Escrever é um ato solitário, cheio de vozes a nos soprar no ouvido o que dizer. Para as mulheres, ao longo do tempo tuteladas pela cultural patriarcal, esse é um desafio ainda maior. Atualíssima, Virginia Woolf, no texto Um teto todo seu, de 1929, afirma que a liberdade intelectual depende da liberdade material e que, nós mulheres, ao longo da história, somos também as mais pobres, portanto, emudecidas pelo poder político, econômico e cultural. É fato que houve mudanças com o tempo, mas há concepções e práticas que permanecem as mesmas e precisam ser transformadas.

Catarinas nada nessa contramaré. Quando em março de 2016 nos lançamos ao desafio do jornalismo com perspectiva de gênero, nos colocamos como ativistas do jornalismo enquanto direito, a partir do feminismo como estratégia de ação para a superar um mundo que reserva lugares para as mulheres. Isso significava, de imediato, trazer para a pauta temas que refletem sobre as questões de gênero e direitos humanos das mulheres. No entanto, é a repetição das remadas que aumenta a capacidade de remar. O cotidiano do trabalho, com o lançamento do portal em julho, nos fez refletir sobre os elementos que compõem essa outra narrativa, que tem na fala e no corpo feminino, subalternizados no decorrer da história, sua principal substância. Na prática, vamos aprendendo como criar essa nova forma de expressar a realidade que nos cerca. Um passo a frente, já não estamos no mesmo lugar.

Se essa é a narrativa que nos interessa, as mulheres devem ser as protagonistas. Incentivar, promover e fazer do ato de escrever um ofício e uma arte, a partir do feminino, nos motiva. Publicar mulheres, suas opiniões e formas de ver o mundo, de acordo com suas experiências, é possível. Apostamos também na intersecção entre o jornalismo, a cultura e a arte como ambiente de resistência feminina. Hoje, o Portal Catarinas conta com um conjunto de colunistas que escrevem sobre os mais diversos assuntos, utilizando as mais variadas linguagens. Prosa e poesia, jornalismo e literatura.

Sobrevivemos a 2016, numa caminhada dura, sobretudo pela conjuntura que está posta. Diz um romancista que a miséria tem muitos aspectos e que a desventura na terra é multiforme. Sim. Temos um mundo em guerra, há quem diga que nunca vivemos tempos de paz. Grandes massas humanas se locomovem de seus territórios, há fome e miséria, há crianças e mulheres morrendo por conta da violência. Segundo a ONU, 21 países ainda tem o estupro como arma de guerra.

Mulheres contra a cultura do estupro em Florianópolis. Arquivo Catarinas/Ana Claudia Araujo
Mulheres contra a cultura do estupro em Florianópolis. Arquivo Catarinas/Ana Claudia Araujo

No Brasil, assistimos ao impedimento da primeira mulher a chegar à presidência da República. Aliás, a palavra diz muito. Somos impedidas a todo o tempo de alçarmos voos maiores, de ocuparmos lugares de decisão, sequer decidimos sobre nossos corpos. A deposição de Dilma Rousseff não reflete apenas o golpe nas instituições democráticas – arcaicas e carcomidas -,  como simboliza o quanto a sociedade brasileira tutela, oprime e secundariza as mulheres. Nesse quesito, é importante apontar o papel da mídia tradicional que não poupou esforços na representação do espectro misógino da elite brasileira. A campanha pró-impeachment, sustentada pela postura de classe do poder judiciário, foi amplamente difundida pelos veículos de comunicação hegemônicos que, sem qualquer constrangimento, lançaram mão de estereótipos machistas para atacar o Governo Dilma.  Não foram poucas as capas e os verbetes contra a presidenta, neste processo de achincalhe moral, que culminou com o aniquilamento do pouco já conquistado pelxs trabalhadorxs brasileirxs e, sobretudo, pela luta das mulheres.

E quando o tema é luta por direitos, vale ressaltar que o impedimento de Dilma foi obra finalizada pelo Congresso Nacional que representa o que há de mais atrasado. Não é a toa que o legislativo brasileiro atualmente é o maior porta-voz dos fundamentalismos que tocam sensivelmente a vida das mulheres. Projetos de lei que tramitam no congresso buscam cercear o direito das mulheres sobre si, como o PL 5069 que restringe o acesso ao aborto legal para vítimas de violência sexual, ou mesmo o Estatuto do Nascituro que acaba de voltar à cena, após a decisão do STF sobre um caso particular, mas no qual se posiciona favorável a permissão legal para a prática do aborto até o terceiro mês de gestação.

Como não bastasse, assistimos agora à execução do programa “Ponte para o futuro”, alicerce do governo ilegítimo de Michel Temer (PMDB), que aplica um plano de austeridade, recaindo sobre os ombros dxs mais pobres. A PEC 55, a grosso modo, reduz o orçamento em áreas essenciais como a saúde, a educação e a assistência social, aliando ainda o corte de investimentos nos serviços públicos em geral por 20 anos. A medida dá o tom pessimista do porvir. 2017 deve começar com a “flexibilização” dos direitos trabalhistas e com a Reforma da Previdência que, em seu texto original, deixa explícito o impacto que terá na vida das mulheres, as mais penalizadas com os cortes em benefícios assistenciais e que enfrentam as triplas jornadas de trabalho. Cabe relembrar o que defendeu o secretário de Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetano, quando afirmou que a previdência não vai resolver o problema de gênero no Brasil nem nenhuma outra forma de discriminação e que o custo da mulher para a Previdência Social é maior porque ela vive mais. Para o Governo Temer, trabalhar é preciso, viver não.

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Arquivo Catarinas/Ana Claudia Araujo

Mas, se navegar é preciso, as mulheres seguem firmes no leme. Foram elas que resistiram nas ruas contra o golpe e as medidas de retrocesso. As manifestações que tomaram as cidades brasileiras tinham cara e corpo feminino. Por todo o país, sedes do Ministério da Cultura também foram ocupadas em protesto à nomeação do ministro Marcelo Calero para a pasta. O movimento foi formado por artistas, estudantes, professores, agentes da cultura e representantes de movimentos sociais diversos, com uma intensa agenda em que as mulheres estiveram na linha de frente. No mesmo ritmo, estudantes ocuparam escolas, institutos federais e universidades, em protesto aos cortes de recursos para a educação, por obra da PEC 55, e contra a reforma do ensino médio. As jovens mulheres foram a mola propulsora da resistência estudantil, construindo uma nova narrativa de luta por direitos.

Transversal a esse movimento encabeçado por jovens, mulheres e agentes da cultura, o jornalismo com perspectiva de gênero de Catarinas não assumiu imparcialidade. Buscamos os contornos da pluralidade de ideias e movimentos, respeitando as mais diversas opiniões, mas com olhar crítico sobre a realidade. Ninguém está prontx e todos os dias são de aprendizado; diante de uma conjuntura que muda o tempo todo, as perguntas se multiplicam e as respostas se apequenam. O que nos resta é a resistência. Mais do que nunca, precisamos de um jornalismo comprometido com a sua própria essência, em que os direitos humanos são a premissa básica para o exercício do reportar. Ampliar esses canais de diálogo social e transmitir outras versões dos fatos é fundamental para enfrentarmos esse momento de ofensiva aos direitos conquistados a duras penas. É nesse espírito de mudança que o Portal Catarinas aposta, na perspectiva de que, embora sejam inúmeros os desafios, é preciso resistir e criar. Outro mundo é possível e as mulheres querem mais.

Que venha 2017!

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