Ação criada em 2013  segue construindo e fortalecendo narrativas em torno do projeto político do movimento de mulheres negras

O Julho das Pretas chega à sua 10ª edição em 2022 com o tema “Mulheres Negras no Poder, Construindo o Bem Viver”. Criado pelo Odara – Instituto da Mulher Negra como agenda coletiva e propositiva,  a ação celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latino-Americana e Caribenha, neste 25 de julho – data que também completa 30 anos desde sua instituição em 1992 durante encontro na República Dominicana. 

No Brasil, o 25 de julho também foi escolhido como Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, de modo a reverenciar o protagonismo e a resistência feminina que a líder quilombola da segunda metade do século 18 encarna. Assim, diversas atividades são intensificadas neste período para ajudar a construir e fortalecer as narrativas em torno do projeto político do movimento de mulheres negras. 

Em entrevista ao Catarinas, Naiara Leite, Coordenadora Executiva do Instituto Odara, conta que a escolha do tema se dá após reflexões e avaliações em torno do contexto atual. Neste caso, as eleições de outubro influenciaram a escolha, mas não só. Segundo Leite, discutir o poder para mulheres negras numa sociedade racista patriarcal tem a ver com outras possibilidades de mudança e transformação. 

“Sabemos que eleger uma, duas mulheres negras para o parlamento, seja ele federal ou estadual, não altera o sistema e a lógica de poder que está colocada à população negra e que o racismo, o patriarcado impactam nesse sentido. Então, a gente quer pensar as representações políticas no país porque as representações são todas masculinas e brancas”.  

Ocupar e resistir

De fato, a política brasileira é masculina, cisgênera e majoritariamente branca. Em 2020, por exemplo, apenas 8% das mulheres negras que se candidataram ao Executivo municipal foram eleitas (entre os homens negros, a taxa foi de 9,2%). Os homens brancos (19,2% dos candidatos) foram os mais votados para as prefeituras, seguidos pelas mulheres brancas (16,9%). Os dados são de uma análise realizada pela ONU Mulheres Brasil e a Gênero e Número com foco nos grupos mais sub-representados na política – mulheres negras, quilombolas, indígenas e trans. 

Por mais que as mulheres negras façam parte do maior grupo populacional (28%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elas são as menos representadas nas instâncias políticas. Por outro lado, o documento da ONU destaca o crescimento na candidatura de pessoas trans, que, pela primeira, vez puderam ter o nome social registrado na urna eletrônica. Em 2020, 30 pessoas trans foram eleitas, o que corresponde a 10,2% do total de candidaturas trans. Apesar de pequeno, o número é simbólico por representar uma parcela da população cotidianamente empurrada para a margem da sociedade. 

Para Tainah Pereira, Coordenadora Política do Mulheres Negras Decidem, o desafio é enorme. Ela lembra que todo o caminho percorrido pelas mulheres negras durante a candidatura é marcado por um ambiente hostil, que se impõe quando essa mulher assume o cargo e se mantém durante o mandato, inclusive dentro dos partidos que aceitam essa candidatura. 

“Estamos falando de estruturas racistas e machistas que ocupam todas as instâncias da nossa vida e estão muito longe de desaparecer. A violência que as mulheres, especialmente mulheres negras, enfrentam na disputa política tem um contexto mais amplo de racismo estrutural e só uma mudança de comportamento, de imaginário social, vai garantir um ambiente mais saudável para essa mulher”, afirma.

O Mulheres Negras Decidem surgiu em 2018 justamente para tentar mudar este cenário e atualmente realiza um projeto de formação e preparação de lideranças coletivas para as eleições de 2022 junto com o Instituto Marielle Franco. A iniciativa passa por destacar a importância das mulheres como figuras capazes de propor soluções para a coletividade. 

“Além de mobilizar o voto na candidatura de mulheres negras para ressaltar o quanto é importante essa diversidade de corpos nos espaços de poder, a gente evidencia o quanto as agendas defendidas por elas são de interesse geral. Não tem a ver só com a defesa só de um grupo específico”, explica Tainah.

Entre as pautas que têm sido levantadas nesse processo, a coordenadora destaca a agenda ambiental devido ao impacto das mudanças climáticas; o direito à terra; recuperação de políticas de distribuição de renda; insegurança alimentar e várias outras ligadas à garantia de direitos básicos como saúde, trabalho e alimentação. Defesas que não são recentes, mas que se tornaram ainda mais cruciais com a pandemia de covid-19. 

Avanços e retrocessos 

As desigualdades se aprofundam para as mulheres negras desde a pandemia e passaram a atingir mais cedo essa população. Naiara Leite faz o alerta ao analisar os anos de existência do Julho das Pretas. Segundo ela, mesmo com o crescimento de articulações em torno de pautas pertinentes para essas mulheres, a realidade de muitas delas ainda está longe da ideal para uma qualidade de vida digna. Ela cita como exemplo a evasão escolar a partir de 2020. Um estudo do Fundo Malala mostra que a taxa de exclusão escolar no Brasil aumentou de forma drástica desde o início da pandemia, recaindo com mais força sobre meninas e negras. 

“Não há um deslocamento nosso enquanto grupo social. Parece que a gente cresce em termos de militância, vamos dizer assim, organização, mas isso não necessariamente se reflete em outras áreas. O mais assustador é que parece que a sociedade, o Estado, vão se organizando para nos deixar ainda mais de fora e por mais tempo ainda”, lamenta Naiara.  

Tainah Pereira também destaca o avanço no reconhecimento das mulheres negras como uma potência eleitoral como um dos avanços observados desde o primeiro Julho das Pretas. Mas ela pontua que esse movimento foi acompanhado por forças reacionárias, num processo de intensificação das violências cometidas contra essas mulheres no âmbito da disputa política. Práticas que, segundo ela, já são bem conhecidas, como intimidação, ameaça e sabotagem. 

Construindo o Bem Viver 

Como vislumbre de esperança, Tainah lembra que desde 2015 a Carta da Marcha das Mulheres já indica uma série de pontos para a construção do bem viver citado pela ação Julho das Pretas deste ano. Ainda de acordo com a coordenadora do Mulheres Negras Decidem, de alguma forma, essas propostas têm se materializado em campanhas de candidatas, por exemplo. Ela enfatiza ainda que essa ideia tem a ver com uma derrocada mundial, um colapso iminente imparável, que traz uma perspectiva de esperança num futuro melhor, com dignidade, alegria, amor e paz. 

“Ele é sobretudo um convite para pensar um futuro de esperança e de paz e isso é muito poderoso porque o que a gente viu nos últimos anos não foi uma despolitização, como algumas pessoas gostam de dizer, mas sim uma politização das massas a partir de entendimentos muito ruins, como dor e medo. Essa agenda evoca justamente o contrário. Coragem, crença do poder da coletividade e possibilidades de futuros prósperos”.

Para Naiara Leite, esse bem viver é mostrar a perspectiva utópica e ideológica do modelo de sociedade e a partir da cosmovisão das mulheres negras. Sob a perspectiva do que elas acreditam que seja uma sociedade segura, sem violência, sem racismo, onde o capitalismo não seja determinante para estabelecer as relações sociais e a lógica de desenvolvimento, trabalho e economia. 

“A frase de Angela Davis é muito real para pensar sociedade, políticas públicas e o bem viver porque quando as mulheres negras se deslocam toda a sociedade vem junto porque de fato a gente está em todos os lugares. Então, acho que esse é o caminho para a construção de uma sociedade  do bem viver”.

A agenda do Julho das Pretas segue realizando ações até o mês de agosto. Confira a programação aqui

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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