de seu país, uma vez que o aborto terapêutico, vigente desde 1879, foi eliminado em 2006.  A interrupção não é possível nem mesmo em gravidez de risco, diagnóstico de feto anencéfalo ou estupro – casos permitidos no Brasil.

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“A Nicarágua constitui um claro exemplo de como o Estado pode invocar a proteção da vida como um fetiche, e provocar, com leis injustas, a morte de milhares de mulheres que já vivem em condições de pobreza, discriminação e violência”, disse a ativista em sua fala no Senado (acessa na íntegra).

Catarinas: O caso recente do estupro seguido de morte de Lúcia Pérez, de 16 anos, na Argentina, deu início a uma Primavera Feminista que se ampliou para a América Latina. Nesse Dia Internacional da Não Violência contra as mulheres, como você avalia o momento atual do movimento feminista que ainda precisa lutar pelo direito das mulheres de viverem sem violência?
Maria Teresa: O movimento feminista latino-americano alcançou uma importante vitória, colocando a violência sexista no debate público, forçando os governos a legislar em favor das mulheres e seu direito de viver livre de violência. Nós também conseguimos criar conscientização de diversos atores da sociedade civil e meios de comunicação, mas temos um longo caminho a percorrer. As feministas conseguiram construir nova narrativa para a compreensão das causas estruturais da violência contra as mulheres; temos documentado a gravidade desta violência e seu impacto sobre a vida das mulheres e da sociedade como um todo. Desenvolvemos várias iniciativas para atrair a atenção da sociedade, Estado, organização internacional, incluindo a ONU, a assumir a responsabilidade na prevenção da violência e do acesso das mulheres à justiça. Mas acima de tudo, contribuímos para desnaturalizar a violência e questionar os binarismos e hierarquias de gênero que se justificam e se apresentam como inevitáveis. As feministas são porta-vozes para todas as mulheres que se rebelam contra o patriarcado, uma das cuja identidade é a violência de gênero.

Catarinas: A morte de mulheres devido à criminalização do aborto é considerada feminicídio por leis internacionais. Na América Latina ainda não há um entendimento da criminalização como violação dos direitos das mulheres. O que essa negação carrega?
Maria Teresa: A criminalização do aborto é uma expressão da violência do Estado contra as mulheres. Os governos da região por um lado não reconhecem o direito das mulheres para decidir sobre seus corpos em dimensão reprodutiva; por outro lado, concebem a maternidade como destino inevitável de todas as mulheres, mesmo que seja produto de abuso sexual e violência, como efetivamente ocorre.  

Os Estados criminalizam o aborto para impedir que as mulheres transgridam o mandato patriarcal da maternidade. Negam-nos o direito à autodeterminação e nos mantêm submetidas à ordem ditada por homens, onde convergem poderes que falam em nome das leis da terra e do céu.

Catarinas: Recentemente, especialistas da ONU pediram aos países da América Latina que cumpram compromissos internacionais em relação aos direitos reprodutivos das mulheres e criticaram a utilização do corpo feminino como um instrumento para fins políticos. Como você entende essa “instrumentalização” do corpo feminino?
Maria Teresa: As mulheres pobres, indígenas, negras e rurais são obrigadas a reproduzir a vida em corpos de vulnerabilidade extremas; são os órgãos para a exploração de grande transnacional; são os órgãos utilizados pelos fundamentalismos religiosos jogar lógicas de submissão; são os órgãos utilizados pelos governos para apoiar as políticas de bem-estar e sistemas autoritários.

Catarinas: O debate sobre a maternidade/reprodução continua tão central no feminismo de hoje quanto foi no de ontem? Qual a relação com a manutenção das desigualdades de forma geral?
Maria Teresa: Esta é uma maternidade em cativeiro. As mulheres não podem escolher  – o que significa que não são livres de coerção – sobre seus corpos na dimensão reprodutiva. Também não podem decidir em qual momento desejam realizar a experiência da maternidade.

O Estado, o mercado e os próprios homens têm deixado nas mãos das mulheres toda a responsabilidade e os custos envolvidos em gastar tempo vital para cuidar de novas vidas. As mulheres que são mães são submetidas a um rigoroso sistema de controle social que representa um ideal injusto de “boa mãe”.

Catarinas: O feminismo tem conseguido resistir à essa onda conservadora que atravessa o mundo? Como propor o enfrentamento diante de tanta repressão?
Maria Teresa: O feminismo tem enfrentado este modelo de submissão com a palavra. Com o desmantelamento dos estereótipos de gênero, denunciando injustiças e nomeando rebeldia cotidiana das mulheres. O feminismo é uma utopia que é construída na vida cotidiana. O feminismo é a cultura da solidariedade entre as mulheres para enfrentar o patriarcado.

Catarinas: Há uma unidade, uma convergência de lutas das mulheres da América Latina? O que nos une e move?
Maria Teresa: 

Estamos unidas pelo desejo e a vontade de nos emancipar das amarras impostas pela patriarcado. Une-nos a coragem frente a tantas injustiças cometidas contra as mulheres. Une-nos a coragem de denunciar os poderes que nos sujeitam na esfera privada e pública. Estamos unidas pelo prazer de transgredir e desejo de ser feliz de todas as formas possíveis.

*O Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher é uma homenagem a “Las Mariposas”, codinome utilizado pelas irmãs Mirabal, brutalmente assassinadas pelo governo ditatorial da República Dominicana, em 25 de novembro de 1960. Já a Campanha 16 dias de ativismo teve origem quando 23 mulheres de diferentes países, reunidas pelo Centro de Liderança Global de Mulheres lançaram a ideia com o objetivo de promover o debate e denunciar as várias formas de violência contra as mulheres no mundo.

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Campanha pelo Estado Laico do Programa La Corriente.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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