Esse é o quinto capítulo da série Maternidade algemada: grades que separam vínculos. 

As meias de cor cinza nos pés de Janice e o cachecol verde que uso no pescoço sinalizam  a temperatura gelada que ocorre em julho na capital de Santa Catarina. O frio ultrapassa as aberturas da vidraça da janela nas minhas costas se instalando no pequeno compartimento da sala de assistência social do presídio.

Janice tem 35 anos, é natural de São José, região metropolitana da Grande Florianópolis e está há mais de dois longe dos seus quatro filhos. Lucas, 19, Francine, 16, Juliano, 13 e Daiana, nove anos, moram com uma tia materna e visitaram a mãe na penitenciária somente uma vez. A fim de preservar a imagem de seus filhos, ela não quer suas presenças. “Isso não é lugar pra eles”.

O corpo magro, os cabelos aparados dos lados com máquina, as tatuagens, os trejeitos masculinos e a expressão fechada acompanhada de uma cicatriz, consequência de uma queda de bicicleta, ao lado esquerdo do rosto. Todos esses traços e sinais encobrem uma mulher ainda comovida pela perda da mãe há quase um ano.

Pergunto sobre a relação delas, e ela sem precisar pensar muito para responder, dispara: “Foi quem me criou, não tive pai. Quando vim parar aqui, ela me visitava todas as semanas; eu esperava ansiosa para chegar a sexta-feira, o dia de visita”. Os netos moraram com a avó até seu falecimento, quando foram morar com a tia.

Ao perguntar sobre seus filhos, ela sorri orgulhosa dizendo que todos frequentam a escola e o mais velho já concluiu os estudos no ensino médio. “Quero que eles estudem e tenham uma vida diferente da minha”, aspira a mãe, que frequentou o colégio até a segunda série do ensino básico.

No desdobrar de nossa conversa, é pontual e curta em suas respostas. Mostra um temperamento fechado,  como ela mesma se caracteriza, salvo ao falar do último aniversário da filha mais nova em que pôde estar presente. Daiana teve o privilégio de contar com a presença da mãe em sua comemoração de nove anos. Janice recebeu a autorização de saída temporária para a ocasião.

O benefício está previsto nos artigos 122 a 125 da Lei de Execuções Penais, a autorização geralmente é concedida em datas comemorativas; destinado à manutenção dos vínculos familiares e podem ser autorizados pelo juiz da execução.

Pergunto sobre como foram os dias que estiveram reunidos após bastante tempo afastados, imaginando que para Janice e seus filhos essa oportunidade tenha sido bem aproveitada. Ela pede um momento para buscar algo. Risonha, retorna com um papel na mão e me entrega. É uma fotografia de quatro jovens: dois meninos e duas meninas com sorrisos estampados, sentados no sofá; a mais nova segura uma boneca de pano entre os braços. Observo o cenário da foto, levanto os olhos e ela prossegue com a resposta: “Curtimos bastante esse dia, olha como eles estavam felizes”, diz ela, direcionando o olhar para a imagem que mantém guardada ao lado da cama.

Para que os dias passem mais rápido, há poucos meses, Janice começou a estudar na penitenciária. A previsão é de que em outubro de 2019 haja a progressão de pena do regime fechado para o regime semiaberto. Separada do pai de seus filhos há alguns anos, Janice conheceu Flávia na ala em que ela está alocada na prisão. Se tornaram amigas e, após um tempo, começaram um relacionamento homoafetivo, a que ela chama de “lance”.

A relação está prestes a completar dois anos, mas as duas fizeram um pacto, a relação delas deve voltar a ser uma amizade assim que atravessarem os portões de volta às suas casas. A decisão me faz acreditar que o motivo seja vergonha de assumir uma relação fora dos padrões heteronormativos e ela explica: “Foi a condição dela, disse que quando sairmos, seremos apenas amigas. Pode ser que ela mude de ideia, mas se não mudar, tudo bem”, conclui conformada, pois aceitou as condições impostas pela parceira.

Após os anos que atuou como médico voluntário em penitenciária feminina, o médico Dráuzio Varella justifica o grande número de mulheres que assumem a homossexualidade dentro das prisões: “O único lugar que a mulher tem liberdade sexual é na cadeia. As mulheres são reprimidas desde que nascem”. Ele considera que os relacionamentos assumidos pelas mulheres dentro dos presídios, em muitos casos, se devem ao abandono que sofrem por seus parceiros, situação que não costuma ocorrer quando eles vão presos.

Uma pesquisa realizada pelo Depen em 2008,  revela que quando um homem é preso, a mulher busca um advogado para tirá-lo da cadeia. Quando ocorre o contrário, o homem procura um advogado para encaminhar o divórcio. 

Como Janice não recebe visitas dos seus filhos, nenhum deles têm cadastro no sistema da Penitenciária. Ela também não sabe seus telefones de contato, mas como alguém que gostaria que eu conhecesse seus filhos sugere que eu procure por seus nomes através das redes sociais. As tentativas são em vão. Infelizmente, não consigo.

Uma pergunta estranha aos ouvidos de Janice

A conversa com Janice está prestes a encerrar quando Fabiane, uma das profissionais que trabalha em sua mesa e parecia nem estar atenta ao nosso assunto, questiona:

— Fiquei sabendo que você não recebe visitas, Janice?! Está precisando de alguma coisa?

Silêncio. Janice parece não estar acostumada a ouvir alguma pergunta dessa origem, assim com tanta liberdade para responder se precisava de algum item de higiene pessoal. Ela simplesmente faz uma expressão confusa e não responde. Fabiane e Jussara continuam a olhar para Janice esperando uma resposta. Então elas mudam as indagações:

— Você tem sabonete?

Timidamente, ela responde: “Não.”

— Você tem xampu? Condicionador de cabelo? Creme dental?

As respostas se repetem: “Não.”

Na lateral da mesa de Fabiane tem um móvel cheio de gavetas. Abre a primeira e tira alguns itens de higiene. Com a ajuda da colega Jussara, retiram das embalagens coloridas e colocam em sacos plásticos finos e transparentes.

Pergunto sobre como funciona o procedimento de distribuição desses itens de higiene pessoal. Enquanto transfere o creme dental do tubo para o recipiente de plástico, Jussara me explica que, de vez em quando, empresas, ONGs e pessoas físicas costumam doar à penitenciária esse tipo de produto, como ocorreu, segundo ela, no dia anterior a minha visita. Uma mulher levou muitos itens de higiene, como sabonetes, xampus, cotonete, creme dental, absorventes, lenços umedecidos, papel higiênico e condicionador para que fossem distribuídos às habitantes do presídio.

Nesse caso, elas distribuem entre as mulheres que não recebem visitas, pois o kit obrigatório é fornecido uma vez a cada 30 dias e elas tomam ciência que nem sempre o estoque não é  suficiente para todo o período. Dados do Conselho Nacional de Justiça informam que o custo médio de um presidiário no Brasil é de R$2.400,00, refletidos nos sistemas de segurança, salários, infraestrutura e serviços como alimentação, vestuário, assistência médica e jurídica, entre outros.

Por fim, entregam dois conjuntos de produtos à Janice para ela levar à sua companheira, após confirmar que Flávia também não recebe visitas e está sem sabonete há três dias. A fim de motivá-las com os novos produtos de marcas “boas”, de preço mais alto que as populares, Jussara elogia:

“Agora dá para ficar bem cheirosa depois do banho!” Eis que Janice aproveita para informá-las: “Só falta a água para o banho”.

Elas se olham sem graça e Janice se retira da sala em direção ao seu alojamento. Permaneço onde estou e pergunto a elas por que as mulheres  parecem não se sentir à vontade de dizer o que lhes falta. Ela defende que umas podem pegar os produtos da outra. Aquelas com mais autoridade entre as internas costumam tentar impedir as mais novatas de descer até a sala de assistência social para solicitar sua cota com receio que elas possam revelar alguma coisa particular delas.

Jussara parece saber que existem alguns motivos para esse silenciamento sobre a falta do mínimo material para a higiene pessoal das reclusas, mas não sabe especificá-los ao certo quais são. O que não ficou esclarecido é o fato de que, apesar de todos os cadastros de visitas passarem por seus controles, as profissionais parecem surpresas ao descobrirem que essas mulheres não recebem visitas nem produtos de higiene pessoal ou alimentos como as poucas que esperam ansiosamente pela sexta-feira.

Acesse a série Maternidade Algemada: grades que separam vínculos.

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