Construção da Unidade de Acolhimento Adulto e Infanto-Juvenil para pessoas em situação de vulnerabilidade por dependência química recebeu recursos do Governo Federal, mas a Prefeitura alegou não ser prioridade terminá-la.

Em 2018, uma denúncia de um/a provável morador/a do bairro Jardim Atlântico, região continental de Florianópolis, levou o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) a abrir um inquérito civil para apurar possíveis irregularidades na gestão pública de três obras não finalizadas e abandonadas no bairro. Uma delas, que seria uma Unidade de Acolhimento destinada a mulheres, crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social por dependência química, recebeu R$ 800 mil do Governo Federal, entre 2013 e 2015. Sem ter sido concluída, a Prefeitura de Florianópolis devolveu aos cofres federais o montante, com correção, de R$ 1.020.050,98, em 2020.

A má gestão, a falta de transparência da administração pública e a fragilização dos órgãos fiscalizadores pode resultar não só em ineficiência e descaso, como no caso da Unidade de Acolhimento (UA) do Jardim Atlântico, mas em morosidade na implantação de leis e no desmonte de estruturas que protegem cidadãs e cidadãos. No caso de pessoas em situação de vulnerabilidade social devido à dependência química, a Portaria do Ministério da Saúde que disponibilizou recursos para a construção da UA possibilitaria a realização de uma obra inédita na capital catarinense, mas que não foi considerada prioridade na gestão de Gean Loureiro (DEM).

Busca de informações através do Diário Oficial do Município 

Uma das dificuldades para acompanhar a administração pública é o acesso aos documentos oficiais, como os Diários Oficiais. Tudo o que que passa pelo Poder Executivo, sejam leis, licitações, orçamentos e, até, processos administrativos, tem que ser publicado nesses diários.

Visando tornar mais fácil tanto o acesso quanto a leitura desses documentos, foi criada a Plataforma Querido Diário. Com uma interface simples, é possível buscar informações por palavras-chave, números de contratos, nomes de empresas ou funcionários, entre outros, selecionando o município e o período. Foi com base em consultas nessa plataforma que elaboramos essa matéria.

Má gestão dos recursos da Unidade de Acolhimento do bairro Jardim Atlântico

Em 25 de janeiro de 2012, o Ministério da Saúde publicou a Portaria 121, que institui Unidades de Acolhimento para pessoas com necessidades decorrentes do uso de Crack, álcool e outras drogas no componente de atenção residencial de caráter transitório da Rede de Atenção Psicossocial. A Prefeitura de Florianópolis enviou proposta de construção de uma Unidade de Acolhimento Adulto (destinada a mulheres) e de uma Unidade de Acolhimento Infanto-Juvenil, e foi contemplada com recursos do Governo Federal que foram repassados a partir de dezembro de 2013.

De acordo com reportagem publicada em 2016, a obra foi iniciada em janeiro de 2015, sob a gestão do então prefeito César Souza Júnior (PSD). A unidade visava atender mulheres, crianças e adolescentes em situação de crise psiquiátrica, por conta do uso de álcool e drogas. Conforme a Secretaria de Saúde informou à reportagem, na época, o espaço infantil teria capacidade para atender 10 crianças e adolescentes; e 15 mulheres em situação de vulnerabilidade, ou que perderam o vínculo com as famílias. O local funcionaria como uma casa de acolhimento provisório, sem atendimento clínico – apenas com cuidadores de saúde.

A placa em frente à obra indicava um investimento de R$ 850.097,33 e o prazo de trabalho de 240 dias. Para aquela reportagem, foi informado que haviam sido investidos R$ 324 mil na obra e que seria dado andamento à edificação. Algo que não aconteceu.

Passados cinco anos, a obra continua lá, abandonada, próxima de outras duas que também pararam em 2016 — o Terminal de ônibus, que se transformaria no Mercado Público do Continente e, em 2018, foi cedido para o Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina, e a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Continente, cuja construção foi retomada e foi finalmente inaugurada em 2019, com sua gestão sendo transferida para uma Organização Social.

O descaso com o patrimônio público gerou denúncias ao Ministério Público de Santa Catarina (MPSC). Uma notícia de fato foi registrada em 3 de maio de 2018, por possível morador/a do bairro, e as informações passaram a ser apuradas pela promotora Juliana Padrão Serra de Araújo. A apuração resultou em abertura de inquérito civil, que atualmente está sob a responsabilidade do Ministério Público Federal.

Em julho de 2021, a vereadora de Florianópolis Maryanne Mattos (PL) foi informada da situação da UA e seguiu até o local para visitar a obra inacabada. Também enviou requerimento pedindo informações à Prefeitura Municipal, ao Ministério Público e ao Ministério da Saúde.

Segundo o processo encaminhado a ela pelo Ministério Público, o primeiro mandato de Gean Loureiro (2017-2020) pegou a obra parada, não deu continuidade e informou que não era uma prioridade. A proposta foi cancelada pelo Ministério da Saúde e a prefeitura devolveu o recurso recebido pelo Governo Federal, um montante de mais de 1 milhão de reais.

“Eu recebi essa denúncia da Casa de Acolhimento, cujo recurso veio e a obra começou na gestão do César Souza Júnior. Fui atrás para entender, porque é tão difícil vir recurso do Governo Federal, precisa fazer projeto, demanda energia, pessoas. O recurso veio e não foi usado. A casa não foi concluída”, informou a vereadora em entrevista ao Portal Catarinas. 

Em busca na Plataforma Querido Diário, encontramos algumas publicações sobre o processo de tomada de preço e contratação de empresa para a realização das obras. O edital de tomada de preço nº 578/SMA/DLC/2014 foi publicado em 29 de julho de 2014, com o objetivo de contratar uma “empresa especializada para construção de edificação que irá abrigar a Unidade de Acolhimento Infantil e Unidade de Acolhimento da Mulher, localizada no bairro Jardim Atlântico”.  

Em 2 de setembro do mesmo ano, a Prefeitura publicou o resultado da tomada de preço, cuja vencedora foi a Avalius Engenharia e Avaliação, com o valor de R$ 850.097,33. Assim, em 17 de novembro de 2014, foi firmado o contrato nº 1078/FMS/2014, que iniciou com a assinatura do mesmo entre as partes – sendo Carlos Daniel Magalhães da Silva Moutinho Junior, Ordenador do Fundo Municipal de Saúde (Secretário de Saúde do governo de César Souza Júnior), e Roberto Daniel Gevaerd, pela empresa. O contrato se estenderia até “o momento em que as partes cumprirem as suas obrigações”, sendo o prazo de execução de quatro meses.

A partir daí, pesquisando pelo número do contrato, é possível encontrar pelo menos seis termos aditivos de prorrogação do prazo do contrato. O primeiro foi publicado no Diário Oficial do Município em 6 de maio de 2015, ampliando o vencimento do contrato para o dia 15 de junho de 2015; o segundo ampliou por mais noventa dias, com início em 16 de junho de 2015 e término em 13 de setembro de 2015; o terceiro prorrogou o contrato até 11 de janeiro de 2016; o quarto ampliou para 9 de abril de 2016; o quinto para 8 de junho de 2016; e o sexto para 31 de dezembro de 2016. Todos eles foram assinados por Carlos Daniel Magalhães da Silva Moutinho Junior e Roberto Daniel Gevaerd.

A partir de 2017, com a eleição de Gean Loureiro para o cargo de Prefeito de Florianópolis, Carlos Daniel Moutinho Junior deixou de ser o Secretário de Saúde para ser substituído por Carlos Alberto Justo da Silva, conhecido como Paraná. Até o momento não tivemos retorno sobre possível abertura de procedimentos administrativos contra a gestão anterior ou a empresa devido aos atrasos e a não entrega da referida obra. 

Devido aos questionamentos do MPSC em 2018, a chefe do Departamento de Atenção Psicossocial da Gerência e de Integração Assistencial, Raphaela Santos Pellizzaro, respondeu, em 22 de agosto de 2018, documento constando o seguinte trecho:

“A necessidade de implantação das UA na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) municipal foi levantada pela gestão vigente da época para inclusão no Projeto QualiSUS-REDE do Ministério da Saúde por volta de 2012, e as obras foram interrompidas em fase muito inicial de execução (fundações) devido ao contingencionamento (sic) de recursos. Desde então, evoluíram no município as necessidades de abertura de outros serviços e os estudos que justificam a abertura das UA não garantem sua precedência e priorização sobre outros serviços prioritários atualmente”, diz o documento.

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Captura de tela da resposta da Prefeitura de Florianópolis ao MPSC.

Insatisfeito com a resposta, que não revelou informações sobre o uso, a situação dos recursos e a prestação de contas pela Prefeitura Municipal, o MPSC decidiu instaurar inquérito civil, em janeiro de 2019.

Em outra resposta, a mesma servidora do Departamento de Atenção Psicossocial da Gerência e de Integração Assistencial informou, em 26 de fevereiro de 2019, que “não há convênio firmado […], pois a transferência de recursos se dá Fundo a Fundo a partir dos valores estipulados em portaria e o respectivo cadastro da obra no Sistema de Monitoramento de Obras (SISMOB)”. Também justificou que “evoluíram no município as necessidades de abertura de outros serviços/melhorias da RAPS, e os estudos não mantiveram a justificativa de abertura das UA diante dessas outras prioridades”. Acrescentou que “a devolução dos recursos não utilizados para esse fim já está sendo providenciada pelo município de Florianópolis”. 

Por se tratar de recursos federais, o MPSC encaminhou o inquérito ao Ministério Público Federal, que requereu ao Ministério da Saúde informações sobre os recursos e as devidas prestações de contas feitas pelo município.

Em resposta ao MPF, o Fundo Nacional de Saúde do Ministério da Saúde encaminhou, em 13 de maio de 2019, os demonstrativos das transferência de recursos na modalidade Fundo a Fundo repassados a título de investimento e custeio para o Município de Florianópolis/SC, no âmbito do “Programa da saúde mental”, nos exercícios de 2012 a 2017. 

Os demonstrativos referentes às duas propostas de Unidade de Acolhimento (Adulto e Infanto-Juvenil), apresentam pagamentos de uma parcela de R$ 100 mil, em 30 de dezembro de 2013, para cada das duas propostas e outra parcela paga em 16 de maio de 2015, no valor de R$ 300 mil reais para cada uma das duas propostas, resultando em R$ 800 mil reais no total. 

Por meio de consulta ao Sistema de Monitoramento de Obras SISMOB, o MPF obteve a informação de que a obra da Unidade de Acolhimento Adulto e Infanto-Juvenil foi cancelada com 12% da construção executada. O valor dos recursos disponibilizados foram os mesmos apresentados nos demonstrativos.

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Captura de tela de Informações da Proposta e da obra no Sistema SISMOB/SUS, disponível no Despacho do MS enviado ao MPF.

Em Portaria n. 3 de 2 de Março de 2020, o procurador Alisson Nelicio Cirilo Campos, do Ministério Público Federal, converteu o Procedimento Preparatório em Inquérito Civil, e oficiou à Secretaria de Atenção Primária à Saúde solicitando, no prazo de 30 dias, o envio de informações pormenorizadas sobre a utilização dos recursos e a prestação de contas.

Em 24 de fevereiro de 2021, ofício do Núcleo Jurídico da Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde respondeu ao Procurador do MPF. Entre as informações encaminhadas, consta que o cancelamento da obra foi feito pela Portaria n. 161 de 29 de janeiro de 2020, a qual “publica lista de propostas desabilitadas no âmbito do Programa Rede de Atenção Psicossocial”. Das 19 propostas desabilitadas, 2 são da Unidade de Acolhimento de Florianópolis. Tal portaria, em seu artigo 2°, preconiza que os entes federativos que tiveram suas propostas desabilitadas “estarão sujeitos à devolução dos recursos financeiros do Fundo Nacional de Saúde, acrescidos da correção monetária prevista em lei”. 

Nesta portaria consta discriminado que 2013 foi o ano de habilitação de duas propostas da Prefeitura Municipal de Florianópolis, sendo uma a Unidade de Acolhimento – Infanto-Juvenil e outra a Unidade de Acolhimento – Adulto, no valor de R$ 500 mil cada. Também que o valor empenhado foi de R$ 700 mil para cada proposta e o valor pago foi de R$ 400 mil cada uma. 

Anexado ao ofício do Núcleo Jurídico também está uma Guia de Recolhimento da União (GRU), emitida para o pagamento de R$ 400 mil acrescida de R$ 110.020,00 de correção monetária do Fundo Municipal de Saúde para a Diretoria Executiva do Fundo Nacional de Saúde, e paga em 23 de agosto de 2019. De acordo com informações do Ministério da Saúde, encaminhadas à assessoria jurídica da vereadora Maryanne Mattos, foi devolvido, em 23 de agosto de 2019, o valor de R$ 1.020.050,98 pela Prefeitura de Florianópolis.

Conforme a vereadora, só foi possível saber das alegações da prefeitura sobre a obra e ter conhecimento da devolução deste valor através do Ministério Público Federal e do Ministério da Saúde. Embora também tenha enviado, em 14 de julho, requerimento de pedido de informações à PMF, até o momento ela não havia tido retorno da atual gestão. 

“Eu soube da resposta da prefeitura pelo documento que eu recebi do Ministério da Saúde e do Ministério Público. Eu não recebi resposta da Prefeitura. E a Prefeitura dar uma resposta dizendo que isso não é prioridade para o município é muito grave. Era prioridade no momento que recebeu esse recurso, e aí, de repente, não virou mais?”, questionou.

Segundo ela, após o vídeo de sua visita à obra ter sido publicado, começou a circular a informação de que a construção tinha virado um “elefante branco” e que seria retomada com ajuda do setor privado para a criação de um centro de tratamento para pessoas autistas. No entanto, não se trata somente da mudança de objetivo da obra – que antes seria destinada às mulheres, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade por dependência química – mas de ela não ter sido completada mesmo havendo recurso. 

“Virou um elefante branco porque a prefeitura resolveu que fosse um elefante branco. A prefeitura tinha recurso para aquela obra, que hoje está abandonada. Então, veio recurso do Governo Federal, que deveria trazer segurança e amparo para as mulheres, e virou um ‘elefante branco’ que traz, inclusive, insegurança, por ser um lugar abandonado e fácil de se cometer algum crime. Seria mais barato terminar a obra do que devolver o dinheiro”, lamenta.

A grave falha de gestão do caso da Unidade de Acolhimento no Jardim Atlântico também pode configurar ato de improbidade administrativa, de acordo com o artigo 10 da Lei 8.429/1992, que assim define “qualquer ação ou omissão que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens” e, notadamente, quando se age “negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público”. 

Além disso, conforme Ofício do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas do Ministério da Saúde, enviado à Prefeitura de Florianópolis, em 29 de julho de 2020, referente à “Notificação para devolução de recursos/Intempestividade na Utilização de Recursos”, “o gestor local do SUS, independente de mudança de gestão, é responsável pela prestação de contas dos recursos destinados a apoiar as Ações de Saúde”.

Assim, o documento solicita ao gestor municipal que: “informe nome, endereço, telefone, CPF e Portaria de nomeação e exoneração do gestor à época dos fatos para identificação do responsável, sob a possibilidade de responsabilização do gestor atual, conforme Súmula 230 do Tribunal de Contas da União – TCU, a qual aborda a questão da corresponsabilidade legalmente prevista entre os gestores”.

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Captura de tela de trecho do Ofício n° 450/2020/DAPES/SEAD/DAPES/SAPS/MS.

De acordo com Mattos, “ainda falta a prefeitura dizer quem são os gestores desse projeto, que precisam ser responsabilizados. Vamos  acompanhar para saber em que momento eles vão passar isso. E tem a questão do recurso. Veio o recurso, uma parte foi usada, a obra está lá, e eles devolveram com juros. Depois usam todo um discurso que não tem verba, tem que ficar pegando empréstimo e, ao mesmo tempo, a prefeitura devolve um recurso que foi cedido pelo Governo Federal para uma política pública. É dinheiro público e são pessoas que estão deixando de ser atendidas”, finaliza a vereadora.

A gestão de Gean Loureiro não só se tornou responsável pela obra quando assumiu a Prefeitura, imediatamente depois do início da construção UA, em 2016, como é responsável agora, em seu segundo mandato, por não responder à solicitação da justiça e dar andamento aos processos administrativos.

Até o fechamento desta reportagem, a prefeitura de Florianópolis não havia retornado nosso pedido de informação.

*Esta reportagem foi produzida com apoio do Laboratório Anticorrupção da Purpose Brasil e contou com o uso do Querido Diário, a ferramenta de abertura dos diários oficiais da Open Knowledge Brasil. A iniciativa reúne quatro coletivos de jornalismo independente de diferentes regiões do Brasil para difundir a importância das informações públicas contidas nos Diários Oficiais.  

 

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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