Universidades continuam produzindo conhecimento científico apesar do corte orçamentário de mais de 4 bilhões nos últimos 7 anos

 

“Pela Ciência e pela educação! Fora Bolsonaro! Fique em casa!”. “Ciência e pensamento crítico são fundamentais para o desenvolvimento da sociedade”. “Sem Ciência não há futuro”. “A Universidade de Minnesota apoia a ciência brasileira”. As frases contidas em cartazes virtuais foram alguns dos protestos ocorridos durante a Marcha Virtual pela Ciência, organizada pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), nesta quinta-feira (07), que contou com 10844 manifestantes registrados, de acordo com o aplicativo manif.app –  utilizado para marcar a concentração dos manifestantes no Congresso Nacional, em Brasília (DF).

As palavras de ordem trazidas na marcha virtual são contraponto direto, especialmente de professoras/es e estudantes, à política adotada pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido) mesmo antes da Covid-19: redução de políticas públicas que apoiem a construção do conhecimento científico, diminuição dos investimentos em pesquisa e educação, desprezo pela ciência e pela comunidade científica, ameaças antidemocráticas à liberdade de ensino e pesquisa.

De acordo com a Dra. Cristina Scheibe Wolff, professora do departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a marcha é uma reação da sociedade — pesquisadoras, estudantes, associações científicas, entre outros — à desvalorização e desmonte público das universidades e ciência. “Temos recentemente os cortes de bolsa do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) que o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) financia. Eles passaram a restringir as temáticas de trabalho e proibiram que as universidades distribuam essas bolsas para as áreas das Ciências Humanas e Sociais. É um absurdo, pois para compreendermos a sociedade, a política, as crises que estão sendo vividas, inclusive a de Covid – 19, precisamos de historiadoras e historiadores que já pesquisaram outras pandemias, por exemplo. Precisamos de todas as áreas: psicologia, sociologia, antropologia”, analisou Wolff. 

Importante lembrar que em 14 de abril deste ano, Jair Bolsonaro exonerou o presidente do CNPq, João Luiz Filgueiras de Azevedo. Em nota, a Associação de Servidores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (ASCON) afirmou que a saída estava ligada ao posicionamento divergente de Azevedo que pedia mais autonomia e verbas para a produção científica no país. Durante a pandemia, o projeto político de desvalorização a ciência transformou a vida de pesquisadoras/es que sofreram graves intimidações após divulgarem dados sobre uma pesquisa feita com cloroquina em Manaus.

“A ciência era para ter uma narrativa considerável em relação ao que está acontecendo nesta pandemia, entretanto, o que temos é um grupo de pesquisadores ameaçados de morte, tendo que ser escoltados e perdendo um pouco seu direito de ir e vir (após publicarem um artigo falando das mortes por cloroquina em Manaus) em decorrência de ameaças da extrema direita que se instalou no Brasil”, afirmou Muryel de Carvalho Gonçalves, conselheira da SBPC-SC e coordenadora do projeto de divulgação científica Ciência da Ciência – Berthinha Lutz.  

“Em um país onde temos pessoas no Congresso que são terraplanistas e que é bombardeado por robôs executando fake news, a valorização da ciência é mais que necessária”, complementou a conselheira. 

Enquanto a Marcha ocorria, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), Marcos Pontes, divulgou nas redes sociais da pasta um vídeo anunciando que o governo liberou R$ 352 milhões para laboratórios de biossegurança nível quatro, a fim de contribuir com pesquisas para enfrentar novas pandemias. O valor parece alto, entretanto, em um dos debates promovido pela SBPC durante a Marcha, ficou evidente a defasagem orçamentária nos últimos anos para a Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) no Brasil. 

O presidente da SBPC, Ildeu Moreira, destacou que enquanto em 2013 o orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) chegou a R$ 8 bilhões; hoje está em R$ 3,5 bilhões. Uma redução de mais da metade.

“Esse dinheiro dado agora já havia sido tirado antes. Ou seja, estão devolvendo parcialmente. Ano passado, por exemplo, não teve edital universal e esse ano aparentemente não vai ter. Era esse o edital no qual as pesquisadoras e pesquisadores tinham acesso a um financiamento mesmo que pequeno. Uma forma de manter os laboratórios funcionando. Não vejo de uma forma otimista essa liberação, mas por outro lado teve a questão que houve uma manifestação grande e as pessoas estão começando a se agregar e sair da própria área. Nesse sentido a SBPC é muito importante como aglutinadora”, explicou a professora do departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, Dra. Cristina Scheibe Wolff.

A conselheira da SBPC-SC, Muryel de Carvalho Gonçalves, destacou que a liberação da verba pode ser fruto da pressão social realizada anteriormente à Marcha Virtual pela Ciência através do Pacto pela Vida e pelo Brasil, um manifesto assinado por aproximadamente 130 entidades. “Em 07 de abril, algumas associações, inclusive SBPC, publicaram manifesto destinado a todos cidadãos brasileiro. A Carta apresenta a crise e o contexto da pandemia no Brasil e o que deveríamos fazer para manter uma política pública para não chegarmos ao pior dos cenários”, disse.

A Marcha Virtual pela Ciência foi apoiada por associações científicas (laboratórios, sociedades, grupos de pesquisa, programas de pós-graduação) em todo Brasil. Ao longo de todo o dia 7 de maio, atividades (palestras, lives, painéis) ocorreram em 23 dos 27 Estados brasileiros com especialistas de diversas áreas. Entre os temas debatidos estão: enfrentamento da pandemia de Covid-19 no Brasil, regulação da educação à distância e desafios do ensino superior, as pandemias através da história, democracia e ciência, povos indígenas no contexto de Covid-19.

Ocorreram também twittaços com as tags #paCTopelavida e #FiqueEmCasacomaCiência. Cada participante pôde também construir um avatar, associar a ele um cartaz e movê-lo em tempo real para o Congresso Nacional, em Brasília (DF). A SBPC adaptou para o Brasil o aplicativo francês manif.app, a partir do serviço colaborativo Open Street Map (equivalente ao Google Maps). O aplicativo tem sido utilizado em manifestações durante o período de distanciamento social recomendado em decorrência da Covid-19. A fim de dificultar a manipulação dos números de manifestantes por robôs, cada avatar representa apenas um único manifestante, em um lugar e em um evento por vez. Com quase 11 mil participantes, essa foi a maior marcha virtual brasileira até o momento.

Os painéis nacionais promovidos pela SBPC podem ser visualizados no canal da sociedade no youtube.

A produção científica de gênero e feminista em tempos de pandemia
O cenário de desvalorização e ameaças antidemocráticas à liberdade de ensino e pesquisa se acentua quando a temática é gênero. Apesar dos constantes ataques, as/os pesquisadoras/es da área dos estudos de gênero e feministas seguem resistindo e produzindo conhecimento científico para a sociedade. Durante a Marcha pela Ciência, vários grupos de pesquisa ofertaram conteúdo voltado para o debate.

É importante lembrar que um dos fenômenos produzidos pela crise da Covid-19 foi o aumento global da violência doméstica, de acordo com a Organização das Nações Unidas.

“O governo que foi eleito tem isso na pauta: fazer com que as pessoas não discutam mais gênero. Pauta conservadora que tem sido utilizada em vários países para ganhar eleições. Por isso, entendemos que falar de ciência é falar de gênero. É um conhecimento acumulado que te faz perceber, por exemplo, a dificuldade que as mulheres têm na pandemia. Elas foram para o home-office com todo trabalho doméstico. Os homens, apesar de todos avanços que tentamos fazer com o feminismo, avançaram pouco em termos de partilhar as obrigações domésticas. A pandemia explicitou problemas de gênero muito fortes, como as violências contra as mulheres e meninas”, explicou a historiadora e professora da Universidade de Santa Catarina, Dra. Joana Maria Pedro.

Em Santa Catarina, durante a Marcha, houve a live “Sororidade e Dororidade – Juntas no combate ao Covid-19”, que trouxe como convidada a escritora, pesquisadora e feminista negra Vilma Piedade. “Trouxemos a professora do Rio de Janeiro para tratar sobre a questão do racismo e gênero, como as mulheres negras estão lidando com a pandemia”, explicou Muryel de Carvalho Gonçalves, conselheira da SBPC-SC e coordenadora do projeto de divulgação científica Ciência da Ciência – Berthinha Lutz.

Nos últimos dias, o número de negros mortos por coronavírus aumento cinco vezes no Brasil, sendo a taxa de crescimento maior que a da população branca, conforme estatísticas divulgadas pelo Governo Federal.

Outra atividade, organizada pelo Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), abordou a temática de gênero, autoritarismo e pandemia. O debate contou com a participação das professoras Departamento de História da UFSC Joana Maria Pedro, Cristina Scheibe Wolff, Janine Gomes da Silva e Soraia Carolina de Mello. É possível assistir na íntegra a live no canal no youtube do LEGH, “Gênero e História”.

É importante ressaltar que durante toda pandemia, as universidades públicas seguem produzindo ciência. Inclusive as áreas mais afetadas pelos cortes orçamentários, como as Ciências Humanas e Sociais. O Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, da UFSC, recentemente lançou o boletim do Programa Institucional de Internacionalização – Capes-PrInt que apresenta como a pandemia está sendo enfrentada nos países onde as doutorandas estão dando continuidade às suas pesquisas.

O Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Saúde, Sexualidade e Relações de Gênero (NUSSERGE), da UFSC, tem produzido uma série de webinars, em cooperação científica com o Laboratório Educação e Sexualidade (LabEduSex) da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), intitulados “Diálogos em Tela em tempos de Covid-19”. Entre os temas abordados estão: os impactos do isolamento na violência doméstica e familiar, o trabalho com homens autores de violência no contexto de Covid-19, violência doméstica com foco em meninas e adolescentes, a rede de enfrentamento à violência contra mulher e a Lei Maria da Penha em contexto de pandemia. Os próximos webinars serão nos dias 11 e 18 de maio, às 15h30.

“O projeto também está dentro de uma proposta do SUAS (Sistema Único de Assistência Social)  que está convocando assistentes sociais para fazerem atividades em contextos de Covid-19. O Núcleo tem se preocupado em debater com a comunidade essas questões, pois o contexto de isolamento da pandemia atinge majoritariamente as mulheres que necessitam ficar confinadas em decorrência do papel histórico da mulher no espaço doméstico”, explicou a Dra. Teresa Kleba, assistente social, professora da UFSC e coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero (IEG).

Durante a pandemia, o canal “Gênero e História”, do LEGH, tem produzido semanalmente também um episódio da série “Mulheres de Luta”. “É com pesquisa, é com conhecimento acumulado que podemos apresentar denúncias e propostas de política públicas que melhorem a vida das mulheres”, finalizou Joana Maria Pedro.

 

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  • Inara Fonseca

    Jornalista, pesquisadora e educadora. Doutora (2019) e mestra (2012) em Estudos de Cultura, pela Universidade Federal de...

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