Quinta-feira, 17 de agosto, a ativista Mariana Franco, chegou pela manhã ao aeroporto Lauro Carneiro de Loyola, em Joinville. Com a passagem em mãos, se dirigiu ao guichê da companhia aérea responsável pelo voo, a Latam. Ao apresentar o ticket e os documentos, foi impedida de embarcar porque os dados da passagem não condiziam com os registrados nos documentos oficiais. No mesmo dia, outro caso de impedimento de embarque por uma mulher trans do Rio Grande do Norte chegou a conhecimento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Ambas viajariam rumo à Conferência Nacional de Saúde das Mulheres (CNSMu), em Brasília, ao longo daquele fim de semana. No próprio evento, a paulista Lóris Ciccone não encontrou seu nome social em uma listagem das delegadas, como são chamadas as representantes com direito a voto na conferência. Mariana, Lóris, a norte-riograndense Lara e todas as mulheres trans correm o risco de serem barradas o tempo todo enquanto aguardam o processo de mudança definitiva do nome de registro.
As restrições são comuns mesmo após o decreto presidencial 8727/2016, que prevê o respeito ao nome social e que deveria evitar situações de discriminação até a retificação de nome e sexo nos registros gerais. Ocorrências assim são rotina na Antra. “Todo dia chegam casos de desrespeito ao nome social. Raro é ter um dia que não aconteça”, conta Keila Simpson, presidenta da entidade. “É preciso uma longa batalha pra gente alcançar a sensibilidade da sociedade para que as pessoas trans possam ser tratadas como acham que devem”, reconhece.
Segundo ela, as mulheres trans costumam aguardar entre seis meses e dois anos até que os pedidos de modificação de nome sejam homologados. “Varia de comarca para comarca, depende do volume de trabalho e da boa vontade dos defensores e juízes”, conta Keila. Reportagem de Catarinas mostrou que em algumas comarcas catarinenses este prazo pode ser ainda maior. De acordo com Keila, as sentenças favoráveis costumam ser mais frequentes nos casos de retificação de nome e é necessário ingressar como novo processo para que haja mudança do gênero no registro.
A presidenta da Antra faz duas orientações principais às mulheres trans que passarem por situações semelhantes. A primeira é que mantenham a calma. “Sugerimos que não entrem em atrito com funcionários e que procurem alguém na hierarquia da empresa ou do serviço que possam ser mais sensíveis ao exercício do seu direito”. A segunda é que denunciem os casos. “Munida de aparatos legais (decreto, resoluções e portarias), que as mulheres procurem acionar o sistema judicial, que se denuncie onde tem ouvidorias para conseguirmos juntar um conjunto de denúncias contra estes fatos. Temos feito isso e tem surtido um bom efeito”, afirma.
No caso de Lóris Ciccone, que não encontrou o nome social na listagem da CNSMu, a comissão organizadora do evento lamentou o equívoco. Katia Souto, integrante da organização, explicou que por mais que a equipe do Conselho Nacional de Saúde tenha se esforçado para garantir o direito ao nome social, outras equipes estavam envolvidas no trabalho. Para ela, esse é ainda um processo de educação que precisa se fortalecer. “Não sei como uma lista sai daqui do conselho e na hora que chega na ponta não inclui o nome social. Eu espero que um dia as pessoas naturalmente, quando virem alguém com identidade feminina, possam reconhecê-la como tal, mas isso ainda é um processo de educação em que estamos lançando sementes”, declarou.
Lóris conta que passou por situação semelhante na etapa estadual do evento. “Eu me reconheço como mulher, é um direito que eu tenho ao nome social. É uma falta de repeito com minha identidade de gênero. Fica e minha tristeza por labutar por um direito que eu já tenho conquistado e não é respeitado”, argumenta.
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Já Mariana Franco alega ter sido acusada de falsidade ideológica e conta que a empresa não buscou solucionar a situação. “Eu apresentei todos os documentos em que constam o nome social, mas a atendente queria um documento oficial, como CNH ou RG. Ela disse que eu não poderia embarcar porque isso seria falsidade ideológica”, conta Mariana. A ativista conta que buscou resolver a situação, mas a empresa foi irredutível. “Me retirei da fila, contei a minha situação para outra funcionária da empresa, mas me disseram que isso seria contrário às normas da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). Ela disse que eu precisava comprar um nova passagem para embarcar com meu nome de registro. Mencionei o decreto (8727), mas não adiantou, a empresa alegou que a Anac não repassou essa informação” relata Mariana, que teria passado entre oito e nove horas no aeroporto a espera de voo em que pudesse embarcar com seu nome civil.
“Foi bem constrangedor. Apesar de eu fazer todo o trabalho de militância no movimento trans e LGBT, naquela hora eu me senti bem pequena. Todos os meus direitos foram desrespeitados, foi a primeira vez que não pude utilizar meu nome social. Eu me considero uma pessoa bem empoderada, mas situações como essa nos fragilizam, eu já adotei o nome social há seis ou sete anos. Quando acontece um constrangimento desses, me abala, me deixa nervosa e triste, mas me dá mais motivos para continuar a militância, porque isso mostra o quanto os nossos direitos ainda são negados”, argumenta.
Para o retorno, Mariana optou por viajar com seus nomes de registro para evitar outra situação de preconceito. “Só queria voltar para casa”, diz.
Segundo a advogada e pesquisadora de direito e questões de gênero, Julia Borges, que cuida do caso, “houve uma violação dos direitos da própria existência”. “A Constituição Federal abarca diversos princípios como o da dignidade humana, que fundamenta todo o ordenamento jurídico brasileiro, não considerado no momento em que houve o questionamento da companhia aérea ao nome da Mariana. Me parece que regras de segurança se sobrepuseram ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e também ao próprio decreto presidencial que deveria ser aplicado tanto pela a Anac quanto também pelas companhias aéreas”, argumenta. “Vamos ajuizar ação para reivindicar a reparação dos danos causados pela companhia aérea e, também em razão do princípio da solidariedade, reivindicaremos a reparação por danos morais à Anac”, afirma a a advogada, reforçando que é preciso ampliar os direitos da população trans através de outros mecanismos de lei. “Nós precisamos fortalecer a luta para que seja aprovada a lei João Nery de identidade de gênero que tramita no Congresso desde 2013”, diz.
A companhia aérea Latam informou ao Portal Catarinas, através de nota, que segue os procedimentos orientados pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), que diz ser “necessário que o bilhete seja compatível com o documento de viagem do passageiro” para o embarque. Na mesma nota, a empresa afirma que “a diversidade faz parte da cultura da companhia, que atende qualquer pessoa com a mesma atenção, cuidado e respeito”.
Já a Anac disse que “o nome fornecido no momento da compra da passagem deve ser igual ao nome do documento de identificação do passageiro”, com base no capítulo II do decreto 400/2016 da própria Agência. O argumento, segundo a assessoria de imprensa, está calcado no artigo 16 do decreto, em que “o passageiro deverá apresentar para embarque em voo doméstico e internacional documento de identificação civil, com fé pública e validade em todo o território brasileiro. A Anac cita ainda o decreto 8727/2016, do nome social, afirmando que”o interessado deve solicitar a inclusão do nome social no documento oficial. Logo, quando solicitado, o nome do passageiro informado na compra da passagem será o mesmo do seu documento oficial e ele embarcará normalmente”.
Keila Simpson afirma que a Antra deve buscar diálogo com a Anac .”É preciso que as pessoas que não tiveram retificação de nome possam ao menos comprar com o nome de registro e, ao embarcar, ser tratadas com o nome social”, afirma. Ela sugere que a Anac se inspire na política adotada pela Receita Federal, onde travestis e transexuais tem a opção de pedir a inclusão do nome social no CPF.
“Pra nós, seria uma conquista a mais pela dignidade antes de fazer essas ações judiciais e também pra contemplar as pessoas que não querem fazer a retificação, que escolhem ficar com o nome de registro, mas desejam ser tratada pelo nome social, com que gosta de se apresentar”, diz.
A militante, que luta há décadas pela causa, pondera que as políticas de respeito à população trans ainda carecem de implementação plena. “É uma política recente e, como tudo que diz respeito a nós, carregado de polêmica. Tem muita gente se debruçando e estudando este processo. Mas eu reitero que são avanços. A gente ficou tanto tempo sem ter nada… Pelo menos com a garantia de que um a dois anos nesse processo (de retificação), apesar de ser um período longo, eu acho que é razoável pras pessoas conseguirem esperar e viver o resto das suas vidas sem esse constrangimento de aceitar o nome masculino e ter uma aparência feminina”, acredita.