Esse é o quarto capítulo da série Maternidade Algemada: grades que separam vínculos.

Jaqueline, 35, mãe de Nicole, atualmente com sete anos, não consegue segurar as lágrimas e o embargo da voz ao descrever a cena do momento em que foi presa: “Era por volta de cinco horas da manhã; eu e Nicole estávamos em casa dormindo e meu marido Carlos colocando os animais no pasto.”

Quando ele retornou das atividades, a mulher já tinha sido algemada. Os policiais fizeram o mesmo procedimento com Carlos e tão logo o primeiro familiar que conseguiram contatar chegou para tomar conta da única filha do casal, ambos foram colocados na viatura e levados para esse destino temeroso fora da vida familiar.

A assistente social que trabalha em sua mesa percebe Jaqueline chorando e imediatamente levanta de sua cadeira, abre a porta do armário e alcança-lhe um lenço de papel. Mantenho-me em silêncio, enquanto ela seca as lágrimas. Ao continuarmos, pergunto se consegue descrever o que provoca seu choro e ela responde: “Saber por outras pessoas como minha filha está”.

Prestes a completar dois anos de prisão, Jaqueline só recebeu a primeira visita da filha após um ano de encarceramento. Depois da separação forçada, Nicole teve dificuldades de lidar com a condição da mãe e chegou a ficar doente. “Ela vinha até aqui na frente, mas não conseguia entrar: chorava o tempo todo e a vó tinha que voltar com ela para casa”, relata a mãe encarcerada. Até hoje, Vitória não entende porque suas visitas à mãe devem ser assistidas por uma policial armada.

A guarda provisória de Nicole foi designada pelos pais à avó materna que reside em Canoinhas, no Planalto Norte de Santa Catarina. Após alguns meses, acharam que seria melhor mandá-la morar na capital com a avó paterna, que apresentava melhores condições de dar assistência à neta e também para que ela pudesse ficar “mais perto” dos pais. Pergunto à Jaqueline se posso encontrar sua filha e sogra. Ela responde balançando a cabeça positivamente e informa o endereço.

 

Dona Francisca, sogra de Jaqueline e avó paterna de Nicole, ouve atentamente a apresentação e explicação da pauta e faz perguntas. Ao final, expõe seus receios de submeter a neta a um interrogatório sobre sobre assuntos com os quais ainda têm dificuldades de lidar. Me orienta a não tocar no assunto da prisão dos pais. “Ela sempre trava e se cala quando falamos nisso com terceiros”, justifica.

Senti que essa era uma das condições para que eu pudesse conversar com Nicole que, por coincidência, nesse dia não estava em casa. Com o filho e a nora presos, Francisca viu muitas pessoas se afastarem do núcleo familiar resistente após o ocorrido. Ela se mostra bastante interessada e surpresa com uma proposta que busca  investigar como as crianças de pais e mães presos são alcançadas pelo estigma do cárcere. Mais ainda quando anuncio minha determinação de que sejam protagonistas e autoras de suas próprias histórias.

Ao final de nossa longa conversa nessa visita não programada, ela autoriza que eu retorne à sua casa quantas vezes for necessário para que eu conheça Nicole além do estereótipo que lhe foi imposto: uma menina filha de pais presos.

Sobrevivência daquelas que não estão nem nas estatísticas 

A história de Nicole é única, mas também comum a muitas crianças e adolescentes brasileiros que se separam dos pais e das mães quando a convivência no lar é interrompida por uma sentença de prisão. Essa separação pode durar um dia, um mês, um ano, dezenas de anos. Pode durar o tempo suficiente de um bebê tornar-se adolescente e de comprometer para sempre esse vínculo. As filhas/os das mães presas formam um povo relegado à invisibilidade por detrás dos muros das penitenciárias.

O relatório do Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – realizado desde 2004 e atualizado pelos gestores das instituições penais mostra como o Brasil negligencia a dimensão dessa população obrigada a crescer longe de mães e pais. A segunda edição do mesmo relatório, denominada Mulheres, publicada em 2017, traz informações específicas sobre o encarceramento feminino. Os dados, contudo, não trazem uma estimativa realista do número de homens e mulheres presos que têm filhos, assim como o número médio de filhos por mulheres presas, que chegam a quase zero em algumas regiões do Brasil.

Essa subnotificação ocorre porque as informações dispostas pelo relatório referem-se a apenas  7% da população prisional. Em alguns estados não há quaisquer dados, conforme o texto do próprio relatório: “Nos estados do Rio de Janeiro, Sergipe e no Distrito Federal não existiam quaisquer informações acerca da quantidade de filhos entre as pessoas privadas de liberdade, homens ou mulheres. Os estados do Rio Grande do Sul e Amapá, por sua vez, tinham informações disponíveis para mais de 40% da população prisional.”

Ainda, conforme o mesmo relatório, 74% das mulheres privadas de liberdade têm filhos, enquanto 53% dos homens declararam ter filhos. Esses números podem estar diretamente ligados à própria distribuição dos papéis de responsabilidade sobre os filhos, atribuídos historicamente de forma diferente aos homens e mulheres, com uma carga maior para as mães.

Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça coletados pelo Censo Escolar revelam que o número de crianças sem o registro paterno em 2015 era de 5,5 milhões no Brasil. Nesses casos, a Lei 3.689/1941 do Código Processo Penal garante prisão domiciliar para mulheres sem alguém para cuidar dos filhos, desde que cumpram alguns requisitos como: ter filhos menores de 12 anos; ser imprescindível aos cuidados de criança até os seis anos de idade ou com deficiência física ou mental; ser gestante; ter mais de 60 anos, nesse caso considerando a vulnerabilidade de saúde da própria mulher.

Para os homens, a única exigência é a de ter filhos de até 12 anos incompletos e provar em juízo ser o único responsável pela criança.

A importância da assistência familiar aos filhos de mãe e pais presas/os

Num belo domingo de primavera, o primeiro encontro com Nicole ocorre em sua casa. Ao chegar, vejo-a sentada no sofá com a TV ligada num canal infantil. Ainda não sei suas expectativas com a entrevista. Sua avó nos apresenta uma à outra e anuncia: “Essa é a moça que vai escrever uma reportagem e veio conversar contigo, Nicole”.

Com um sorriso discreto e olhos arregalados, ela dá um oi tímido. Estou um pouco apreensiva com sua reação e sobre como pode ser nossa conversa. Uma especialista já havia me avisado que as crianças costumam se recolher ao silêncio ou tendem a concordar com tudo que perguntamos ou afirmamos por se sentirem, de certa forma, intimadas. Francisca pergunta à neta se ela deseja que permaneça conosco. Sem esperar pela resposta, a avó volta aos seus afazeres na cozinha e afirma que não será necessário.

Sou recebida por Nicole no nosso segundo encontro. Ela me direciona à sala enquanto pergunta pelo caderno de perguntas. Dessa vez, ela já havia deixado os lápis e as canetas coloridas sobre o sofá para continuarmos nossos assuntos.

Nicole sonha em ser artista; desenhar é uma de suas atividades favoritas. Ao ver nossas respostas no caderno, a avó conta que toda a semana a neta elege uma profissão  diferente para seguir quando crescer. Sorrio e entendo, ao visitar minhas próprias memórias de infância. Concentrada sobre o sofá, a menina colore com tons e cores diversas a família representada por sua avó e dinda. Apesar de não morarem com ela, os animais de estimação também fazem parte desse núcleo: um cachorro e um coelho.

A menina estuda numa escola particular, cursa a primeira série do ensino fundamental e realiza atividades extraclasses oferecidas pela própria escola. Cita a capoeira em primeiro lugar como a mais legal e me corrige: ”Não se luta capoeira, se joga”. Francisca me explica que o tratamento e acompanhamento de uma psicóloga se tornou necessário quando a neta estava em processo de adaptação logo que veio da casa da outra vó, assim como para compreender os motivos pelos quais passaria a morar com a avó paterna.  Ela afirma que a menina conversa sobre tudo com a psicóloga, mas ainda encontra dificuldades de falar abertamente sobre a situação dos pais. Psicóloga e menina têm encontro marcado toda terça-feira à tardinha, após a aula.

Com a TV ligada em volume baixo ao fundo, nossa conversa transcorre fluentemente, quando chegamos à seguinte questão de nosso colorido caderno: “Com quem ou com o que você acha que vai sonhar esta noite?” Ela nem pestaneja: “acho que vou estar na Amazônia”. Estranho sua resposta e pergunto o motivo, ao que ela responde, direta: “gosto de lá”.

Espera eu escrever a minha resposta e vira a página do caderno como quem procura fugir de responder mais alguma pergunta sobre o assunto da Amazônia. Quando estive a sós com Francisca, ela me explicou que Nicole tem uma angústia sobre o que responder quando alguém perguntar sobre seus pais.

Então elas combinaram de responder que “os pais dela estão na Amazônia trabalhando, não possuem telefone e até eles retornarem ela ficará morando com a avó.” Me chama a atenção o modo como as crianças encontram para lidar com as situações pelas quais passam. O fato de não falarmos dos pais é por precaução à própria protagonista e por sua dificuldade de lidar com o assunto, mesmo assim, ela incluiu-os na história que me contava sobre sua vida, seus sentimentos, suas alegrias, sua rotina e suas saudades mesmo sem eu saber.

O encontro vigiado

Uma semana antes do nosso encontro, em setembro de 2018, mãe e filha puderam estar juntas. Nicole não gosta de acordar tão cedo mas, naquela sexta-feira foi acordada pela avó antes das sete horas da manhã. Uma dualidade de sensações tomaram conta de si: queria encontrar Jaqueline, mas estava preocupada com a roupa e os chinelos adequados que usaria na visita, a fim de amenizar o constrangimento de ficar sem roupa diante de uma pessoa uniformizada igual aqueles que levaram-na de si naquela manhã úmida e fria. Esse é o principal motivo que faz com que Nicole, por vezes, prefira não visitar a mãe. Dessa vez a saudade falou mais alto, por isso pediu a avó que a levasse. Acordaram e se arrumaram.

Desacostumada com o despertar  tão cedo e ansiosa pelo encontro, a menina mal tocou nos pães e frutas preparados pela avó, seu olhar estava concentrado nas sacolas com os itens que levariam para Jaqueline. Assim que levantou da mesa, recordou à avó mais uma vez sobre os “presentes” que levariam à mãe. Na caminhonete, a avó dirigia e Nicole foi no banco de trás com as sacolas.

O trajeto de uns 40 minutos até a penitenciária se faz sem muito trânsito. Antes das nove horas acessam a rua da penitenciária, Nicole não fala nada durante o percurso. Estacionam e se dirigem ao portão de acesso. Não há filas, uma ou outra pessoa aguarda a liberação para entrar. A primeira checagem é das sacolas que levam, o guarda retira um a um dos itens e pergunta, observa as embalagens [todas devem ser transparentes] e vai aprovando um a um dos itens. Produtos de higiene e alguns alimentos e frutas são os principais volumes.

Nicole não perde a avó de vista ao ser encaminhada para o pequeno recinto de revista. Ao terminar o procedimento, a avó é encaminhada ao mesmo processo. Assim que terminam as revistas e se dirigem pelo pequeno corredor até a sala de visitas, Nicole já está mais aliviada, agora só queria um colo de mãe pelas próximas duas horas, tempo máximo permitido de vista ao encontro que demora meses para ocorrer. Ao avistar sua mãe sentada a alguns metros, Nicole acelera o passo enquanto a avó observa a neta largar sua mão e ir ao encontro do abraço mais esperado há meses.

Como uma filha que se resguarda ao colo de mãe no final da tarde para contar sobre seu dia, Nicole conta sobre as notas boas que acumula na escola, sobre sua festa de aniversário que aconteceu há alguns meses, fala sobre as atividades novas que aprende nas aulas extraclasse. Sobre a mesa, ela mostra à mãe os “presentes” que trouxeram, nem se dão conta do tempo passar, quando o encontro é mecanicamente interrompido pela guarda de expressão séria e armada que se manteve inarredável durante todo o período para informá-las que neta e avó devem se retirar da sala em cinco minutos, pois o tempo de duas horas está se esgotando.

A despedida é tão calorosa quanto a chegada e então são encaminhadas pela guarda para o corredor de acesso a saída, enquanto a mãe é encaminhada de volta ao alojamento. No trajeto de volta, através do retrovisor, Francisca percebe os olhos escuros da neta olharem firme pela janela concentrados no nada, quando é tomada de surpresa pela pergunta:

“Vó, por que aquela mulher tava com uma arma assistindo eu ganhar um colo da minha mãe?”

A avó procura rapidamente uma resposta em sua memória para dar a neta, mas não sabe como dizer, então apenas justifica dizendo que é o trabalho da guarda, mesmo sabendo que essa resposta não convence nem a si mesma. Na sexta-feira seguinte, Nicole não retornou na penitenciária, ainda assim, Jaqueline volta a sala de visitas para receber a visita assídua de sua mãe —  o pai vem junto, mas nunca entrou.

Entre as mulheres com quem conversei, Jaqueline é a única que recebe visitas regulares dos pais. Não é uma exceção dessa unidade penitenciária, mas num contexto geral. As demais compõem uma estatística lastimável no Brasil que revela o deserto de visitas no cárcere, especialmente às mulheres.

Nicole visita o pai de 15 em 15 dias na penitenciária masculina, cuja direção não exige processos de revistas íntimas “constrangedoras”, como qualifica sua mãe, à exceção do scanner. “Aqui [no presídio feminino], ela precisa tirar a roupa, então acaba vindo menos”, acrescenta Jaqueline, com a expressão triste de quem entende a filha, mas não consegue compreender o sistema ao qual está submetida.

A Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania e o Departamento Estadual de Administração Prisional de SC (Deap) junto ao STF determinou em setembro de 2018 a proibição das revistas íntimas em que o visitante precise ficar parcial ou totalmente nu e que envolvam agachamentos e observação de órgãos genitais.

Um dos principais motivos da revista é para impedir a entrada de produtos como drogas, celulares e armas nos presídios. No entanto, essa forma de revista pode não ser a mais adequada para conter esses atos, pois de acordo com uma pesquisa realizada pela Rede Justiça Criminal em unidades penitenciárias de São Paulo durante os anos de 2010 – 2013 mostra que dos 3,5 milhões de visitantes, apenas 0,03% tentaram entrar nos presídios com drogas ou celulares e em nenhum caso com armas.  

Acompanhe a série em cinco capítulos.

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