A fissura nos vínculos entre mulheres encarceradas e suas/seus filhas/os é a ponta de uma sequência de violações perpetuadas por um sistema de justiça que tende a reproduzir as desigualdades sociais, de gênero e de raça estruturantes da sociedade brasileira. Para acessar essa realidade encoberta pelos muros do cárcere e do estigma, a série Maternidade Algemada apresenta em cinco capítulos história de mulheres e filhas/os separadas/os pela prisão, além de posições de especialistas e representantes de órgãos públicos sobre o tema.  

Os muros altos de aspereza branca, começam a perder a alvura rente ao chão por conta da chuva e da umidade. No topo, arames em forma de círculos parecem se equilibrar de ponta a ponta sobre o cercado. Ainda do lado de fora, uma flor embeleza o caminho num fiapo de terra entre o concreto da rua e das altas paredes. Do alto da guarita, com uma visão panorâmica, um soldado vigia qualquer pessoa que se aproxime do local. O som das sirenes, dos cadeados, das trancas, dos portões que abrem e fecham em horários determinados, do falatório durante as refeições e das conversas entre as habitantes não deixam o ambiente silenciar ao longo do dia.

Do lado de fora, centenas de pessoas passam em frente aos muros cadeados e até nutrem certa curiosidade sobre o que acontece do lado de dentro dessas masmorras. Mas quem sabe sobre as crianças e adolescentes que só transpassam esses muros em determinados dias da semana? E sobre as mulheres que foram privadas de liberdade e da convivência com suas/seus filhas e filhos?

Acompanhe os relatos em áudio da jornalista a cada passo da reportagem:


O afastamento definitivo ou mesmo o rompimento dos vínculos entre mães presidiárias e filhos faz parte da vida cotidiana da Penitenciária Feminina de Florianópolis. Mostra que na prática a realidade contradiz as novas orientações que o judiciário alega vir adotando no sentido de manter filhos e filhas de pais e mães presos na família de origem.

A responsabilidade no cuidado com os filhos deveria ser a mesma para mães e pais quando um ou outro é preso. No entanto, diversas pesquisas confirmam que as mulheres ainda são o centro de suas famílias e as responsáveis por mantê-las unidas. Enquanto 74% das mulheres presas afirmam ter filhos, apenas 47% dos homens assumem-se como pais, conforme o Infopen Mulheres 2018.

Outro dado relevante ao refletir sobre as condições as quais essas crianças são submetidas após o encarceramento de suas mães, é que 80% das mulheres são consideradas chefes de família, de acordo com informações do Conselho Nacional de Justiça. Com base nesses dados, decidimos chegar às histórias das/dos filhas/os através do olhar de suas mães, focando o vínculo materno e o ambiente do presídio feminino como lugar de produção dos diálogos.

Isso não significa sucumbir ao olhar sexista, que alivia essa responsabilidade dos pais e sobrecarrega as mães. Um dos sinais dessa cultura é que o benefício do indulto se adapta às condições de uma sociedade onde as mães criam os filhos e se aplica somente às mulheres em prisão preventiva. 

No mundo dos “livres”, os filhos das mães presidiárias ficam sob os cuidados de outros familiares, em casas-lares ou são destinados para adoção por uma família substituta. Apesar de todos os processos buscarem cobrir a ausência dos responsáveis de origem, as histórias aqui reunidas mostram que nem sempre são mantidos em ambientes protetivos, com assistência adequada. Mostram ainda que, apesar das indicações da política de assistência social a essas crianças e adolescentes, muitas vezes os vínculos com a mãe são rompidos em definitivo.

Assim, mulheres presidiárias e seus filhos são duplamente penalizadas quando, após cumprir sua pena, terão perdido seu lugar de referência para a personalidade de uma criança que está em constante formação. Quanto aos filhos: sofrem o baque da separação; podem ser estigmatizados socialmente; veem seus direitos à convivência familiar negados e em alguns casos podem ser levados a repetir o mesmo caminho dos pais.

O caminho até o outro lado do muro

Após ligações telefônicas e e-mails trocados, finalmente, consigo agendar a apresentação da pauta à Joana Mahfuz, diretora da Penitenciária feminina de Florianópolis, localizada no bairro Agronômica, cerca de uns 10 minutos de carro do centro da capital. Ela me passou o endereço por e-mail, o local não tinha número. Desci na unidade masculina para pedir indicação. Me informaram que ficava umas duas quadras a frente, voltei ao carro do uber que me aguardava e em menos de um minuto, desci na frente da 5ª Delegacia de Polícia.

Dirigi-me a um grande portão lateral, no qual havia uma fila de homens, mulheres e algumas crianças sob uma área coberta. Ao me aproximar, avistei uma placa com a palavra “visitas” em letras garrafais posicionada acima de uma janela de vidro espelhado com um microfone ao centro.

Conforme os visitantes chegavam, se colocavam à janela e identificavam-se, uma voz vinda do outro lado, respondia-os. Na lateral tinha uma porta, bati e ninguém atendeu. Olhei para os lados e nenhuma pessoa prestava atenção em mim, os visitantes estavam entretidos em organizar as sacolas que traziam e conversavam entre eles. Bati novamente, uma mulher sem muita simpatia abriu a porta.

Perguntei pela diretora Joana, ela apenas respondeu que não havia ninguém com esse nome na unidade. Perguntei se ali era o presídio feminino, ela respondeu que não e apontou com a caneta que tinha na mão para as minhas costas. Virei o rosto e avistei uma pequena lomba e uma escadaria. Antes dela fechar a porta e retornar ao seu trabalho, agradeci e segui.

O pequeno trajeto até a outra unidade estava intercalado entre muros brancos e portões de grades altas de um lado e do outro, um campo aberto feito de estacionamento tomado de grama alta e mato mais a frente. Dois guardas conversavam a alguns metros e logo perceberam que eu estava um pouco perdida, gritaram e indicaram a entrada da penitenciária feminina.

Não havia filas e ninguém aguardava para acessar a penitenciária. Um rapaz jovem uniformizado estava sentado em uma cadeira próximo a janela mexendo no celular. Me identifiquei, entreguei meu documento e ele foi para um mural conferir as visitas agendadas. Meu nome não estava lá. Ligou para a diretora, ela estava no interior das galerias atendendo uma demanda das residentes do local. Quem atendeu, não sabia do que se tratava e não autorizou minha entrada. O guarda tentou a ligação  novamente, e lá estava a diretora me autorizando a entrar.

Passei por um corredor estreito e em seguida saí em uma área descoberta e cercada com uma tela de arame de uns dois metros. Desci dois degraus e acessei a área administrativa da penitenciária. Numa antessala, sobre seus sapatos de salto alto e com um sorriso largo, Joana me aguardava. Depois de conversarmos, ela permitiu que eu entrasse em contato com, no máximo, seis presas e consentiu que eu teria três tardes para realizar as entrevistas.

Apesar do tempo limitado, eu não estava disposta a encontrá-las para fazer um interrogatório sobre suas vidas. Acreditava que elas, assim como suas filhas/os têm muito mais a dizer além de responder perguntas prontas.

Elas certamente teriam respostas para perguntas que eu nem havia feito e que só poderiam dizer se eu estivesse disposta a ouvi-las atentamente sem me preocupar com a próxima pergunta de um questionário pré-definido. Meu único pedido era que além de ser mães, eu gostaria de conversar somente com aquelas que estivessem dispostas a compartilhar suas histórias.

 

Acompanhe a série “Maternidade Algemada” em cinco capítulos.

 

 

 

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