Ao falar dos casos de assédio sexual e estupro neste texto parto daquilo que venho estudando sobre as relações dos estudos de gênero e feministas atreladas ao campo jurídico. Ainda há muito que se falar e pesquisar neste campo. Sobre o caso específico das mulheres vítimas de João de Deus que está sendo acusado dos crimes de assédio sexual e estupro, escrevo sobre como os relatos destas inúmeras mulheres estão sendo questionados, avaliados, ditos como inverdades, fantasias, mentiras. É sobre isso que irei escrever hoje.
Lembro que as mulheres estão sendo ouvidas ainda em fase investigativa, na esfera policial. Ainda não se chegou à Justiça, e por esse motivo não podemos falar em condenação. Escrevo para demarcar que, em casos de violência sexual, são as vítimas que passam a ser condenadas moralmente por suas denúncias e falas públicas.
Primeiro chamo a atenção em torno da não neutralidade das investigações, julgamentos e decisões, nas esferas policiais e jurídicas. Lembro que o andamento, a ouvida, o acompanhamento dos processos são realizados por operadores/as do direito, homens e mulheres, que, muitas vezes, não se mantêm neutros em sua atuação profissional, mesmo em funções que o profissional deveria ser imparcial ou em um país que deveria respeitar o Estado Laico.
E desta forma, as mulheres ao realizarem suas denúncias (mas também outros grupos vulneráveis) têm tanta dificuldade em enfrentar o processo criminal contra pessoas poderosas. Quem acreditaria na palavra de uma única mulher? E diante de uma figura tão poderosa? Lembre-se de que quem está sendo denunciado é uma pessoa rica, influente e, sobretudo, que usa da fé das pessoas para obter suas vantagens sexuais.
Não quero aqui questionar a fé das pessoas, tampouco as realizações e curas feitas por esse homem. Mas o fato do mesmo ter utilizado de sua superioridade (seja ela econômica ou espiritual) sob as pessoas para obter vantagens sexuais e violentar essas mulheres. E sob o manto do sagrado, do espiritual estava protegido, pois quem ousaria questionar um homem que além de todo poderoso – o Deus – poderia ser a solução da cura procurada ou dos problemas sem solução?
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Dar voz e falar sobre as violências sofridas e os crimes sexuais
“Estamos apenas dando voz a mulheres que se sentiram abusadas sexualmente pelo médium”, afirmou Pedro Bial em seu programa que recebeu quatro mulheres que denunciaram o médium João de Deus por assédio sexual e estupro.
Em muitos casos em que mulheres ousam falar, a palavra da vítima é contestada, questionada, posta em dúvida. Será que está falando a verdade? O que a levou a denunciar depois de tanto tempo? Quais vantagens estaria buscando para denunciar?
Importante lembrar que existem muito mais mulheres com medo e vergonha de denunciar do que mulheres que fazem denúncias falsas sobre violências sofridas. Porque as mulheres sabem que a sua vida será vasculhada para buscar nelas o motivo que levou aquele agressor a agir de forma violenta. Ou seja, nunca é a falta de respeito, noção e de vergonha na cara que levam as pessoas (na sua maioria homens) a cometerem crimes, principalmente sexuais. É sempre a loucura, a embriaguez, o mau comportamento ou a provocação das vítimas que os forjam violentos. Geralmente, os agressores não são responsabilizados ou culpabilizados por seus atos violentos. E desta forma, as mulheres de vítimas passam a culpadas.
No caso de João de Deus, a primeira vítima a denunciar já teve seu depoimento questionado pelo fato de ter sido prostituta ou ter um passado de extorsão. Como se qualquer comportamento pregresso ou naquele momento pudesse influenciar ou motivar a violência sexual. Precisamos acreditar na palavra das mulheres e na palavra das vítimas.
Também neste caso iremos perceber a subjetividade dos policiais e julgadores em promulgar, aplicar e implementar leis que abordem as questões de gênero carregadas de subjetividades e não neutralidade. Importante lembrar que estes espaços (apesar de estarem mais femininos, o que não necessariamente faz com que as mulheres policiais ou juízas sejam mais sensíveis às questões das mulheres) são marcados por uma maioria de homens, brancos e heterossexuais. Sem falar no poder legislativo não neutro e desrespeitoso aos direitos humanos e aos direitos humanos das mulheres (esta seria uma grande conversa para outro momento).
Era sobre isso que gostaria de refletir, já sabendo que muito precisamos falar sobre mulheres, violências e a falta da credibilidade da Justiça diante de nossas dores, nossas experiências de violências e traumas, porque é mais comum sofrermos caladas, sozinhas do que denunciarmos. Temos que apoiar nossas irmãs a denunciarem. Para que casos como esses não continuem a existir por tanto tempo e com tantas vítimas.
*Claudia Regina Nichnig é feminista e professora de História e Direito.