O lado bom do BBB: o programa está fazendo com que pautas relacionadas a gênero, raça e sexualidade estejam na boca do povo. Por conta disso, nesta edição o comentário de internet está particularmente ativo no uso de palavras como “moralismo” e “patriarcado”.  É interessante testemunhar o movimento do léxico das preocupações feministas se espraiando para além de rodas feministas.  

O lado ruim do BBB: o programa faz com que pautas relacionadas a gênero, raça e sexualidade estejam na boca do povo no contexto de um jogo. Assim, conceitos como “moralismo” e “patriarcado” viram termos para disputas narrativas que nem deveriam existir. Não deve haver disputa sobre a existência de uma moral patriarcal, por exemplo, ou se ela é o contraponto para uma outra moral tão misógina quanto, ou não. O que é preciso é que se reconheça a hegemonia da moral patriarcal, e o quanto ela é detrimental para a maioria das pessoas.

O lado pior ainda do BBB: como o jogo coloca pautas de gênero, raça e sexualidade na boca do povo, enquanto ele estiver no ar toda discussão sobre estes temas vai, de alguma forma, se dar em referência ao que acontece com os participantes da “casa mais vigiada do Brasil”. Não é exatamente um problema que pautas sociais adentrem o debate público a partir de fofoca sobre pessoas que se colocam na mira da vigilância de uma audiência. Mas a audiência tampouco deveria priorizar, nos debates sobre gênero, raça e sexualidade, o que 10 ou 20 pessoas estão fazendo para serem vencedoras de um reality show… 

O BBB é um experimento psicológico roteirizado e televisionado como disputa, é essencialmente um produto cultural de mídia com objetivos comerciais. É generalizante dizer que nenhum produto cultural é desenvolvido com a noção de justiça social como premissa e objetivo, mas isso não é mentira sobre o BBB. O BBB aparenta compromisso com pautas caras aos ativismos sociais, mas até isso é recente, coisa dos últimos anos em que virou moda fazer performance de preocupação social.

Algumas corporações e celebridades e grande parte da cultura influencer vêm tendo excelente retorno financeiro com marketing baseado em identidade. Acho inclusive que essa cooptação de questões políticas de identidade sem compromisso político é o que algumas pessoas na esquerda qualificam como “identitarismo”. Falo sobre isso aqui no Catarinas.

E o melhor do BBB, qual é? Olha, eu nunca fiz torcida por ninguém de lá, mas desenvolvo favoritismos com base em que tipo de conteúdo os participantes estimulam no debate público. Nesta edição ficou bastante óbvio para o país todo que Lina Pereira dos Santos, a Linn da Quebrada, é uma força da natureza, o que era sabido já desde muito antes do lançamento de Bixa Travesty. Avisa que é ela!

O Beijo

A primeira representação de um beijo no mundo está numa pintura rupestre que fica em um dos 172 sítios arqueológicos de São Raimundo Nonato, no Piauí. É nesse lugar, um Patrimônio Mundial da Humanidade, que há 12.000 anos desenharam um beijo. A primeira cena de beijo de que se tem registro é do Brasil. 

E o feminista era o Chico

Chico Buarque, em entrevista para Regina Zappa:

Eu converso com minhas netas e elas devem achar essa história da música ridícula. É realmente datada. Mas eu nunca soube que essa música teria sido criticada por feministas. O único feminista que criticou essa música fui eu. Continuo achando que é uma coisa meio vencida, essa coisa da mulher lamurienta, que fica em casa. Puxa, nós estamos no tempo da Anitta! As mulheres estão falando alto, estão de cabeça erguida e acho bonito isso. É uma conquista do movimento feminista. O movimento feminista tem uma grande importância e estou solidário com ele.” 

O resultado mais positivo dessa decisão do Chico Buarque sobre “Com Açúcar, Com Afeto” foi que a agitação revelou o pânico, desprezo e relutância em compreensão que a maioria das pessoas têm na direção do feminismo.

Nenhuma feminista organizou manifestação pública pedindo pelo cancelamento da canção. Chico não atribuiu a decisão às feministas.

Mas alguns sujeitos e sujeitas presumiram que o suposto caráter identitário do feminismo atual foi responsável pelo que chamaram de censura.

Não teve censura. Não teve nem petição, nem hashtag. Não teve nenhum movimento feminista. Foi o Chico e só o Chico que, sozinho na sua chiquice, decidiu que não queria mais cantar a tal da música.

Mas teve texto culpando as feministas identitárias, teve a internet reverberando as acusações, e teve uma pá de feministas se defendendo, defendendo a música, defendendo o Chico.

Sueli Feliziani (da Bibliopreta, que você precisa conhecer) tem razão: feministas imaginárias são perigosíssimas. 

Representação e mulheres das cavernas

Quando me deparei, nas redes sociais, com a informação de que a primeira cena rupestre de beijo se encontra no Brasil, fui buscar confirmação. Minha busca – que obviamente resultou positiva ou eu não teria escrito a nota acima – foi por “o beijo pintura rupestre brasileira”. Google me disse que as pessoas que fazem essa busca também perguntam se tem arte rupestre no Brasil (sim), qual o acervo mais famoso (a mencionada Serra da Capivara), como e onde são feitas a pintura e as tintas rupestres (pedra, sangue, argila), e questões mais complexas, como qual sentido elas tinham para os homens das cavernas. 

Sugiro a busca, e adianto que quando a fiz, em 7 de fevereiro às 03h53 (horário de Brasília), me diverti com a resposta indexada para “quem fazia a pintura rupestre”. O link leva para uma matéria da Revista Galileu, intitulada As primeiras artistas: pinturas rupestres foram feitas por mulheres, e o trecho de texto da matéria que é visível ainda na página de busca é “Arqueólogos sempre assumiram que eram os homens que faziam pinturas rupestres pré-históricas em cavernas. Mas essa ideia está mudando, já que análises mais recentes de desenhos em paredes de cavernas na França e Espanha indicam que a maioria das pinturas foi feita por mulheres.” 

Está aí outro ótimo exemplo da alegria que é ver preocupações feministas se espraiando para além de rodas feministas.  

Mulheres brancas e racismo

Mulheres brancas que não sabem como ser aliadas no combate ao racismo, vale lembrar que nossas dúvidas sobre como devemos proceder são semelhantes às de homens que não sabem como ser aliados na luta contra o machismo. 

O que esperamos de aliados homens? Dentre outras coisas, que nos escutem, que recebam críticas de forma madura, que não se sintam ofendidos por verdades inconvenientes, que não fiquem na defensiva quando cabem na crítica, que evitem refutar nossos argumentos antes mesmo de tentar compreendê-los, que não se coloquem em posições de protagonismo no debate, que usem o protagonismo que têm perante seus pares para combater o machismo deles, que pensem a respeito da própria responsabilidade pelo estado das coisas e tomem responsabilidade pelas próprias ações, que consigam superar o desconforto de se perceberem individualmente responsáveis pela manutenção de estruturas sociais de domínio e opressão. 

É bom também lembrar que somos constituídas numa estrutura social desigual, que nos ensina a ser racistas e machistas, fazendo com que os sejamos mesmo sem saber, e que é muito mais útil assimilar e assumir essa condição para tentar modificar as coisas do que insistir em qualquer ilusão de pureza ou retidão da nossa parte. 

Muito ajuda quem não atrapalha. Mas não basta apenas não atrapalhar. E não é fácil, não. Mas também não precisamos tornar as coisas ainda mais difíceis sendo teimosas, soberbas, narcísicas. Entendo que seja difícil se reconhecer como agente ativo de opressões estruturais. Mas não podemos esquecer que é muito mais duro ser recipiente dessas opressões. Especialmente quando nos beneficiamos delas. 

Homens, até os mais bem intencionados, se beneficiam do machismo. E até a mais bem intencionada de nós brancos nos beneficiamos do racismo. Se não tivermos disposição para abrir mão das benesses que recebemos apenas por sermos brancas numa sociedade racista, estamos empacando o debate tanto quanto os homens que não têm disposição para abrir mão dos privilégios que acessam apenas por serem homens numa sociedade machista. 

(E acalmem vossos corações: eu, que falo muito sobre racismo no feminismo, não penso que já entendi tudo não, e sigo tomando na orelha.)

Direto do túnel do tempo

Notas compiladas do meu perfil de Facebook em 2017, que publico levemente editadas no Catarinas em 2022, com uma introdução, feita à época, pela Professora Doutora Adriana Facina: “A Joanna Burigo está fazendo uma série de posts muito interessantes sobre as formas de comunicação nas redes sociais, com ênfase nos debates dos feminismos. Sugiro que acompanhem. Precisamos transformar essas formas no sentido de uma política feita na diferença, sem que ela necessite ser produtora de consensos totalizantes.” Abaixo, pílulas de discernimento anteriores a esta coluna homônima. 

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É perfeitamente possível ter discussões saudáveis e frutíferas para além do ping pong concordo/não concordo. O mesmo vale para o fla flu gosto/não gosto, embora esse devesse ser menos relevante ainda.

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É só alguém discordar que a gente imediatamente sugere que a pessoa é ingênua, ou não entendeu o ponto, ou é marionete do poder, ou o que seja. Parece que não nos ocorre que a pessoa possa estar avaliando um fenômeno sob outra perspectiva, ou que aquele fenômeno tem, para ela, outras significações. Narcisismo não é tirar selfie, não. Narcisismo é não conseguir pensar no outro a partir de seu próprio referencial, é enquadrar o outro a partir de nós mesmos. Tão fácil cair nessa armadilha. Pensar é sobretudo pensar-se.

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A irritação é um afeto praticamente inútil. Não modifica muita coisa, não convence quase ninguém a mudar de posição, só faz aumentar a produção de bile. (Favor não confundir esse comentário com uma negação dos usos políticos da raiva, e favor não equiparar os usos políticos da raiva com o ódio irracional. Discernimento, gente.)

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Os fenômenos sociais não são nem nunca foram “ou uma coisa ou outra coisa”. Nuances e interpretações múltiplas sobre fenômenos sempre fizeram parte do pensamento social, e é recente que as muitas vozes que compõem a sociedade e que foram histórica e sistematicamente suprimidas, sublimadas e silenciadas possam acessar e influenciar debates públicos. A gente fala que fala em pluralidade e democracia, mas ainda é bem viciada em formas cartesianas de pensar e fazer críticas, e se incomoda muito com divergências que questionam nossas percepções de mundo. 

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Falar por é diferente de falar sobre que é diferente de falar com
Falar por: sempre melhor evitar a não ser que o consentimento seja manifesto.
Falar sobre: sempre é razoável fazer isso com cautela e honestidade intelectual.
Falar com: isso é o próprio diálogo, minha interação comunicativa favorita.

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A comunicação nas redes sociais muitas vezes parece funcionar da seguinte forma: pessoa A se expressa, e pessoa B não vê naquela expressão sentido, ou não gosta do que a expressão significa para si ou não concorda com a expressão. Então, a partir de sua própria leitura, que não necessariamente é o que foi dito originalmente, pessoa B se irrita, se desafeiçoa, passa a interagir de formas estranhas ou desacredita de tudo o que pessoa A pode ser ou representar, cria desdém e nutre ranço por ela.

Tudo isso a partir de fragmentos de comunicação. Fragmentos. Sabemos que aqui há sobretudo fragmentos. (Este post é, ele mesmo, um fragmento de pensamento.) Sabemos que os textos aqui nem sempre são completos, que nem todo mundo usa essas ferramentas da mesma forma, que em postagens de redes sociais não há garantia da produção de tese, síntese e antítese, que opinião não é análise, que, que, que. Sabemos disso tudo, mas parecemos esquecer que sabemos. 

No momento da exposição a outras formas de pensar que colocam as nossas em xeque, o estômago parece falar mais alto do que qualquer possibilidade de ponderação. É bastante infantil, na verdade.

O diálogo é fácil, pois basta querer dialogar, e difícil, pois precisa querer dialogar de fato, o que exige entrega, trabalho, exige que a gente suspenda, ainda que temporariamente, nossas próprias convicções.

Nas redes sociais não parece haver muito tempo ou disposição para isso, e onde falta escuta parece sobrar empáfia. (E talvez isso não seja característico das redes, mas da humanidade, mas foi nas redes que esses comportamentos ficaram bastante visíveis.) 

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Mais uma sobre o looping eterno das discussões binárias de redes sociais: vocês nunca mudaram de ideia depois de serem apresentadas a uma perspectiva que até então não tinha ocorrido a vocês, não? Eu sou fãzona do diálogo precisamente por isso: sou inteligente, mas me puxo para ter consciência de minhas limitações, e estou de boas com o fato de que não dou conta de pensar em todas as perspectivas possíveis sobre um assunto ou fenômeno.

Assim, quando me apresentam pontos de vista para os quais eu até então era cega, penso que minha vida melhora, fica mais rica. Como dizem os filósofos da linguagem (e essa citação é do Wittgenstein, e é minha proteção de tela no laptop): “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”. 

Que a gente consiga pensar a partir de menos verdades absolutas e agir por mais aquisição de conhecimento, para termos mais entendimento e discernimento. 

(E, logicamente, nada disso significa que toda e qualquer perspectiva ou fala seja válida ou útil. Discernimento, gente.)

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“Busquem conhecimento”, diz aquele meme com que não posso discordar. Mas buscar entendimento é tão ou mais importante. Busquemos entendimento.

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“Ai, mas ninguém te perguntou.” Vem cá, deixa as pessoas falarem o que elas acham das coisas? Que mania de querer silenciar o que a gente não gosta. Bora aprender a viver com a pluralidade inevitável que é oriunda da noção de liberdade de expressão. 

Discurso de ódio não conta, primeiro porque é discurso de ódio e discurso de ódio tem consequências letais, e segundo porque segue valendo a velha máxima “a tua liberdade termina quando começa a do outro”. Discernimento, gente.

***

Eu exalto o diálogo como método comunicativo e de aprendizado, mas compreendo que nas redes sociais cada palavra pode facilmente vir a significar o seu oposto. Assim, saliento que não acho que o diálogo seja solução mágica, tampouco que seja sempre possível, e muito menos que dê conta de todas as necessidades pautadas em comunicação.

Mas, frequentemente – e isso é verdade verdadeira e quem me conhece um pouquinho sabe exatamente do que estou falando – eu mal sei o que penso sobre um assunto até que converse sobre ele. O diálogo é genuinamente um método de produção intelectual para mim. 

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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