Por Fernanda Pessoa e Kalil de Oliveira
*Publicado em Universa em colaboração com Catarinas.
“Tenho medo de levar minha filha para a escola. Não só pelo ensino, que mudou, mas por esses homens ali dentro”, afirma a estudante de direito Maria*, 34, mãe de uma aluna do quarto ano da Escola de Educação Básica Ildefonso Linhares, em Florianópolis.
Há duas semanas, o monitor da escola e militar do Exército Alcione de Jesus, 56, passou a ser investigado pela Polícia Civil por estupro de vulnerável e importunação sexual após ser denunciado por uma aluna. Desde então, outras três denúncias formais foram feitas e, ao total, 12 garotas relatam abusos por parte de Alcione.
A primeira queixa contra ele foi feita em 14 de setembro pela produtora de eventos Rafaela*, 38, mãe de uma aluna de 12. A garota relata que era recebida com “beijos e abraços” pelo “capitão”, como ele era chamado na escola. Em determinado momento, o oficial a chamou para conversar e acariciou seu corpo. Nervosa, não contou a ninguém. Depois, em outra ocasião, ele passou a mão na sua coxa. Dessa vez, a estudante buscou a coordenadora da instituição.
As quatro vítimas que registraram a denúncia formal fizeram boletim de ocorrência na DPCAMI (Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente e ao idoso). Algumas das 12 garotas que relatam os assédios, seus responsáveis e testemunhas das situações conversaram com o Catarinas sobre o comportamento do militar e a rotina na escola.
A reportagem entrou em contato com Alcione de Jesus por telefone. A pessoa que atendeu disse que ele não estava disponível. Foi pedido o posicionamento dele por mensagem, via WhatsApp, e, até a publicação deste texto, não houve retorno.
Coordenadora disse que menina ‘estava gostando de apertos’
Quando a primeira jovem a denunciar o militar procurou a coordenadora da escola para reclamar, ouviu dela que estaria mentindo. “Ela disse algo assim: ‘Com certeza você está gostando desses apertos que ele está te dando. Isso é coisa da sua cabeça'”, relembra. “Eles [escola] não fizeram nada.”
“Aí liguei para a minha mãe e falei: ‘Vem me buscar porque estão me assediando'”, conta.
A mãe, então, procurou a delegacia e questionou a escola por não ter acolhido as denúncias da filha. Segundo ela, a coordenação já havia recebido uma denúncia de outra aluna e mudado o turno do monitor.
Procurada pela reportagem, a escola, até o momento, também não respondeu aos questionamentos enviados.
“Pegou no meu seio e saiu mandando beijo”
Outra aluna, de 14 anos, também relatou à reportagem que o “capitão” passou a mão em sua coxa e que, como o militar sempre esteve muito próximo, buscando contato físico, achou que estava apenas sendo gentil. Em outro momento, porém, diz ter reconhecido o assédio. Durante uma aula de educação física, ele se aproximou dela e esticou o braço em sua direção. “Ele pegou embaixo do meu seio e, depois, quando saiu, mandou um beijo”, conta.
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A adolescente lembra que chorou e foi à diretoria. “Eles disseram que eu tinha interpretado errado, que não era nada disso”, conta.
De acordo com Juliana Dallagnol, delegada de proteção à criança e ao adolescente que está à frente do caso, as quatro denúncias registradas na delegacia entre 14 e 20 de setembro são de meninas de 12 anos e de maiores de 14 anos. Elas relataram situações semelhantes e “mostram uma forma de atuar do militar muito parecida”.
A delegada também visitou a instituição, ouviu a comunidade escolar e informou que o monitor foi afastado no dia seguinte à primeira denúncia. Afirmou ainda que “afastou a possibilidade de a escola ter se omitido.”
Professores têm medo de se posicionar sobre caso
Desde que as primeiras denúncias de crime sexual foram realizadas na escola, o Sinte-Florianópolis (Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de SC) têm recebido relatos informais de docentes com medo de se posicionarem sobre o caso e sofrerem alguma punição, segundo o órgão.
A implementação do regime cívico-militar mudou o diálogo da escola com os responsáveis dos alunos, segundo pessoas da comunidade escolar ouvidas pela reportagem. Isso aconteceu em maio, quando a instituição adotou o Pecim (Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares), ação criada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) em 2019 e implementada em escolas públicas com baixo resultado no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e alunos em vulnerabilidade social.
“Os pais não têm mais acesso à escola. A minha filha caiu e bateu a cabeça, e eu não fui nem comunicada sobre isso. Antes, a gente sempre era comunicada imediatamente de qualquer coisa que acontecia com as crianças”, reclama Maria.
O coordenador regional do Sinte-Florianópolis, Vinicius Aquinio Silva, argumenta que o projeto foi imposto sem oferecer tempo hábil para a comunidade debater as possíveis mudanças. “O processo de implementação foi extremamente acelerado, sem consulta à comunidade de maneira ampla. Os próprios professores foram tolhidos, não foram demandados a opinar ou a construir esse projeto”, alega.
Na divulgação do programa, o governo sinalizou que os militares seriam contratados por até dez anos e ganhariam 30% da remuneração que recebiam antes de se aposentar. O Ministério da Defesa é responsável por destacar militares da reserva das Forças Armadas para o trabalho, enquanto os estados podem indicar policiais e bombeiros.
Na escola Ildefonso Linhares, a atuação dos monitores, cargo de Alcione de Jesus, é somente disciplinar, como garantir a entrada dos alunos em sala de aula, o uso correto dos uniformes, a organização de filas e a rotina dos alunos.
“O princípio da área de segurança é obediência e hierarquia. O da educação é a liberdade de ensinar e aprender, igualdade de acesso e permanência, gestão democrática. Aqui começa o conflito”, opina Catarina de Almeida Santos, doutora em educação e coordenadora da pesquisa “O Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares: entre a expansão e os movimentos de resistência”, na UnB (Universidade de Brasília).
* Os nomes das entrevistadas foram alterados para preservar a identidade das adolescentes