A baiana Larissa Luz, 29 anos, emana a potência de alguém que abandonou o universo mainstream para expressar sua verdade musical. A representatividade da mulher negra pulsa em suas obras, voz, estética e na força que empreende no corpo enquanto canta. “Me abasteço de argumento, conteúdo é munição”, no trecho da música “Território Conquistado”, título do segundo álbum da carreira, ela demonstra a preocupação com cada palavra escolhida para compor. Indicado ao Grammy, o álbum tem a presença marcante de Elza Soares, homenageada ao lado de outras nove personalidades negras, como a cantora Nina Simone e a escritora norte-americana Bell Hooks, cujo pensamento fundamenta o trabalho.

Por meio de sua poesia certeira, a cantora, compositora e produtora de sua própria música, manda um papo reto contra a hiperssexualização do corpo da mulher negra e a imposição de uma estética opressora. “Não é meu inimigo. Não te quero domado, não te quero contido. É território conquistado. É espaço garantido”, canta em alusão à nova relação que tem com o cabelo, após rotina de alisamentos.

Trazendo influências dos movimentos Afrofuturismo e Afropunk, aposta no experimentalismo através de recortes e colagens eletrônicas. O resultado é uma música dançante que alude ao poder da mulher que conquistou seu território livre de machismo e racismo. De passagem por Florianópolis na última semana para um show na Casa de Noca, Larissa conversou com Catarinas sobre fazer da música munição contra preconceitos e embranquecimento da cultura negra.

CATARINAS – Como você começou sua trajetória musical?
LARISSA LUZ – 
Canto profissionalmente desde os 15 anos. Eu cantava em um grupo teatral de cultura popular brasileira, chamado Interart, no qual fazíamos releituras de clássicos regionais. Tinha dez anos, quando conheci o Interarte na escola. Assistia ao ensaio e certo dia a diretora do grupo falou “quando você fizer 15 anos vou te colocar para cantar”. Entrei numa banda de rock de meninas com 16 anos e daí não parei mais.

CATARINAS – Em que momento começou a compor?
LARISSA LUZ – 
Desde muito cedo. Minha mãe é professora de literatura e eu gostava muito de escrever poesia. Como não sabia colocar melodias nas letras eu fazia paródias e fui começando o processo de composição. Com 15 anos participei de uma banda de rock and roll em que cantava músicas autorais. Em um Festival Universitário da UFBA, onde estudava Letras, cantei para um público maior e consegui o segundo lugar com as minhas criações.

LARISSA LUZ – Como foi o processo de dar identidade à cantora que você é hoje?
LARISSA LUZ – 
Fui acumulando experiências. Vivendo intensamente. Observando tudo ao meu redor, dando o máximo de mim e acreditando na minha arte sempre. Do regional, passando pelo rock..cheguei no Ara ketu, me deparei com um mar de novidades, um mundo completamente diferente de tudo que já tinha vivido, passei por muitas coisas que me fizeram entender a importância do meu reconhecimento enquanto mulher negra, e do meu papel social no lugar de artista.

CATARINAS – O segundo álbum, Território Conquistado, foi financiado por meio de edital. Como foi ser selecionada ao lado de cantoras como Elza Soares?
LARISSA LUZ –  
Conheci Elza na entrega do prêmio, ela me chamou depois que cantei e falou coisas lindas. Ela disse “você tem um borogodó”. Fiquei bem emocionada, porque Elza sempre foi referência de mulher preta e resistente. O investimento em uma carreira independente – depois de abrir mão do universo mainstream – seguido do reconhecimento por artistas como ela, dá uma esperança e o sentimento de que a gente precisa ser de verdade. Não existe outro caminho melhor do que assumir nossas escolhas e ter coragem para peitar a sociedade, mesmo  que nossas atitudes pareçam loucura, como muitas pessoas falaram na época da minha saída. 

CATARINAS – Você faz uma afirmação da estética como política. Isso aconteceu no seu trabalho ou já vem da sua história de vida?
LARISSA LUZ –
Sempre tive inquietação política, desde que descobri o rock na adolescência. Me identificava com as pessoas que contestavam as coisas, que iam na contramão, tanto esteticamente quanto socialmente, na postura, nas ações e no discurso. Me sentia útil, me sentia viva. Admirava os artistas que pegavam o microfone pra falar de seus direitos, insatisfações, reivindicações. Eu estava nas manifestações  queria entender os movimentos políticos, fui presidenta do grêmio da escola, não me conformava com  imposições do sistema. Na arte senti essa necessidade mais fortemente quando percebi a urgência de se falar sobre representatividade, feminismo negro e empoderamento feminino. Estava vivendo na pele um processo bem forte que envolvia tudo isso. Pensei “precisamos lutar com as armas que temos”. E o que tenho é a arte. Via várias cantoras negras na Bahia sem ter a mesma oportunidade do que as brancas. Sofri tentativa de embranquecimento, numa estrutura onde imaginei ser completamente possível existir enquanto cantora sendo negra. Tudo isso mexeu comigo a ponto de desencadear uma vontade forte de interferir e de participar de uma luta coletiva por direitos básicos que nos pertencem.

Foto: Chris Mayer

CATARINAS – Foi nesse processo de reconhecimento da sua capacidade de fazer diferente que você descobriu a força de se afirmar como mulher negra?
LARISSA LUZ –
Nós, mulheres negras, construímos a nossa autoestima diariamente. Cresci sem ter boneca negra, não via nas lojas, nas propagandas e programas de TV.  Não havia referência, o que me fazia querer ser outra coisa que não eu. Eu sonhava com uma fada transformando meu cabelo em loiro e liso. As  mulheres da minha família alisavam os cabelos. Para ser respeitada como professora em escola particular de pessoas brancas e de classe média, minha mãe sentia que precisava ter cabelo liso. Perceber o quanto assumir e afirmar a nossa estética era importante no processo de combate ao racismo foi uma guinada. Eu preciso ser negra. Eu sou negra e eu preciso poder ser livremente e fazer tudo o que eu faço assumindo quem sou. Sofri um processo de corte químico no cabelo, resultado de um relaxamento aos 18 anos que fez meu cabelo cair inteirinho. Pensei “estou me mutilando… pra quê, por quê?”. Foi importante perceber que eu não precisava de nada daquilo,  que eu poderia usar black, trança, que existiam varias formas de ser bonita sendo eu. Passei a ver o mundo de uma outra forma e me comunicar com ele de uma outra forma também.

CATARINAS – Ainda que a discriminação seja frequente, vivemos um momento de valorização da estética negra?
LARISSA LUZ –  
Percebi que estava acontecendo isso, vi várias meninas nesse processo de transição. Entendi o quanto é importante conversarmos, trocarmos nossas experiências, porque não é fácil sair do lugar,  se assumir e entender seu cabelo, suas origens, aprender a cuidar dele, fazer amarrações e turbantes. O nome do disco vem de um texto de Bell Hooks, no qual ela fala que a mulher negra tinha o seu cabelo como um território a ser conquistado. A partir do momento que a gente se gosta, já conquistou.

CATARINAS – Como você vê essa discussão recente sobre apropriação cultural, mais especialmente sobre o uso do turbante por mulheres brancas?
LARISSA LUZ –
Tenho refletido. Acho importante analisar as nuances de cada caso. Se a mulher  compreende a importância, a origem, se sente fazer parte dessa história de alguma forma, quer contribuir com o empreendedorismo negro, comprando em lugares específicos de pessoas negras que sabem o que estão fazendo, não vejo problemas.

Foto: Chris Mayer

CATARINAS – Na música, há uma crítica de que o samba-reggae foi pasteurizado, apropriado pela indústria cultural e transformado no chamado axé music. Como você percebe a apropriação da música afro?
LARISSA LUZ – Só não queremos que nos esqueçam dentro da nossa própria cultura. Queremos, sim, protagonizar a cena da música afro brasileira, e o axé, apesar de agora estar pasteurizado, tem origem nos ritmos negros. Acho que é hora de tomarmos o que é nosso, para que são sejamos coadjuvantes das nossas próprias histórias. Acho contraditório uma noite de beleza negra feminina, no bairro mais negro de Salvador ter como grande show da noite uma cantora branca. Não é justo termos um homem branco como o grande nome, precursor, criador, do rock and roll. Precisamos repensar e questionar esses espaços.

CATARINAS – Você convidou uma antropóloga para realizar uma pesquisa de base para as letras. Como foi esse processo?
LARISSA LUZ –
Convidei Goli Guerreiro pra me ajudar a construir um disco embasado, com fundamentos, argumentos e conteúdo. Pesquisamos juntas sobre mulheres fortes, negras, relevantes no processo de empoderar outras mulheres invisibilizadas pelo preconceito e machismo, mulheres de luta, mulheres que nos representam, que resistiram, resistem e são inspirações para irmos em frente. Construi as letras com base no que íamos pesquisando. É lindo ver as pessoas correspondendo e cantando as músicas mesmo sem elas terem sido concebidas sob a perspectiva do apelo popular.

CATARINAS – Como o feminismo chegou para você e como ocorreu o seu processo de empoderamento?
LARISSA LUZ – Fui observando e percebendo o mundo a minha volta, trocando experiências com outras mulheres, buscando me conhecer cada vez mais, e com isso fui tomando poder, percebendo minha capacidade de realizar. A saída do Araketu foi um começo. Fui acreditando cada vez mais em mim, entendendo que não precisava aceitar  assédios não precisava me submeter a nada pra chegar a algum lugar porque meu objetivo nunca foi chegar em algum lugar e sim trilhar um caminho de conquistas relevantes.  Sempre tive corpão desde nova, minha mãe parava no meio da rua  e dava lição de moral nos homens que mexiam comigo. É triste. Ser mulher diariamente nos faz precisar do feminismo pra existir. É duro constatar que uma menina com onze anos precisa aprender a lidar com sua sexualidade de forma tão opressora. Difícil ter que dizer que ela precisa  trocar de blusa pra não ser assediada na rua.

Foto: Chris Mayer

CATARINAS – A música “Meu sexo” trata dessa questão…
LARISSA LUZ –
As mulheres negras  estão num recorte do feminismo e sofrem ainda  mais com essa hipersexualização dos corpos femininos. A mulher preta é sempre a mais quente, a que serve pro sexo, mas não pras relações afetivas, é a que rebola a que dá prazer. Eu me via andando e lutando contra o ímpeto de rebolar, o que é um movimento natural meu, para não ter que ouvir piadas ofensivas. Passei a trocar de roupa com medo de  andar sozinha nas ruas. Parei de dançar nas festas para não parecer “disponível”. A dança pra mim é uma coisa muito libertadora. Na África, as crianças dançam, mexem o quadril, isso é ancestralidade, é conexão. Coisas do nosso íntimo afloram quando a gente mexe a pélvis, é o nosso sexo acontecendo, é nosso, não é oferecimento pra ninguém. É duro pensar que temos que dizer a nossas meninas “não rebolem” porque pode parecer provocação”.  “Eu precisava falar sobre isso de uma forma direta, simples e forte. Quero andar sem sutiã e dançar do jeito que eu quiser.  As relações afetivas precisam existir, não há nada demais em olhar. Não precisa deixar de interagir, estou falando apenas sobre respeito. Nesse contexto escrevi “Meu sexo”, para soltarmos a nossa pomba gira, entidade extremamente feminista, e dizer a que viemos, na pista, nas ruas, em todo lugar!

As músicas de Larissa Luz podem ser baixadas gratuitamente no site oficial.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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