A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados pode votar nesta terça-feira (12) a PEC do Fim da Vida, como está sendo chamada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 164/2012) por organizações que compõem a Campanha “Criança Não é Mãe” e também a Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto.  A proposta foi pautada na sessão de hoje pela presidente da comissão, deputada Caroline De Toni (PL-SC).

O texto, de autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (na época no MDB), foi apresentado em 2012 e propõe incluir no artigo 5º da Constituição Federal a expressão “desde a concepção” no trecho que garante a inviolabilidade do direito à vida. Isso implicaria na proibição do aborto em qualquer circunstância, incluindo as atualmente previstas em lei, como estupro, anencefalia, risco de vida para a gestante e procedimentos, além de fertilização in vitro.

Organizações que compõem a campanha “Criança não é mãe” elaboraram uma nota técnica alertando sobre as implicações que a PEC pode trazer para mulheres, meninas e pessoas que gestam, destacando que a proposta tornaria ilegal o aborto em qualquer circunstância, incluindo casos de violência sexual e risco de vida para a pessoa gestante. Elas enfatizam que a proposta reflete uma estratégia dos setores antidireitos para preservar visões patriarcais e limitar o acesso a direitos reprodutivos.

“O conteúdo da PEC se resume à principal e já conhecida estratégia de alterar o artigo 5º, que é estabelecer a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção para criminalizar o  aborto em qualquer caso, prejudicando ainda outros direitos reprodutivos. Levar a discussão para esse lado abstrato é uma política oportunista de parlamentares antidireitos, disfarçada de neutralidade e objetividade científica”, observa Joluzia Batista, do Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria.

Segundo Batista, a manutenção compulsória da gestação de crianças, mulheres e pessoas que gestam em situação de violência sexual e em risco de morte, assim como a perda da possibilidade da reprodução assistida, são exemplos críticos dos efeitos concretos da aprovação do projeto.

“É importante lembrar que a gestação representa um alto risco à vida em crianças e adolescentes. Dados revelam que, entre 2018 e 2023, uma menina ou adolescente morreu por semana em decorrência de complicações de gestações. Se a PEC for aprovada, ainda que a pessoa gestante corra o risco de morrer em decorrência da gestação, ela será obrigada a manter a gravidez ou, ao interromper a gestação, correr o risco de ser processada e criminalizada”, observa.

PEC 164/12 obriga crianças a serem mães

As organizações e especialistas também alertam que a PEC, além de ignorar a complexidade das realidades enfrentadas pelas vítimas de violência sexual, amplia o impacto da violência intrafamiliar no Brasil.

Dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em 2024, revelam que 2023 registrou uma média de um estupro a cada seis minutos no país, sendo que as vítimas são majoritariamente mulheres e meninas (88,2%), negras (52,2%), de no máximo 13 anos (61,6%), estupradas por familiares ou conhecidos (84,7%), dentro de suas próprias residências (61,7%) – evidenciando o caráter predominantemente intrafamiliar dessa violência. 

“Se aprovada, a ordem constitucional deixaria de admitir que, nos casos de gestação decorrente de estupro – praticado majoritariamente contra crianças – o aborto pudesse ser legalmente realizado, obrigando essas pessoas a gestarem e parirem nessas condições”, completa Laura Molinari, da campanha Nem Presa Nem Morta e também da campanha “Criança Não É Mãe”.

Eliza Capai, diretora do filme Incompatível com a Vida, observa que a falta de educação sexual e outras circunstâncias, como a violência sexual, levam a gravidezes não desejadas, cujos pais não tem condições – sejam econômicas, mentais ou emocionais – de criar seus filhos. 

“É muito triste encarar a verdade, mas meninas e mulheres são estupradas, engravidam e precisam de acolhimento. Gestações podem gerar problemas de saúde e colocar a vida materna em risco: como obrigar uma criança a já nascer órfã? Gravidezes desejadas podem gestar fetos que não sobreviverão, e obrigar a continuidade da gestação pode causar sérios danos à saúde mental e física da gestante. Seria muito melhor se estas situações não existissem, mas ignorar esta realidade em função de dogmas descolados da vida real gera apenas uma sociedade muito mais violenta e triste”, comenta.

Projeto pode proibir técnicas de reprodução assistida

De acordo com dados do Sistema Nacional de Produção de Embriões, no ano de 2023, foram realizados 56.821 ciclos de fertilização in vitro no Brasil e 115.745 embriões foram congelados. 

Letícia Vela, advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, explica que, ao conferir ao óvulo fecundado ou ao embrião o direito absoluto à vida desde a concepção, como pretende a PEC 164/2012, abre-se a possibilidade de proibição futura de técnicas de reprodução assistida e pesquisas em células embrionárias para fins terapêuticos. 

“Em casos de fertilização in vitro, por exemplo, a técnica utilizada passa pela fertilização fora do corpo e, em seguida, pela implantação no útero. Nesse momento, pode haver perda de embriões, o que incidiria em uma violação à Constituição caso a PEC seja aprovada. Nesse sentido, milhares de famílias que dependem de reprodução assistida para ter filhos teriam seu sonho impedido”, afirma. 

Segundo ela, o mesmo valeria para a utilização de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas e terapias, que têm como objetivo enfrentar  e curar patologias que limitam e degradam a vida de grande número de pessoas, como atrofias espinhais progressivas, distrofias musculares, esclerose múltipla, neuropatias e outras doenças do neurônio motor. “Impedir a continuidade de realização de pesquisa em células embrionárias proíbe todo e qualquer avanço da ciência e possibilidade de cura de graves doenças”, complementa. 

Organizações pedem apoio em defesa dos direitos reprodutivos na CCJ

A Frente Catarinense pela Legalização e Descriminalização do Aborto, a Frente 8M/SC e a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa/SC) solicitaram a deputadas e deputados federais do campo da esquerda que as represente na votação do projeto na CCJ. 

Em sua solicitação, as organizações destacaram a importância de contar com o apoio neste momento crucial para a defesa dos direitos reprodutivos e da saúde pública. “Estamos cientes da sua trajetória em defesa dos direitos das mulheres e das pautas progressistas que promovem a justiça social e a equidade. Contar com a sua presença e apoio na CCJ será fundamental para fortalecer as vozes de quem luta pela manutenção e ampliação dos direitos reprodutivos”, afirmaram.

As entidades reforçaram a necessidade de estabelecer um diálogo aberto com outros parlamentares, para que compreendam o impacto negativo da proposta em discussão e a ameaça que ela representa aos direitos humanos. 

“Estamos à disposição para apoiar no que for necessário e para manter a mobilização em defesa dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+ frente a esse retrocesso”, concluíram.

Com essa ação, as organizações reafirmam seu compromisso com a luta pela autonomia sexual, buscando ampliar a representatividade e garantir que as meninas, mulheres e pessoas que gestam sejam respeitadas e consideradas nas decisões que impactam diretamente suas vidas e seus corpos.

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