Aos 24 anos, Kathlen Romeu rompeu muitas barreiras racistas: tinha uma profissão formal, tinha formação superior e uma gravidez tardia, considerando a estatística que coloca as meninas negras pobres como as que mais engravidam antes dos 18 anos. Ela furou muitas barreiras, menos a barreira do terrorismo de Estado que mata jovens negras e negros todos os dias nas ações das forças policiais brasileiras.

Uma das coisas que mais mexeu comigo, nesta tragédia, foi o quão emblemática é uma neta e uma avó juntas, enquanto a mãe trabalhava. As avós, nas famílias pretas, criam netos, enquanto suas filhas, na maioria das vezes muito jovens, tentam ganhar a vida em trabalhos precários. Eu demorei dias para conseguir escrever esse texto, dias mesmo. Quem já deu aula em escola pública em em Fundações de abrigo a crianças e adolescentes, como eu, sabe o quão central é a figura da avó para as crianças. E essa avó era uma avó orgulhosa de uma neta que venceu tantas barreiras, mas morreu por um tiro de fuzil, na frente dela. Que tragédia.

Mães pretas morrem todos os dias, pois quando elas não morrem fisicamente, como Kathelen, morrem com seus filhos e filhas que sucumbem à mão do Estado. Kathelen era mãe, mas era filha e neta. Nela, estava a esperança da quebra de um ciclo de precariedade de vida. Ela apontava para uma geração que poderia sair da pobreza através do estudo. Ai como dói saber que ela não conseguiu quebrar esse ciclo, que a próxima geração da família dela não sairá da miséria, pois não existirá.

Quando eu estava grávida do Bê eu tinha 25 anos. Eu tinha acabado de terminar a graduação, o Rodrigo estava finalizando a graduação dele. Sonhávamos com nossa casa própria, que hoje parcelamos em 30 anos. Nós também começamos uma vida diferente da dos nossos pais: empregados, graduados e com uma vida planejada. Acho que em certa medida é isso que eu sinto, não há graduação, trabalho ou planejamento que nos proteja do terrorismo de Estado.

Na perspectiva da Justiça Reprodutiva, faz parte dos direitos das mulheres verem seus filhos crescerem. Direito que a cada 23 minutos uma mãe preta perde, quando seus filhos tombam pelas balas do Estado.

Também faz parte dos direitos das mulheres envelhecerem e verem seus netos. Ora, a cada 23 minutos uma avó perde seu neto para as balas do Estado. Quanta dor. Quanta dor.

Um dos meus maiores sonhos é ser avó. Mesmo que isso não dependa de minhas decisões, sonho com o dia em que verei uma segunda geração que possa usufruir de direitos que minhas avós não usufruíram, como educação, saúde e cultura. Mas será que verei? Será que você mulher negra que me lê, verá?

“Minha filha era a coisa mais especial da minha vida. Cheia de sonhos, uma pessoa do bem, inteligente, que tinha o sonho de ser blogueira, modelo. Estava na melhor fase da vida dela”, disse o pai de Kethelen. Coisa que dona Mirtes não teve a oportunidade de ver, seu filho formado e com uma família planejada. Faz um ano que o menino Miguel morreu. Faz 7 meses que os meninos de Berlford Roxo estão desaparecidos. Onde estão?

Quantas mães pretas e filhos pretos terão que morrer para termos direito a uma maternidade digna? Dentre a mortalidade materna, no Brasil, as mulheres negras são as que mais morrem, pois têm menos acesso à saúde. Dos bebês com menos de um ano que morrem, a maioria é preta. As mulheres negras são as que menos fazem pré-natal. A violação de nossa maternidade é diária. Como vive uma mãe sem uma filha? Como vive uma avó sem uma neta?

E existem muitas mães e avós chorando as perdas de suas filhas e netas, hoje. No primeiro semestre de 2020, 75% das mulheres assassinadas no Brasil, eram negras. A negligência médica contra as mulheres negras durante o pré-natal é gritante. Conforme dados do Ministério da Saúde (2014), existe uma diferença no atendimento às mulheres negras: estas recebem menos tempo de atendimento médico do que as mulheres brancas e compõem 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil. Somente 27% das mulheres negras tiveram acompanhamento, ao contrário das brancas que somam 46,2%. Além de outras desigualdades como menor oferta de anestesias e informações pós-parto, como orientações sobre o aleitamento materno.

Nesse sentido, a Justiça Reprodutiva é um dos conceitos que se apresenta com a finalidade de ampliar o olhar sobre os direitos sexuais e reprodutivos, porque traz conjuntamente os direitos humanos e a justiça social para o exercício pleno da da maternidade da mulher negra.

Nós, mulheres negras, fomos estupradas, assim como as mulheres indígenas, durante séculos de colonização. Fomos amas de leite, enquanto nossos filhos passavam fome na senzala. Ou seja, ainda vivemos em um ciclo de vulnerabilidade social que acontece justamente pelas heranças escravocratas que relegaram pessoas negras aos morros, sem educação, trabalho e acesso à saúde.

Foi um tiro de fuzil no tórax que tirou a vida de Kathlen, mas é o racismo que nos impede de viver nossas vidas com dignidade e acesso aos direitos sociais e humanos. Estamos no mês de julho, mês em que honramos a memória de Teresa de Benguela e de tantas mulheres negras que resistiram ao racismo e sexismo que acomete nossos corpos todos os dias. Eu queria apenas comemorar a trajetória de nossas mães e avós, mas não temos tempo para festa. E nem tempo para chorar. O dia de chorar é amanhã. Hoje, é dia de luta, para que não existam mais vítimas desse terrorismo de Estado que nos mata e nos desumaniza. Basta!

Seguimos em marcha, luta e resistência por nós, por todas nós e pelo bem-viver das mulheres negras e todas as famílias pretas do mundo.

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  • Simony dos Anjos

    Antropóloga e doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Integrante da Rede de Mulh...

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