No aniversário da Constituição Federal, 5 de outubro, organizações e redes da sociedade civil acionaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra a CPI do Aborto, instalada na última terça-feira (11) na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). 

Leia o documento enviado à CIDH.

O texto destaca o caráter inconstitucional e persecutório do requerimento de abertura da investigação parlamentar, e pede que a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH se manifeste publicamente contra a perseguição, intimidação e risco de criminalização das jornalistas brasileiras Paula Guimarães, do portal Catarinas, e Bruna de Lara e Tatiana Dias, do The Intercept Brasil. A perseguição das jornalistas por autoridades públicas iniciou após a publicação de uma série de reportagens sobre o caso de uma menina de 11 anos que teve seu direito de acesso ao aborto legal violado por agentes do sistema de Justiça catarinense.

“A tentativa da Assembleia Legislativa de Santa Catarina de criminalizar jornalistas pelo exercício de seu dever de informar a sociedade é extremamente preocupante e revela mais uma face do cerceamento à liberdade de imprensa no Brasil. É fundamental que organismos internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tenham sido alertados sobre o caso e possam ser ouvidos pelos parlamentares”, diz Emmanuel Colombié, diretor da Repórteres sem Fronteiras (RSF) para a América Latina, uma das organizações signatárias.

Segundo a RSF, o conjunto das organizações espera chamar a atenção do sistema interamericano de direitos humanos para os riscos que essa tentativa de criminalização representa para o jornalismo no Brasil. O documento evidencia o fato de que a CPI é um instrumento que confere ao Legislativo poderes próprios de autoridades judiciais, que implicam prerrogativas que têm o potencial de cercear direitos e liberdades fundamentais – como quebra de sigilo de comunicações telemáticas, prática danosa para a garantia do sigilo da fonte do trabalho jornalístico. 

O comunicado à Relatoria Especial é subscrito por 16 organizações e redes. São elas: Associação de Jornalismo Digital (AJOR), Anis – Instituto de Bioética, Artigo 19, Cladem Brasil, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília, Emancipa Mulher, Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), IPAS, Portal Catarinas, Rede de Jornalistas e Comunicadoras com visão de Gênero e Raça, Relatoria Nacional de Direitos Humanos da Plataforma Dhesca Brasil, Repórteres sem Fronteiras e Tornavoz.

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Organizações e redes que assinam o documento.

Em julho, nove organizações já haviam acionado a CIDH pedindo auxílio na proteção da equipe médica e para evitar a revitimização da criança e da família. São elas: Center for Reproductive Rights (CRR), Anis – Instituto de Bioética, Relatoria de Direitos Humanos da Plataforma Dhesca Brasil, Cladem Brasil, Ipas, Coletivo Margarida Alves, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP e Cravinas – Clínica de Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos da Universidade de Brasília. No mês seguinte a articulação solicitou uma audiência regional para apresentar o caso brasileiro como emblemático por revelar um padrão de violações de direitos humanos na América Latina.

Irregularidades na instalação 

O fato de a CPI ter definido que as sessões terão caráter sigiloso, sob o argumento de envolver uma criança, também já foi comunicado à Relatoria da CIDH. Trata-se de outra ilegalidade, que fere os princípios de transparência e publicidade expressos em procedimentos parlamentares como esse, que deveriam ser acompanhados por toda a sociedade.

“Os atos de Comissão Parlamentar de Inquérito são, como os procedimentos do Poder Legislativo e dos poderes em geral, em regra públicos. Isso está relacionado aos princípios republicano e democrático, e às ideias de transparência, publicidade dos atos e atividades estatais e à própria noção de controle dos atos do poder público e sua sujeição ao escrutínio público – para os quais a imprensa é fundamental”, afirma Juliana Alvim, professora de direitos humanos da UFMG, que atua junto ao Centro de Direitos Reprodutivos.  

Na análise de Alvim, o argumento utilizado para o sigilo (envolver crianças) é justamente um dos motivos pelos quais o procedimento sequer deveria ocorrer. “É importante questionar em que medida uma CPI que busca tratar especificamente de um caso envolvendo uma criança não viola ela própria a proteção, prevista em lei e na Constituição, para seus dados e seu melhor interesse”.

Segundo explica Sérgio Renault, advogado especializado em direito administrativo, a regra tanto no regimento da Câmara Federal, quanto no da Alesc, é a publicidade. “Eventualmente pode se realizar uma outra sessão de forma sigilosa para preservar direitos, mas essa é a exceção e não a regra”, destaca.

O advogado aponta ainda para a parcialidade da CPI, que terá como relatora Ana Caroline Campagnolo, a mesma deputada proponente. “O fato de a relatora ser a mesma pessoa que propôs a ação deixa muito claro que o motivo é garantir a parcialidade do processo e não a imparcialidade que deveria ser priorizada no trabalho de uma CPI”, explica.

Pedidos

Além de pedir que a Relatoria Especial sobre Liberdade de Expressão da CIDH se posicionasse contra a instalação da CPI, as organizações também solicitaram do órgão um pronunciamento público recomendando:

1. Ao Estado brasileiro, que se abstenha de utilizar processos civis, criminais e/ou administrativos com a finalidade de punir, pressionar ou intimidar jornalistas e/ou veículos de comunicação que divulgam informações de interesse público, especialmente sobre direitos sexuais e reprodutivos, o que envolve o caso específico detalhado neste documento e relatos sobre a respectiva atuação de membros do Sistema de Justiça; 

2. Ao Poder Judiciário e ao Ministério Público brasileiros, que utilizem como referência os parâmetros internacionais de direitos humanos, incluindo os interamericanos, ao impor quaisquer restrições ao exercício à liberdade de expressão, especialmente por se tratar de um assunto de interesse público. Nesse sentido, devem ser sempre avaliadas pelas autoridades, previamente à adoção de quaisquer medidas restritivas, o respeito simultâneo aos requisitos de legalidade/legitimidade, necessidade e proporcionalidade; 

3. Ao Estado brasileiro, que repare os danos já causados às jornalistas do Portal Catarinas e do The Intercept Brasil que reportaram sobre a violação de direitos, inclusive por meio de pedido público de desculpas; 

4. Ao Estado brasileiro, que adote medidas proativas para assegurar o exercício à liberdade de expressão e de informação sobre direitos sexuais e reprodutivos, para garantir a segurança de quem difunde informações sobre esses direitos e para assegurar o direito de acesso à informação sobre aborto legal e seguro e temas conexos, facilitando a mulheres, meninas e demais pessoas que possam gestar o acesso à informação sobre saúde sexual e reprodutiva como um pressuposto fundamental para o exercício de direitos.

Entenda o caso

Em 28 de junho, o portal Catarinas e o The Intercept Brasil publicaram a reportagem intitulada “Suportaria mais um pouquinho?”, que denunciava a violação de direitos de uma menina de 11 anos que, depois de estuprada, foi impedida de abortar em Santa Catarina, um dos estados mais conservadores do país. A família da criança procurou o Hospital Universitário de Florianópolis assim que notou a gestação, na 22ª semana, mas a instituição se negou a fazer o atendimento sem que o caso fosse judicializado, alegando uma norma do Ministério da Saúde que prevê que a interrupção legal da gravidez só pode ser realizada até a 20ª semana. A legislação brasileira, entretanto, não faz qualquer menção a um limite de idade gestacional.

O caso então foi parar nas mãos da juíza Joana Ribeiro Zimmer e da promotora de Justiça Mirela Dutra Alberton. A juíza e a promotora tentaram conduzir a vítima a não interromper a gravidez, inclusive mantendo a criança em um abrigo para que não pudesse abortar. Após a repercussão, ambas deixaram de atuar no caso e a criança teve seu direito garantido. Porém, a deputada bolsonarista Ana Campagnolo (PL) enviou um requerimento ao presidente da Alesc, deputado Moacir Sopelsa (MDB), pedindo a instauração de uma “CPI do Aborto” para tratar do caso. 

A primeira justificativa para abertura da CPI seria apurar se “o aborto foi realizado legalmente ou se houve cometimento de crime”. Depois, se foi “realizado ilegalmente sob a falsa comunicação de crime”, se a conduta médica praticada foi “tecnicamente correta e legítima”, além de propor uma investigação dos veículos que divulgaram informações sobre o caso que tramita em segredo de justiça.

Cabe destacar que o questionamento central sobre “falsa comunicação de crime”, apontado pelo requerimento, não se sustenta diante do Código Penal, que em seu artigo 217 tipifica o estupro de vulnerável como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Já o aborto é legalizado no país e pode ser realizado de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em três situações específicas: gravidez resultante de estupro, risco à vida da pessoa que gesta e gestação de fetos anencéfalos. Quando se trata de crianças, a garantia abarca dois dos permissivos legais: estupro e risco de morte. 

A investigação parlamentar foi instalada às 17h da última terça (11) e tem maioria de membros da ala conservadora: Ana Campagnolo (PL), Felipe Estevão (União), Sérgio Motta (Republicanos), Jessé Lopes (PL), Fabiano da luz (PT) e Ismael (PSD).

*Atualizada em 13/10/2022 às 17h40.

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