“A rebeldia tem a potencialidade de criar, de imaginar e de projetar, porque é uma energia infinita e transformadora, que pensa antes, de um quarto próprio em um corpo próprio. A rebeldia é o começo da liberdade”.
Margarita Pisano.

Texto de Milena Rodríguez para Catarinas.
Tradução de Nicole Ballesteros Albornoz.

Nas ruas e rodovias, existe uma força que grita e constrói esperança. Um corpo que tem abandonado o medo e tem decidido que o silêncio não o acompanha mais. A dança toma a Colômbia desde o 28 de abril, uma dança subversiva, um carnaval de rebeldia, corpos de homens e mulheres no ritmo dos protestos, sedentos de justiça e com as mãos abertas para romper com o mundo da precariedade, da miséria e do fascismo governamental.

Foto: Coletivo Guaneñas Feministas

Por quê?**

À primeira vista, a reforma tributária apresentada pelo governo nacional levou à maior mobilização social dos últimos 10 anos, em meio a uma pandemia. No entanto, isto não é pior do que o governo ter aumentado os impostos da cesta básica familiar, em um país onde 42,5% da população está em condição de pobreza. Nessa leitura reduzida, se oculta o descontentamento do cenário político e social da desigualdade, exclusão, exploração e das perseguições políticas em Colômbia.

Por isso, quero enunciar alguns elementos-chave que nos permitam dialogar e pensar a partir da complexidade e da urgência histórica de estar na rua. Em primeiro lugar, como em muitos países latino-americanos, a colonização como expressão da expansão para a acumulação e instalação de um modelo político reduzido ao econômico, tem deixado uma ferida que não foi fechada. Ao contrário, tem se usada para afiançar e cimentar as hierarquias, principalmente raciais e patriarcais, um estado de desigualdade e exclusão.

A terra está no centro da disputa. Os processos de expulsão e de deslocamento têm sido o caminho para que poucos proprietários garantam o monopólio da terra, enquanto camponeses, comunidades indígenas e afro-colombianas vivem em condições de migração interna forçada, em pequenas lotes, sendo perseguidos e massacrados coletivamente.

Por quase 60 anos e sob a cortina do Conflito Armado com grupos beligerantes, tal conflito social ficou em segundo plano, porém, a raiz dele tem sido a alavanca para a configuração atual das elites gamonais*** que se traduzem em castas regionais com forte presença de poder político e com grande influência nos governos.

O que nos leva a um segundo ponto, que é a configuração de um sistema político fechado e exclusivo, revestido de dinastias familiares tendo como via eleitoral a linhagem política. Tanto a política como o público têm sido espólios de benefícios para esses pequenos e oportunos grupos, enquanto o país carece de um sistema de ensino público e gratuito de qualidade, carece de infraestrutura hospitalar e de estradas que permitam ao campesinato mobilizar suas safras. Uma realidade marcada pela reprodução da lógica centro-periferia que parece relegar a guerra e a invisibilidade ao campo enquanto nas cidades parece habitar um esquecimento institucionalizado como o carreirismo.

Nesse cenário e no início dos anos 90 com o desdobramento do capitalismo em sua face neoliberal, a privatização dos fundos e recursos públicos se aprofunda por meio de uma Constituição Política (1991) que regulamentaria os direitos como potenciais de serviço: saúde, educação, previdência, entre outros. A força das reivindicações políticas tentou ser incorporada nesta nova carta de “pacto social”, pois as comunidades indígenas e afrodescendentes foram reconhecidas pela primeira vez no país, desde que aderissem à forma política do Estado gamonal.

A força de incorporação não veio apenas com a pressão da forma jurídica, a repressão e a perseguição se instauram como política de Estado, e dado o caráter global da Guerra Fria e da chamada doutrina do “inimigo interno”, vinda da estratégia do combate ao “comunismo” e somados à errônea privatização, consolidaram as diretrizes para que toda demanda, exigências, reclamação ou protesto (seja coletiva ou individual) se tornasse um objetivo judicial ou militar.

O terceiro elemento é a “repressão”. A mentalidade de guerra por parte das forças “públicas” (militares e policiais) nas ruas não é um fenômeno recente. Aliás, o cenário que vemos diariamente nos vídeos durante estes mais de 20 dias de Greve Nacional – que apesar da censura tiveram repercussão – é a realidade que o campo tem vivido durante o século passado, que aconteceu sob a cumplicidade dos meios de comunicação e gotejou sangue nas montanhas. A desestabilização política da oposição, organizações sindicais, estudantis e/ou comunitárias foi forjada por meio de perseguições e genocídios, como aconteceu com a União Patriótica (1984) ou com o recente ataque contra a Minga Indígena de Cauca****, na cidade de Cali.

Foto: Catalina Rodríguez

Este Estado colonial, capitalista e patriarcal, com o maior número de bases estadunidenses em seu território, que investe 3% do seu PIB em artilharia militar é o que vemos nas ruas reprimindo desproporcionalmente os protestos sociais.

O mesmo Estado que após a assinatura dos Acordos de Paz com as FARC-EP (a guerrilha mais antiga da América Latina) resolveu declarar guerra a todas as demandas por justiça, direitos e dignidade em meio à já densa precariedade e restrições militares que existiam antes de 2020 e que se aprofundaram com a má gestão (policial inclusive) da pandemia de Covid-19 em 2021.

Quem está agora na primeira linha contra o horror ditatorial?

Corpos que carregam como escudos a alegria de serem companheiros e companheiras e que tê rompido com a manutenção do silêncio e da formalidade. Seus corpos cansados ​​de olhar os mortos e a fome ao seu redor decidiram cozinhar para todas e todos o prato da resistência e da solidariedade. Corpos que cresceram no calor dos protestos sociais dos últimos 15 anos e, hoje, endossam as demandas das Greves Agrárias de 2013, das Mingas de 2009, dos estudantes em 2011, dos ex-combatentes em 2016 e 2019.

Coletivamente, a Colômbia possui um corpo diverso que, amparado pelo afeto de suas e seus manifestantes, pela bênção das mães e pelos esforços de cuidado que nas margens fornecem o leite, a água, a comida, os primeiros socorros … aos que estão armados com as próprias mãos, pernas e braços enfrentam as forças militares, a artilharia e o poderio de tanques de guerra, enquanto do céu os helicópteros anunciam: aqui está o Estado!

Paradoxalmente, este Estado nunca esteve presente quando crianças morreram com desnutrição em La Guajira. Estado esse, que na pandemia permitiu que mais da metade de seu país passasse fome no confinamento e pendurasse bandeiras vermelhas em suas janelas pedindo socorro. O Estado também não esteve presente quando os paramilitares incendiaram cidades e massacraram as comunidades, nem quando a corrupção sucumbiu estradas, nem quando assassinaram os mais de 900 (desde 2016) líderes sociais e ex-combatentes que assinaram o Acordo de Paz.

Não há diretrizes, nem quadros partidários ou eleitorais, o corpo da dignidade foi feito de raivas e dores, foi feito da força do riso e do abrigo da justa exigência de um novo mundo.

Esta greve é ​​o transbordamento e a rejeição contundente ao sistema da precariedade e da morte, é o transbordamento da cidadania que passou do medo a questionar tudo, por isso as estátuas caem e as paredes queimam, como símbolos de um estado de coisas esvaziadas de conteúdo, estátuas surdas e paredes brancas pintadas para esconder o sangue.

Foto: @Laabrilph

Nós temos nossos corpos, eles têm armas e dinheiro. Nós caminhamos de olhos bem abertos e ouvidos atentos, eles com gás lacrimogêneo e rifles. Quem nos cuida na linha de frente são as mulheres, são estudantes, são vizinhos, são a Minga Indígena, na linha de frente está a confiança de sermos companheiras e companheiros. Somos impulsionadas/os por nos apoiarmos de coração; eles pelos salários de mercenários. Eles que estão sentados em seus grandes pedestais de cadáveres e são protegidos pela incoerência da polícia e dos militares que, ajoelhados, esqueceram que nasceram do mesmo povo, que agora sinalizam como alvo.

Nossa reivindicação não é apenas pela suspensão da reforma tributária, nossa aposta é que a Colômbia rompa com a exploração racial e patriarcal que sacrifica nossas vidas pelo capitalismo. Que os páramos**** sejam respeitados e os rios corram sem mineração, que a terra não seja transnacionalizada ou monopolizada, que os corpos das meninas e mulheres não sejam espólios de guerra, que desaparecidas/os cheguem às suas casas, que presas/os políticos voltem a gritar com liberdade, que os acordos de Paz sejam cumpridos, que as Mães de Soacha encontrem os seus filhos, que cesse a criminalização contra a Minga Indígena. Este momento de força é um corpo transbordando de esperança que está pronto para mudar tudo.

Não queremos a redistribuição de terras, queremos a libertação dos territórios, rejeitamos a configuração histórica que aparece como destino político nas mãos de poucos. Queremos um novo acordo social, não queremos uma campanha eleitoral. Queremos justiça, não queremos ser segregados em reivindicações por sermos mulheres, afros, crianças ou adultos, queremos como princípio a humanidade e a dignidade para a vida.

Foto: Luis Carlos Ayala.

Exigimos que caia o regime autoritário de Iván Duque e suas políticas de morte, exclusão e pobreza. Que cessem os assassinatos sistemáticos de lideranças sociais e defensoras/es dos direitos humanos, a perseguição e o assédio a organizações indígenas e camponesas.  Denunciamos os vínculos do governo com o narcotráfico, que com a gestão policial tem acionado ações repressivas na pandemia, bem como, a recente ordem do governo de abrir fogo contra os manifestantes. Tais situações, agudizam a dura realidade de criminalização dos protestos sociais, como tem sido nas cruéis noites registradas por manifestantes do embate com os militares desde o dia 28 de abril. As organizações de Direitos Humanos IndePaz e Temblores ONG, denunciam as cifras de agressões e truculência, desde 21 de maio de 2021 até o momento:

51 assassinatos no marco das manifestações da Greve Nacional, dos quais 43 teriam sido mortos pela Força Pública.

855 vítimas de violência física

21 vítimas de violência sexual perpetrada por membros da Força Pública.

2.905 casos de violência policial.

39 vítimas de lesões oculares.

9 líderes e defensores dos DDHH assassinados e 2 signatários do Acordo de Paz.

153 casos de disparos de arma de fuego por parte de la policía.

397 desaparecidos.

É por isso que exigimos o desmantelamento do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (Esmad). O fim da doutrina militar e do discurso do inimigo interno. O fim do serviço militar obrigatório. Assim como, rejeitamos o discurso das “maçãs podres” quando temos provas de uma institucionalidade criminosa, assassina e repressiva que atua para um governo narcotraficante e paramilitar.

Pedimos à comunidade e aos organismos internacionais que condenem a repressão e as ações desproporcionais e criminosas do Estado colombiano. E agradecemos a solidariedade com os diversos contingentes, as lutas irmãs, de latitudes distantes e os afetos que têm replicado o S.O.S por Colômbia e que denunciam perante a mídia e a censura, nas redes sociais que na Colômbia #NosEstãoMatando.

Mas, acima de tudo, apelamos à solidariedade com a luta digna das/os Indígenas, Campesinas, Trabalhadoras e em geral com todas aquelas que, com as mãos ao alto e com a força de seus pulmões, exigem garantias para a vida, água e páramos.

Notas:

*Milena Estefânia Rodríguez Aza é feminista e socióloga colombiana com mestrado em Sociologia, pelo Instituto de Ciências Sociais e Humanas, na BUAP, México. Suas pesquisas abordam a questão do conflito armado na Colômbia, as organizações do Sudoeste da Colômbia, as Mingas Indígenas e processos de resistência territorial.

**Parte destas reflexões foi pensada em diálogo com a entrevista feita com Sandra Rátiva Gaona e Diana Patricia Gonzales Ferreira, no Espaço de Pesquisa Feminista, em 12 de maio de 2021.

***Em Elites gamonais ou Estado Gamonal nos referimos à estreita relação entre grupos de latifundiários regionais e as elites políticas que fazem parte deste grupo, exercendo forte influência nas agendas governamentais por meio de setores políticos e partidários. Somada à criação de filiações empresariais e políticas como governo.

****Minga vem de Minka, palavra da língua Quechua. Refere-se ao trabalho coletivo-comunitário que reúne um grupo de pessoas para alcançar um objetivo comum. Durante as demandas indígenas, principalmente no Departamento de Cauca, converteu-se em sentido político, significa tempos de reflexão, protesto social e organização política para repensar, exigir e traçar uma política da vida comum. Essas Mingas como mobilização social têm sido os limites para o abuso policial, estatal e empresarial.

*****Ecossistema de montanha, caracterizada pelas altas altitudes (de 3 mil a 5 mil metros) com a presença de bosques, localizada na região andina.

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