Ao longo do tempo, a cultura patriarcal construiu em torno do genitor uma aura romantizada associada a acolhimento, cuidado, generosidade, presença. E é assim que pais ausentes, envolvendo parte significativa de crianças nascidas, são também mantidos no imaginário social, aumentando expectativas e o sofrimento de filhos e filhas.

Em 2017, conforme o IBGE, tivemos 2,8 milhões de nascimentos no país, entre os quais podemos estimar que algo entre 10 a 15% ficaram sem o reconhecimento paterno, o que é também uma forma de violência do patriarcalismo. Entre 300 e 400 mil crianças nascidas no Brasil, em 2017, são filhas da mãe, ou seja, de mulheres predominantemente de baixa escolaridade e renda. E parte nada desprezível dessas crianças nunca conseguirá obter esse reconhecimento. O patriarcado, por um lado, apresenta o pai como imprescindível. Ele representaria a lei, a norma, a proteção, o mundo da cultura. E para a criança e o adolescente, principalmente, expectativa de afeto e apoio. Por outro lado, a sociedade patriarcal tem se mantido quase indiferente diante da recusa do homem-pai ao acolhimento e ao reconhecimento do filho.

A taxa de brasileiros não assumidos pelo pai, otimistamente, pode ser estimada em 10%. Hoje, nosso país tem uma população de 210 milhões de habitantes, o que significa 21 milhões de homens que escolheram não assumir a paternidade, o reconhecimento da filiação, equivalendo a toda a população do Chile (19,1 milhões) ou, ainda, a população da Bolívia (11,4 milhões) e do Paraguai (7,1 milhões) juntas (18,5 milhões de pessoas).

A realidade tem nos mostrado que a questão da imprescindibilidade do pai precisa ser relativizada, pois mães solo têm conseguido criar e educar seus filhos, mesmo enfrentando graves dificuldades em uma sociedade omissa com relação aos direitos das crianças. O Estado patriarcal brasileiro não oferece às crianças a condição efetiva de prioridade absoluta, estabelecida na Constituição Federal. Creches, espaços públicos de cuidado e lazer são inexistentes exatamente nos locais mais necessitados e precarizados.

 

O que nos diz o esporte mais popular do país?

Exemplo do frágil vínculo do homem brasileiro com seus filhos foi exposto em um dos esportes mais populares. Nossa seleção na última Copa do Mundo, na Rússia, retratou essa questão. Entre os 11 jogadores titulares, seis não tinham o reconhecimento paterno: Miranda, Thiago Silva, Marcelo, Casemiro, Paulinho e Gabriel Jesus. Este era quem, a cada gol, telefonava para a mãe, Vera Lúcia, comemorando. Seu Alô, mãe ficou conhecido pelo mundo. O pai deixou Vera quando ela anunciou a gravidez. Mas essa mãe se dedicou muito ao filho, que admite: “Quando ia aos jogos e via meus amigos, sentia inveja por não ter um pai presente. Mas, do jeito que minha mãe me criou, eu logo esquecia que tinha pai (ausente).”

Cássio, o terceiro goleiro da seleção, não conheceu o pai. Quando sua mãe, Maria de Lurdes, contou sobre a gravidez, ele se mudou para o Mato Grosso. Programas de televisão até quiseram tentar promover um encontro entre pai e filho, mas o goleiro agradeceu: “Não quero mexer com isso. Passou muito tempo já. Minha infância foi difícil. Quando precisei do meu pai, ele não estava presente. Não sei quais as circunstâncias ou por que ele não quis me registrar [na verdade, me reconhecer]. As pessoas erram. Mas é passado. Para mim, isso é assunto encerrado” (A seleção dos filhos sem pai – El País, 2018)

 

A realidade da violência doméstica e da violência institucional

Pesquisas apontam que nossos lares não são um ninho de acolhimento e proteção. Em nossas famílias, constatamos violências verbais, psicológicas, morais, físicas, até o extermínio de mulheres representado pelos feminicídios, grande parte deles realizados diante da(s) criança(s). À imprescindibilidade do pai pode-se opor a realidade de pais ausentes, negligentes, violentos, abusadores, até feminicidas.

Entre 2011 e 2017, 51% dos casos de violência sexual ocorridos foram contra crianças entre um e cinco anos; 69,2% ocorridos na residência, 71,2% contra meninas, dados do Ministério da Saúde, Sistema de Informação de Agravo de Notificação – MS/Sinan, Boletim Epidemiológico, junho 2018.

Com a desigualdade de direitos e obrigações nas relações sociais de gênero, presente transversalmente também nas relações parentais, e com a preservação do Estado patriarcal no Brasil, a paternidade é optativa. Para nascimentos ocorridos fora do casamento, o homem tem, de fato, a possibilidade de dar as costas para a criança e para a mãe. O mesmo não se pode dizer sobre a maternidade, que é compulsória.
A interrupção da gravidez no Brasil ainda é criminalizada. Essa desigualdade de tratamento pelo Estado é uma violência institucional contra as mulheres, sua autonomia e dignidade, agravada pelo fato de que mães solo não contam com apoio efetivo da sociedade ou do Estado.

Repete-se, também aqui, as desigualdades entre mulheres e homens. Na vida real um homem pode postergar indefinidamente o reconhecimento de uma criança como filha, apesar da existência de uma lei da Paternidade desde 1992. Um Judiciário sexista contribui para a eficácia de medidas protelatórias adotadas por homens que desejam permanecer longe da paternidade. O pai, indicado pela mãe, é mantido como suposto pai. Uma vez que as palavras não são neutras, significa que a instituição se mantém duvidando da palavra da mãe (a solução estaria na inversão do ônus da produção da prova da paternidade, com exame em DNA). Ora, aquele homem indigitado é o pai da criança indicado pela mãe. Não é somente um suposto pai — quase um não-pai —, com um grau de incerteza incomensuravelmente maior.

 

Paternidades envolvem padrões de masculinidade

A sociedade patriarcal — na escola, na família, em todos os âmbitos da vida coletiva — propõe um padrão de masculinidade frequentemente associado à violência, hierarquia, poder, autoridade, autoritarismo. As masculinidades hegemônicas — ainda masculinidades tóxicas — reproduzem a ordem social e sexual com suas estratificações. São histórica e culturalmente construídas. A masculinidade influenciará no modo de exercício da paternidade — com acolhimento, amorosidade ou com recusa, simplesmente.

Só por meio de uma educação emancipatória, questionadora, não sexista e não racista nas escolas e universidades, com o menino e o jovem-homem como protagonistas, podemos desconstruir um padrão violento de masculinidade tóxica e construir um novo padrão, com possibilidade de virmos a ter mais pais amorosos e cuidadores. Homens solidários e fraternos, valorizando a paz e o entendimento
entre pessoas e grupos.

 

*Doutora em Sociologia pela UnB, autora de Em Nome da Mãe. O não reconhecimento paterno no Brasil, Florianópolis, Edit Mulheres.

** O material foi publicado inicialmente na Revista Valente, editada pelo Sinjusc e dedicada a abordar temas feministas. Acesse a revista.

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