Por Cris Vianna Amaral.

A psicoterapeuta e jornalista Cris Vianna Amaral analisa o desejo que move o apaixonamento pelo olhar da psicologia junguiana.

Uma feminista sempre é convocada quando o assunto é a opressão das mulheres ou para comentar a última tragédia anunciada, o que obviamente é corretíssimo. Porém, quase nunca para falar de infraestrutura, orçamento público ou… paixão. O cotidiano da vida, suas contradições, sonhos e delírios parece não fazer parte dos “temas” de quem se dedica à essa militância. 

A partir do planejamento de uma live para falar da Psicologia Analítica, teoria criada por Carl Gustav Jung, me autoconvoquei para escrever algo nada jornalístico ou acadêmico sobre a paixão. Eu queria um texto dançante. Comecei a lembrar de músicas românticas e, para o meu desespero, a única que vinha em minha memória era essa:

“É tanto, é tanto/Se ao menos você soubesse/Te quero tanto”

Confesso que preferia estar ouvindo mentalmente as vozes de Maria Bethânia, Cássia Eller ou Luedji Luna, mas o que continuava martelando na minha cabeça era essa música do Skank. Uma banda que eu associo a outras coisas, como festas, amizades, tempo de universidade.

A saída foi me debruçar sobre a canção e então fui lembrada pela Internet que esta é uma versão de I want you, de Bob Dylan, um Nobel de literatura. E a partir daí foi de bom grado que aceitei essa surpresa que havia preparado para mim mesma.

Mas porque estou contando tudo isso?

Porque a paixão é assim, a gente não se encanta exatamente por quem a gente quer, de acordo com o que eu acho adequado ou o que a sociedade diz que me falta. O inconsciente não trabalha sob as ordens do consciente e por isso os sentimentos nos parecem misteriosos; mas todo o enigma guarda uma revelação. Neste caso, a própria música de Dylan.

Sabendo que suas letras são profundas e nada óbvias, fui procurar algum significado para essa música, já que fala de um coveiro culpado, um político bêbado, mães, salvadores adormecidos, uma rainha, um menino de terno brilhante.

O professor e músico Tony Attwood, aficcionado pelo cantor estadunidense, veio em meu auxílio: “…porque esses fantasmas que passam pela noite são as imagens de um cérebro fascinado… aquele momento na vida em que nada mais importa, quando a racionalidade escapa e quando se desistiria de tudo e de todos para ter aquela pessoa. É uma loucura total…”, ele escreve sobre a música.

Mas apesar desse aspecto de loucura da paixão, é importante lembrar que há escolha: levar o relacionamento adiante ou não. Numa sociedade misógina, algumas paixões podem ser realmente perigosas. (Leia mais abaixo.)

Tendo como único risco ficar ainda mais envolvida neste texto, levei a paixão e seus devaneios adiante. Por que eu quero tanto aquela pessoa? Por que eu quero tanto estar apaixonada? Ou ainda, chamando Tim Maia para o palco, será que simplesmente quero ter a fantasia de ser feliz por ser amada por alguém? As respostas já dizem muito sobre o momento que se está vivendo.

Arte: Vera Rotta

Como ato imaginativo, a paixão é incrível. Porque enquanto estou apaixonada, a imaginação ganha um status de verdade. Eu sinto e é isso que importa, acima de qualquer razão, mesmo que se invente muitas razões. E não é apenas imaginar quem o outro é, mas uma oportunidade de imaginar um outro eu interagindo com aquela nova pessoa.

Eu gosto mais de mim mesma quando estou apaixonada. Naquele momento mostro minha melhor versão, o que talvez eu gostaria de ser sempre. 

Na teoria junguiana, a paixão é fruto de uma projeção. Acontece quando os conteúdos psíquicos são deslocados para outra pessoa ou objeto. Importante pontuar aqui minha definição de paixão neste texto: aquela primeira fase do amor em que a projeção é tudo o que conheço do outro.

Mas sem projeção não há histórias de amor, não há cinema, muito menos os clássicos musicais. No filme da paixão, somos as diretoras, as protagonistas e todas as outras funções: motorista, iluminadora, escolhemos a melhor trilha sonora. Uma paixão sempre tem uma canção ou várias.

Arte: Vera Rotta

Mas por que eu escolhi exatamente esse tema? Toda paixão no fundo tem um porquê.

O fato é que dentro da teoria junguiana eu estudo o animus e a anima. Para Jung, o animus seria a parte masculina da mulher e a anima a parte feminina do homem. Simplificando muito, como as bolinhas do yin e yang.

No entanto, num tempo em que as pessoas experimentam vivenciar tantos gêneros e sexualidades, esses conceitos entram num grande campo de disputa, porque desde os tempos de Jung o mundo mudou tanto que fica até difícil dizer o que é feminino ou masculino. E mesmo assim, animus e anima estão entre os arquétipos mais populares porque explicam o motivo pelo qual nos apaixonamos. Projetamos a nossa anima e/ou nosso animus no outro.

Verena Kast, uma autora junguiana, diz que ao projetar o animus e/ou a anima, o indivíduo encontra a parte que desde sempre lhe pertencia e que havia muito tempo lhe faltava. No entanto, como não conhecemos profundamente o outro, o que importa neste primeiro momento é a imagem que eu atribuo ao ser amado.

Kast também alerta que durante o “apaixonamento” posso me comportar como uma projeção, como “ele” quer. “O outro delega um conteúdo psíquico, e eu aceito essa delegação, comportando-me de maneira correspondente”. Ao mesmo tempo que provoca fascínio, esse jogo também pode significar o abandono de si próprio. Será que quero ser o objeto de amor do outro porque não sei amar?

Avançar além do primeiro momento da paixão pode ser uma questão de sorte em tempos de amores líquidos. No entanto, a união de animus e anima são fundamentais para a individuação, objetivo da vida psíquica segundo Jung, que consiste na aceitação das dificuldades e possibilidades, num processo consciente de reconhecimento da totalidade. Nesse sentido, Kast defende que animus e anima não deveriam ser deixados somente na projeção ou na delegação ao outro, mas integrados o máximo possível, vistos e reconhecidos também como partes psíquicas do que me constitui.

Se na infância os complexos materno e paterno são centrais, o animus e a anima são um chamado para sair do que é familiar para ir ao encontro com o outro. “Eu não suporto mais a minha mãe vir na minha cama toda noite, me dar um beijinho na boca e dizer: boa noite meu filhinho…Não quero mais que a minha mãe me beije na boca…Quero outro beijo, não quero mais ser B.V.”, teria dito Rafael, do alto dos seus 11 anos, durante uma sessão de terapia. O trecho é retirado do artigo O beijo desejante da anima na adolescência, do livro Letras Imaginativas, de autoria do psicanalista junguiano Marcus Quintaes. 

No texto Quando o amor acaba: do sintoma de ser amado ao desejo de amar, cenas de uma individuação amorosa (do mesmo livro), Quintaes nos diz: “A experiência amorosa, seja pelo êxito ou pelo viés do desespero, é aquela que tem o poder descomunal de fazer o sujeito se indagar sobre si mesmo, de se perguntar sobre as suas escolhas, rever o que sabe ou imagina saber sobre si, pois no amor, somos e experimentamos o melhor e o pior de nós mesmos. O amor é um enigma a nos desafiar. O amor como deciframento.”

Uma paixão pode me beijar e revelar lugares que eu nem sabia que existiam em mim, criando uma conexão com novas fantasias. Saio da paixão mais inteira, mais complexa. Seja para uma nova cena amorosa ou para mergulhar num amor profundo.

Quintaes me lembra ainda que a psique é plural, formada por complexos, anima, persona, sombra, entre outros: uma legião de personagens imaginais, com vontades e desejos próprios. E então voltamos à música de Dylan: quem está apaixonada em mim? Um coveiro culpado, um político bêbado, uma mãe, salvadores adormecidos, uma rainha, ou como um menino de terno brilhante que não quer mais ser boca virgem como Rafael?

Já vimos essas personagens acontecendo em nossa vida? Como um coveiro culpado, já enterramos uma paixão antes mesmo que ela iniciasse e depois nos arrependemos? Como um político bêbado, já tentamos agradar a todo custo com discursos vazios? Já dissemos para nosso amor “leva um casaquinho”, como se fôssemos mães? Já pensamos que poderíamos salvar o outro quando não conseguimos ajudar nem a nós mesmas? Ao conquistar o crush tão sonhado e desejado, já nos sentimos rainhas? Colocamos nossa roupa mais brilhante para encontrar alguém? Importante dizer que as imagens são muito individuais. Como na psicoterapia não há certo ou errado como numa prova de interpretação de texto, a música pode levar a imaginação de cada uma para diferentes caminhos. 

Mas a paixão pode ser decepcionante quando se constata, numa relação mais próxima, que o parceiro não corresponde à imagem que construímos para ele. Para James Hillman, um autor pós-junguiano, o amor acaba quando o outro não faz mais parte de nossa fantasia imaginativa.

“Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente (…) É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é”. É quase impossível falar de paixão sem acabar em Clarice Lispector.


Paixão não rima com violência

Não é o assunto deste texto, mas eu não poderia deixar de fazer um alerta feminista. Se você sente que está numa relação abusiva, procure ajuda, porque numa relação saudável essa dúvida não poderia sequer existir.

A violência obedece a um ciclo com as seguintes etapas: violência (que pode ser psicológica, física, moral, patrimonial ou sexual) pedido de perdão do agressor, nova lua-de-mel e nova agressão, que aumenta a cada ciclo, segundo a própria Maria da Penha. Que pode começar com piadinhas, passar por mentiras – que não devem ser naturalizadas – passando a ameaças de morte. Qualquer dúvida, entre mande uma mensagem para JunguiAnes pelo Facebook ou Instagram.

*A psicoterapeuta e jornalista Cris Vianna Amaral intregra o Centro de Estudos Junguianos, Análise e Arteterapia e acaba de lançar o projeto @JunguiAnes, por meio do qual pretende discutir as possibilidades de uma clínica junguiana feminista. É co-fundadora do @mapadasmina, coletivo que visa promover, visibilizar e apoiar mulheres na política e militante da PartidA, movimento feminista. Foi organizadora do livro Olhar de Mulher: A fala das conselheiras do Orçamento Participativo de Porto Alegre (2003). 

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