Teóloga Lilian Silva defende a importância de recuperar a negritude de Jesus
Lilian Conceição da Silva utiliza a teologia feminista negra para enegrecer as narrativas sobre o sagrado
Lilian Conceição da Silva sentiu na pele a necessidade de aprofundar os estudos em teologia para construir dentro da igreja outras possibilidades de viver sua fé. Mulher negra e indígena Fulni-ô, ela tem 51 anos, é natural de Recife (PE) e teóloga de formação (da graduação ao doutorado), com pós-doutorado em Educação, Culturas e Identidades. Suas pesquisas giram em torno das relações étnico-raciais, gênero e teologias feministas negras.
“Fazer teologia tem muito a ver com essa busca de ruptura de narrativas que se impunham como únicas, não apenas hegemônicas, mas como únicas e verdadeiras e que serviam para aprisionar corpos, principalmente os corpos femininos”, explica.
Além de evangélica, discípula de Jesus de Nazaré, Lilian também é iniciada no Candomblé, apesar de não frequentar nenhuma instituição atualmente. Ela é ativista da pauta pela diversidade religiosa e se apresenta como sacerdotisa da Ruah, palavra de origem hebraica que significa vento, sopro, ventania. Ou seja, uma outra palavra para o Espírito Santo. A escolha pelo termo é mais um exemplo trazido pelas entrevistadas de FÉministas de outros caminhos possíveis para reconhecer o feminino e o sagrado no texto bíblico.
Lilian é a terceira entrevistada da nossa série especial com as protagonistas de “FÉministas: evangélicas por um futuro democrático e amoroso”. Essa é a terceira temporada do podcast Narrando Utopias e já está disponível nas plataformas digitais. A produção conta com a parceria do grupo Prosa, da UFSC, e a colaboração da Rede de Mulheres Negras Evangélicas, da qual Lilian faz parte.
CONFIRA A ENTREVISTA COM LILIAN CONCEIÇÃO DA SILVA:
Lilian, você foi pastora de uma igreja tradicional e hoje não pertence mais a nenhuma instituição religiosa. Pode contar um pouco dessa trajetória?
Sim. Eu fui pastora de uma igreja tradicional, fui ligada a uma denominação por 27 anos e durante 20 anos fui clériga desta instituição. Em outubro do ano passado eu fiz a ruptura, principalmente, porque a pauta antirracista não é prioritária dentro desta denominação, assim como não é na maioria das denominações cristãs. Dentro do cenário que temos vivido, em que assistimos pessoas negras e indígenas sendo mortas, não há como não se posicionar com contundência diante de uma realidade violenta como a que nós temos hoje. Por isso, por uma questão de saúde de existência, optei por não estar mais vinculada a uma denominação religiosa.
Por que se apresenta como sacerdotisa da Ruah?
Eu costumo me apresentar como sacerdotisa da Ruah porque eu entendo que o sacerdócio é um chamado. Ruah é uma palavra hebraica que a gente encontra no Antigo Testamento e que faz alusão ao feminino sagrado. As tradições cristãs nos ensinaram a pensar o sagrado apenas no masculino, mesmo que a Bíblia esteja recheada de aparições de mulheres, ou melhor, nomes femininos para o sagrado.
Ruah significa vento, sopro, ventania que costumamos conhecer como o Espírito Santo e aí é que está a questão porque essa palavra que é originalmente feminina, foi traduzida para o latim e para língua portuguesa com uma palavra masculina e isso masculinizou também o sagrado que ela representa. A grande preocupação que eu tenho é que nós possamos quebrar esse paradigma de achar que o sagrado é apenas masculino.
Se nós fomos criados e criadas à imagem e semelhança de Deus, então porque somente pensar no Deus masculino? Temos que pensar tanto no feminino e inclusive nas diversidades. Identificar Deus nos corpos diversos é fundamentalmente necessário nos dias atuais.
Como você tem interseccionado fé e militância?
Eu fiz teologia justamente porque eu queria aprender melhor sobre a Bíblia para interpretá-la com instrumentos da academia e também para confrontar o que eu aprendia dentro da igreja. Antes que eu fosse convidada a sair, eu mesma me dei conta que não cabia naquele espaço e saí. De qualquer forma, foi um tempo muito rico de aprendizado, porque de fato me apaixonei pela leitura bíblica, me apaixonei por estudar teologia e por isso acabei fazendo a graduação, depois o mestrado e o doutorado.
Na igreja, percebi que os diáconos da comunidade escolhiam quais textos pregar e com frequência escolhiam textos que cerceiam a liberdade das mulheres. Isso me incomodava muito. Entre eles aqueles textos que as teólogas feministas têm se debruçado, pois eles perpetuam a subalternidade das mulheres nas igrejas.
Dizem para as mulheres permanecerem caladas nesse espaço. Para as esposas serem submissas aos vossos maridos. Só para citar dois. Fazer teologia tem muito a ver com essa busca de ruptura de narrativas que se impunham como únicas, não apenas hegemônicas, mas como únicas e verdadeiras e que serviam para aprisionar corpos, principalmente os corpos femininos.
O que são as teologias feministas negras?
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Antes de falar das teologias feministas negras é importante falar das teologias feministas, para depois enegrecer. Isso porque, não muito diferente do que aconteceu com os movimentos feministas, até onde a gente tem estudado esse movimento começou com as mulheres brancas. Essas mulheres estavam pensando nas suas necessidades, reivindicando o direito ao trabalho, o direito à educação e o direito ao voto, que é uma das grandes bandeiras do feminismo. Mas vale lembrar também que para as mulheres negras reivindicar trabalho nunca foi uma pauta, já que as nossas ancestrais sempre trabalharam e muito, inclusive, trabalho escravo. Na verdade, o que a gente tem buscado é o direito ao trabalho digno.
De qualquer forma, a teologia feminista surge na perspectiva de questionar as narrativas de homens brancos que consideravam genuínas e verdadeiras apenas as formas ou os modos de pensar o sagrado a partir de seus corpos, ignorando outras narrativas. Então, o papel da teologia feminista é primeiro perguntar quem define quais textos são sagrados ou não? E isso não é deslegitimar ou dizer que essa relação dos homens com o sagrado não é válida. A questão é que ela não pode servir como universal, porque nós não somos sujeitos universais. Somos sujeitos específicos, somos sujeitas específicas.
A teologia feminista surge como essa luz que ajuda a perceber que as mulheres foram criadas a imagem e semelhança de Deus, assim como os homens, e são capazes igualmente de falar sobre a sua percepção do sagrado, são capazes de elaborar suas próprias narrativas, seus próprios textos e dizerem que seu testemunho em relação ao sagrado.
E como se deu essa divisão das vertentes?
Bom, a teologia feminista ignorou que os corpos negros femininos são atravessados pelo sagrado de outra maneira porque também sentimos o sagrado nas relações humanas, ou sentimos a ausência do sagrado também nas relações humanas. A teologia feminista negra também surge a partir da teologia negra pensada, inicialmente, pelos homens negros, mas que não contemplava as especificidades da mulher negra. É um processo semelhante as tensões surgidas entre feminismo e feminismo negro, por exemplo.
Ela foi pensada a partir da leitura interseccional de raça, gênero e classe considerando que a maneira como nos relacionamos com outras pessoas na sociedade imprime em nós diferentes e desiguais formas de existir. É também um movimento plural para repensar as teologias universalizantes e embranquecidas.
Qual é o principal papel da teologia negra?
Eu costumo dizer que o principal motivo da existência da teologia feminista negra é pra enegrecer as narrativas sobre o sagrado. E eu defendo sempre que a teologia tem um papel crucial de lembrar as pessoas que elas são sagradas porque foram criadas pelo Sagrado à sua imagem e semelhança. Assim nós nos educamos a perceber o sagrado na outra e no outro e a respeitá-la/o.
Então, o papel da teologia negra é recuperar esse direito a voz, esse direito a falar sobre o sagrado que só eu experiencio. Não é que a minha experiência consagrada seja mais importante que a do outro. Mas eu não preciso fazer com que a minha experiência negue a experiência de outras pessoas.
A religião pode ser inclusiva, amorosa, libertária e aberta ao diálogo? Você acredita que ela, de fato, pode ser assim? E se pode, o que que precisa mudar pra que isso aconteça?
Bem, primeiro dizer que foi assim que eu busquei viver. Nessa perspectiva inclusiva. Até que eu me dei conta que não é suficiente. E aí eu vou dizer por quê. Recentemente eu vi um card que estava sendo bastante divulgado que fala sobre a diferença entre inclusão e expansão. Eu quero ser reconhecida como diferente, quero ter direito a ser percebida sim porque sou uma pessoa específica, um sujeito específico. Mas ao mesmo tempo a inclusão não dá conta de abrir-se para as muitas possibilidades, entende?
Eu gosto muito da perspectiva da pastora Ana Esther, uma teóloga queer, que trabalha com o conceito de expansão. As religiões deveriam ser inclusivas sempre. Até porque o sagrado não é propriedade privada de uma única tradição. No entanto, ela não dá conta da possibilidade de expansão, de ampliação de consciência. É preciso ir mais além. Jesus, como sabemos, recebeu uma herança de tradição judaica, mas ele não ficou preso ao judaísmo. Se o próprio Jesus dá sinais concretos de conversão, de disponibilidade de aprendizado, de mudança de comportamento, é preciso fazer uma revisão do que você fez até aqui e mudar de perspectiva.
Qual o futuro que você sonha para o Brasil e o que você está fazendo hoje para alcançar esse futuro?
Bom, primeiro a queda de Bolsonaro e do bolsonarismo. Eu sonho que possamos assistir em canal aberto ele sendo preso diante de tantos crimes cometidos nestes últimos. A quadrilha dele também. E que a gente possa fazer uma construção de maneira mais coletiva.
O que eu tenho buscado fazer é me engajar em campanhas políticas para contribuir pra que de fato tenhamos um congresso feminista e antirracista, assim fazendo assegurar que as pautas que atravessam a minha existência, que me são caras, possam ser advogadas lá naquele espaço.
E eu sonho que essa reconstrução nos banhe, inclusive, de um outro modelo de relação porque temos vivido anos de muita violência, de muito ódio. Não posso banalizar os discursos do atual presidente que tem falado sobre a população negra, sobre as populações indígenas com tanto desprezo, com tanto descaso, com tanta negação das nossas humanidades.
Eu desejo que nós comecemos o ano de 2023 celebrando a vitória contra o Bolsonaro. Depois nos dedicando a algo que deixamos esfriar que são os trabalhos de base. Precisamos fortalecer os movimentos sociais, fazer escutas qualificadas e promover formação. A esperança permanece muito acesa. Como farol nos guiando, nos folheando e a gente acredita na possibilidade de transformação dessa realidade.
Este projeto faz parte de Narremos a Utopia, uma iniciativa do Inspiratorio.org para imaginar futuros feministas, interseccionais e inspiradores.