Se na década passada o número de crianças brasileiras desnutridas estava em declínio, o cenário mudou drasticamente nos últimos anos – e não para de piorar. Um levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que entre 2011 e 2021 a taxa de hospitalizações por desnutrição, sequelas da desnutrição e deficiências nutricionais em bebês menores de um ano, no Sistema Único de Saúde (SUS), aumentou 50%. Os dados analisados são do DataSUS.

“Em 2011 a média era de 76 internações para cada 100 mil nascidos vivos, mas esse número cresceu para 113 no ano passado”, observa Cristiano Boccolini, pesquisador em saúde pública da Fiocruz e coordenador do Observa Infância. Em 2021, em média, foram registradas oito hospitalizações por desnutrição diariamente no Brasil, totalizando 2.979 – o maior número absoluto dos últimos 13 anos.

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Este ano o panorama parece estar se agravando. Até agosto de 2022, a rede pública de saúde registrou o total de 2.115 internações, número que eleva para 8,7 a taxa média de hospitalizações diárias – um aumento de 7% em comparação com 2021.

Além disso, os bebês internados são majoritariamente negros. “Nos últimos cinco anos, 61,5% das internações se deram entre crianças pretas ou pardas – quase dois terços do total de hospitalizações”, diz o pesquisador. As crianças brancas somam 32,9%; as indígenas 4,3%; e as amarelas representam 1,3% do total.

Por quê?

As relações causais ainda estão sendo investigadas pela instituição, mas Boccolini menciona a alta inflacionária dos alimentos, a diminuição do poder aquisitivo da população brasileira e o aumento da insegurança alimentar e da fome, sobretudo nos lares com crianças menores de 10 anos, como hipóteses.

“As mães que não estão amamentando porque precisaram voltar para o mercado de trabalho se depararam com a barreira dos preços do leite e das fórmulas infantis, que aumentaram muito, especialmente após o início da pandemia”, aponta Boccolini.

“Alguns colegas que atendem crianças desnutridas me relataram que as mães estão diluindo o leite para render mais, e isso significa menos calorias.”

Outro ponto é a exclusividade do aleitamento materno, que idealmente seria mantida apenas até os seis meses do bebê, mas esse tempo tem se estendido. “Por falta de comida em casa, muitas mães continuam amamentando os filhos apenas no peito, mesmo que esse leite já não seja mais suficiente para atender às demandas nutricionais de crescimento e desenvolvimento das crianças”, explica.

As crianças em idade escolar também estão mais vulneráveis à insegurança alimentar, comenta o pesquisador da Fiocruz. “Tivemos uma redução significativa na quantidade e na qualidade da merenda, porque não houve reajuste no valor repassado aos municípios, e com menos comida na escola, as crianças têm que comer mais em casa, aí aumenta a pressão de demanda por alimentos nos lares.”

Mais um fator é a mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil, na gestão de Bolsonaro.

“No Bolsa Família, o beneficiário precisava seguir algumas condicionalidades, como manter a caderneta de vacinação das crianças em dia e fazer o acompanhamento nutricional dos menores de sete anos. Isso deixou de ser obrigatório e, com isso, muito possivelmente o que antes se detectava precocemente nos postos de saúde, parou de ser detectado. Agora os casos evoluem a tal ponto que não podem mais ser atendidos na atenção básica.”

Soma-se a essas hipóteses a permanência de crianças em ambientes com muitas fontes de infecção, por causa da falta de saneamento básico. “Não ter esgoto e água potável aumenta a possibilidade de a criança contrair infecções como diarreias e pneumonias, agravando ou criando um quadro de desnutrição”, cita o especialista.

Mortes evitadas

“Um ponto positivo é que o SUS vem se tornando mais eficiente em prevenir as mortes por desnutrição. Se por um lado as políticas públicas não têm sido suficientes para prevenir, o SUS, na sua atenção hospitalar, está conseguindo ter uma eficiência bem razoável”, afirma o coordenador do Observa Infância. 

A taxa de mortalidade entre bebês menores de um ano por desnutrição registra queda constante desde 2009 e chegou à menor marca em 2020, último ano com dados consolidados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).

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“A nossa próxima etapa analítica será olhar para o número de famílias e cobertura de atenção primária de cada município. Outra informação que buscamos é se tem ou não hospital nas cidades onde essas crianças residem. Isso explicaria a divergência entre as taxas de internação e mortalidade na região Norte”, diz.

De acordo com Boccolini, o Norte é a segunda região com maior taxa de hospitalizações por desnutrição no país, e tem o maior número de mortes pela mesma causa.

“Se a gente observa o panorama nacional, percebe que as taxas de mortalidade são decrescentes, enquanto as de hospitalizações vêm aumentando. A taxa de mortalidade no Norte chega a ser três vezes maior do que a média nacional. Isso pode significar que as crianças não estão conseguindo chegar ao hospital.”

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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