Por Maria Soledad Méndez e Elizane de Andrade.

Preciso dizer que não sei nada de marés. Ainda que me encante o dinamismo que o mar tem e que posso contemplar neste generoso mar catarinense, por vezes verde, por vezes azul, em momentos marrom ou cinza… ou da cor que o céu tiver. 

Hoje, me surpreendeu uma outra maré se anunciando por aqui. Mas essa era uma que eu já conhecia das minhas andadas em terras argentinas. Uma maré verde. É aquela que vem agitando e dinamizando as lutas feministas ao longo da América Latina toda, especialmente nos últimos anos. Reconheci a maré pois estava representada na forma de um lenço. De um lenço ou “Pañuelo” verde. Que se tornou o símbolo da reivindicação do direito das mulheres, e suas existências dissidentes, a decidirem sobre seus próprios corpos, e dentre outras liberdades, à possibilidade de optar por um aborto seguro e gratuito. 

Este lenço veio da mão de uma benzedeira. Aliás, na mão dela. Deparei-me surpreendentemente  – ou não? –  hoje de manhã com o Pañuelo amarrado no pulso da estatua da Rita Maria, uma mulher negra que viveu entre os séculos 20 e 21, filha de pessoas escravizadas, e que se dedicou ao cuidado da saúde, ganhando o título de benzedeira pela comunidade.

Imagino quantos nascimentos à sua mão terá aparado e também quantos abortos terá cuidado e testemunhado na sua época.

Apareceu ainda neste monumento situado na frente da rodoviária de Florianópolis, portal de acesso à cidade para tantas e tantos vindos dos mais variados lugares da latino-américa (até a pandemia nos distanciar um pouco).

O pañuelo verde é herdeiro dos “pañuelos blancos” que simbolizam as lutas das “Madres de Plaza de Mayo”, mulheres que saíram na época da mais nefasta ditadura acontecida na Argentina para reclamar pela aparição com vida dos filhos desaparecidos, sequestrados pelo poder político militar que governava lá. Mulheres que enfrentaram o medo, a censura, os preconceitos, a violência com integridade, por cada uma delas e os seus filhos mas também por todas elas.

São mulheres também as que carregam hoje esses lenços verdes; no pulso, nas mochilas, nos pescoços, vestindo os corpos com aquela cumplicidade de quem sente que não está só. Eu já caminhei por lá onde tu sente essa sororidade ao te deparar com alguém carregando o lenço verde. E podem ser grávidas, velhas, adolescentes… mulheres em plural aquelas que o carregam. O que permite pensar que não se trata de gostar de aborto ou não gostar, de estar de acordo ou não com praticá-lo na sua vida e no seu corpo, mas de que sobre os nossos corpos é somos nós que decidimos. E de que esse direito e liberdade deve ser o Estado quem garanta -como todo direito- sendo atendido com segurança e de forma gratuita pra garantir o acesso a toda e qualquer mulher e suas dissidências. 

Sabemos – e as benzedeiras nos lembram disso – que aborto existe desde tempos remotos, muito antes de ser proibido e punido pela lei moderna de matriz católica. A prática existe de forma extensa a todas as classes sociais e setores raciais. Ainda hoje. Mas é evidente que o acesso a uma prática segura e a diminuição dos riscos da intervenção se distribuem de forma escandalosamente desigual (“pra variar”), tendo um índice de complicações, sequelas e índice de mortalidade muito maior nos setores mais vulnerados pela pobreza e pelos des-privilegios da população negra.

É por isso que não se trata de “promover” o aborto mas de legitimar e legalizar uma prática que já existe, mas sustentada na clandestinidade, sofrendo assim não só pelas perseguições e violência dos preconceitos morais (ahhh… se a Rita Maria pudesse ainda falar disso. E quem disse que não fala?) mas também do desamparo pela falta do adequado atendimento em saúde que essa prática precisa. Se trata de não deixar morrer mais mulheres das que já morreram num aborto clandestino.

Na Argentina foram vários anos de mobilizações até o debate ocupar espaços na câmera legislativa. E foi com muita presença de mulheres nas ruas, na mídia, nos debates, derrubando os discursos moralizantes e priorizando o cuidado da vida das mulheres e as suas liberdades que conseguiu-se alcançar a legitimidade conquistada.

No final do ano passado, foi aprovada lá a lei que garante o acesso de toda mulher à assistência adequada e gratuita para abortar, caso for a sua decisão.

Neste 8 de março, com tanta luta pela frente e direitos ainda por reivindicar, também temos essa conquista para comemorar. Pois é uma conquista da região, que já não é a mesma com essa aprovação, com essa pauta legitimada da forma que foi. O aborto, já é lei para “las pibas”. Que seja agora pras minas, pras manas, pras gurias. Que seja para toda a América Latina.

*Maria Soledad Méndez é psicóloga e feminista. Elizane de Andrade é pedagoga, doutora em educação pela Udesc, feminista libertária e amante dos animais.

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