Não demorou muito pra que o capitalismo engolisse, a seco, tudo o que diz respeito ao feminismo. Sendo o individualismo a religião deste sistema, qualquer ação que se reclame agregadora ganha logo contornos duvidosos no que tange ao espírito de sororidade que este movimento se propõe. Sororidade e auto crítica, juntas, são as armas mais poderosas que as mulheres dispõem, e são capazes de mudar toda a força motriz que faz com que a roda da humanidade gire.

Sim, as mulheres são capazes disso. De mudar, de fato, o mundo. Mas para que isso aconteça, é fundamental que o feminismo não caia nas armadilhas criadas pelas estruturas (estruturadas e estruturantes) do machismo. Machismo este já tão articulado com o capitalismo, que faz parecer natural quando mulheres que levantam a bandeira do feminismo e têm certas posições de poder, criem disputas e segreguem outras mulheres, que por algum motivo, lhes pareçam ameaças. Ameaça a quê? À manutenção do status quo, do poder, enfim, da hierarquia social tão enraizada em nossa sociedade patriarcal e de relações verticais.

O que comumente acontece, é que, ao hierarquizar relações femininas, caímos no equívoco de entender que quem está no “topo” da pirâmide, deve ter um comportamento masculino, usando da violência simbólica que permeia as falas e as atitudes em relação a outras mulheres que se encontram em posições tidas como subalternas. A não horizontalidade, a repressão e opressão acabam sendo justificadas pela presença da “mulher que chegou ao poder” em um universo dominado por homens, em uma ideia equivocada de feminismo que serve, tão somente, para perpetuar a lógica de mercado que se entrelaça há tantos séculos com discursos e práticas machistas, e que, infelizmente, estão se naturalizando dentro dos mecanismos do feminismo.

Sou do mundo da música, onde não distante de toda realidade social, somos minoria. Mas mesmo dentro dessa minoria, se criam formas de inclusão e exclusão, como temos vivido nestes dias em questões problemáticas no Sonora Ciclo Internacional de Compositoras.

Desde o ano anterior, o Sonora, evento que ocorre em várias partes do mundo, foi trazido à Florianópolis por artistas atuantes na cena musical catarinense e da composição. Pelo caráter universalista, mas também, horizontal e transversal pretendido pelo evento com uma proposta de olhar feminista, foi deliberado pela direção de 2016 – em Florianópolis- que intérpretes poderiam se inscrever; claro, desde que cantassem composições de autoras catarinenses.

O evento foi de uma magnitude indescritível, e foi a maior e mais inclusiva mostra do mundo, contando com mais de quarenta inscritas entre compositoras cantoras de si e intérpretes que cantaram compositoras catarinenses. Não sem muito debate, muitas capitulações em posições equivocadas, mas com uma vontade imensa de fazer um evento feminista não só no papel, além da mostra de palco que contou com duas noites no teatro Pedro Ivo, houveram mesas redondas com temas feministas, além de um lindo cortejo pelas ruas de Florianópolis com o coletivo Cores de Aidê que encontrou o lindo coletivo Batalha das Mina no centro da cidade. Tudo lindo, gigante, inclusivo e de fato, derrubando barreiras de hierarquia musical, etnia, classe e qualquer outro muro que se ousasse levantar.

O clima de inclusão e sororidade foi quebrado (tomara que não de forma irreversível). Este ano, sem nenhuma representatividade no momento da deliberação, simplesmente excluíram a possibilidade da inscrição de intérpretes. Quando a posição da atual diretoria local do evento foi problematizada, respostas como “intérpretes já tem lugar no mundo patriarcal” ou “não tirem nosso espaço” foram utilizadas, em um jogo não só de poder como de disputa, onde a razão acima dos saberes artísticos menos racionais, como a interpretação, também foi invocada, já que, ao ser dona da palavra, a compositora teria intelectualmente mais importância dentro do sistema valorativo e hierárquico musical. Ainda a verticalidade da relação entre o Sonora catarinense em relação ao eixo Rio- São Paulo foi utilizada, em contraste com a autonomia e horizontalidade tão explícitas no evento anterior. Ou seja, uma relação subalterna que considera os estados do sudeste centro e Santa Catarina margem, dependente das decisões do centro maior para articular a cultura daqui. Colonialismo provinciano, a meu ver.

Como intérprete que abriu a segunda noite da mostra no ano anterior cantando duas grandes compositoras de relevância e importância na cena local, me nego a aceitar isto sem me manifestar. Manifestação que venho fazendo, inclusive, junto à direção do evento deste ano, que vem tratando o tema de forma personalista e desagregadora, onde vozes dissonantes são abafadas e desvalidadas.

A luta feminista que venho travando no meio musical já é árdua o suficiente entre os pares masculinos, denunciando, me colocando e exigindo respeito enquanto artista e mulher em um meio altamente contaminado por egos e subjetividades. Não é confortável ter que discutir e se colocar com mulheres, já que se espera, naturalmente, que estas se abracem e vençam a opressão secular que sofrem.

A sororidade e o feminismo não podem virar slogans vazios a serem mobilizados como “valor agregado” de um produto arte. Nem arte deveria ser produto, nem feminismo, penduricalho. Temos que ser vigilantes pra que esse feminismo oportunista e bandeiroso não vire um reforço de lugares sociais subalternos; que não corrobore com a lógica da estrutura machista e opressora. Que não reproduza lugares comuns como a mulher que só vê sentido na relação de competição com outras mulheres, jamais entendendo que estamos todas, sem exceção, na mesma posição de desvantagem nas oportunidades de trabalho e de respeito em relação aos homens.

Não é por sermos mulheres que estamos livres de sermos machistas. O machismo é uma estrutura que nos antecede, que nos recebe no mundo com suas cores e matizes já muito bem definidos, assim como a LGBTfobia e o racismo. A reeducação, o olhar para si mesma e a alteridade são fundamentais para que não reforcemos os muros que nos convenceram que devemos construir umas perante as outras.

Não venho aqui apontar o dedo para ninguém. Venho, antes, chamar a atenção de que não podemos invocar uma luta tão importante e necessária para um pretenso proveito próprio, porque na verdade, nem próprio ele é, já que ao fazer isto, estamos é dando “biscoito” ao capitalismo e munição aos homens que adoram repetir que nascemos para competirmos umas com as outras.

Que nosso feminismo sirva, tão somente, a nós mesmas. Não separadas, não desagregadas, mas em busca de um ideal que possa nos levar além do que imaginamos; todas juntas, cada uma com suas cruzes e correntes, para que se divida o peso de forma equânime e justa. Senão, não tem sentido.

 

 

 

 

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