Há duas semanas, no dia 3 de maio, Viviane Cristina da Conceição Oliveira, 47 anos, negra, lésbica e candomblecista, morreu durante o seu expediente no trabalho após ter tido um mal súbito. Vika, como a chamavam, era promotora de vendas da empresa World Merchandising, terceirizada do Fort Atacadista, do Grupo Pereira. No final da manhã daquele dia, durante uma discussão, o então gerente de uma das unidades em que trabalhava, no bairro Cordeiros, em Itajaí, pediu para que ela se retirasse. Cerca de uma hora depois, ela sofreu uma parada cardiorrespiratória, quando ainda estava no pátio do supermercado, e não resistiu. 

Pessoas reunidas em frente ao Fort Atacadista em protesto pela morte de Vika. Foto: Joá Bitencourt.

O motivo de ter sido retirada do supermercado, conforme relatado por colegas de trabalho, teria sido a falta de reposição de quatro vidros de azeitona, com o prazo de validade vencido na data de 1º de maio, no Dia do Trabalhador. Funcionárias e familiares denunciam que a morte teria resultado do estresse gerado por situações humilhantes e constrangedoras, que poderiam caracterizar assédio moral. O caso levantou uma série de denúncias a respeito do ex-gerente, agora afastado por uma sindicância. Os relatos apontam, ainda, para situações possivelmente marcadas por racismo e homofobia.

Naquela quarta-feira, Viviane havia chegado às 5 horas da manhã no trabalho, como de costume. Antes disso, na sexta-feira anterior ao feriado, em 28 de abril, ela já havia informado a equipe do mercado sobre o vencimento dos produtos, com a quantidade e a data do prazo de validade. Na versão dada por colegas, teriam dito para ela que não precisaria se preocupar, porque retirariam os itens das prateleiras. Por estar fora da escala de visitas, ela não atendeu a marca na terça-feira. Então, no dia seguinte, quando chegou à unidade, viu que estavam tirando os produtos das gôndolas, com atraso. Ela se ofereceu para fazer o serviço, mas a funcionária responsável pela reposição negou a ajuda, afirmando que o supervisor teria dito que não era para Viviane “colocar a mão”. Nesse momento, chegou outro funcionário e contou que já havia batido foto dos produtos e enviado para os superiores. Em seguida, Viviane se viu sendo acompanhada pelo gerente para fora da loja.

De acordo com as notas divulgadas pelos noticiários na semana do ocorrido, o Corpo de Bombeiros Militar de Itajaí e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) foram acionados para tentar socorrê-la. Porém, mesmo com a aplicação de técnicas de reanimação, ela não respondeu às tentativas. Na ocasião, um vídeo, gravado na janela de um prédio vizinho, circulou por grupos de WhatsApp. Nele, um grupo de pessoas – algumas com uniformes do supermercado – carrega o corpo de Viviane pelo pátio externo até um carro preto, que parece ser um veículo funerário, enquanto outro grupo acompanha com um tecido para impedir que quem estivesse passando pela calçada visse a cena.

O Serviço de Verificação de Óbito, que, normalmente, é uma atribuição da Secretaria Municipal de Saúde, seria responsável pelo procedimento. Procurado pela redação, o órgão não respondeu até o momento da publicação. O 1º Batalhão de Polícia Militar, de Itajaí, informou que, em casos em que não há indício de morte violenta, o corpo é liberado para a família.

Um dia após o enterro, na tarde de sexta-feira (5), colegas e familiares de Vika protestaram em frente ao supermercado. Vestidas de preto, segurando balões brancos e com cartazes nas mãos, mais de 60 pessoas estiveram no local pedindo por justiça. Com indignação e tristeza, promotoras e promotores de venda, que formavam a maioria, denunciaram a morte da sua colega e as condições de trabalho às quais elas e eles precisam se submeter. O Catarinas acompanhou o protesto para conversar com as manifestantes.

O caso de Vika foi fatal, mas não foi o único

“Foi um assassinato.” Esta foi a frase que Luciane*, uma das pessoas mais íntimas do círculo afetivo de Vika, usou para definir o que houve. Contou que, desde o ocorrido, tem recorrido a remédios para dormir. “Não sei como isso aconteceu, ela era uma pessoa muito calma”, questionou, com o olhar perdido, enquanto falava que Viviane estava bem quando saiu de casa. Durante o ato, em coro, outras pessoas gritavam “Assassino!”, para se referir ao ex-gerente, mesmo com a orientação de algumas outras para que o termo não fosse usado.

Uma dessas pessoas, orientando o grupo, era Mariana*, promotora de vendas, que foi uma das organizadoras do protesto. Ela foi uma das últimas pessoas a falar com Viviane. Minutos antes do falecimento, as duas trocaram áudios: “Ela estava muito chateada, se culpou, sobre o que, na verdade, ela não teve culpa”. Sobre a cena, lamentou: “Ser tirada do mercado foi uma humilhação, porque é como se você tivesse sido um ladrão. Só se faz isso com ladrão, com bandido, não com uma pessoa que está trabalhando”.

Depois da notícia sobre o afastamento do gerente, a entrevistada e Daiane Marchi, outra amiga de Vika, fizeram a convocação para que as pessoas estivessem em frente ao supermercado às 16 horas daquela sexta-feira.

“Não é o primeiro caso! Uma vez, um amigo nosso foi parar no pronto-socorro, com crise de ansiedade, por causa dele. Então, eu resolvi fazer o grupo, porque chega de promotor passar tanto trabalho!”, completou, ao reclamar sobre a ausência de mobilização pelos direitos da sua classe.

Durante as conversas com a redação, as denúncias sobre o ex-gerente e a inação da rede de supermercados foram consenso, mostrando que a problemática está na cultura organizacional da empresa. Caminhando entre as pessoas, era possível escutar falas como: “Até os ratos comem melhor do que a gente ali dentro”, indicando, por exemplo, a ausência de intervalos para que as funcionárias terceirizadas se alimentem com tempo para isso.

Cartazes e balões colocados nas grades do supermercado após protesto. Foto: Joá Bitencourt.

Em um momento do ato, as pessoas se reuniram próximas ao local do falecimento, pelo lado de fora, para amarrar nas grades os balões e cartazes que carregavam. Em seguida, em roda e de mãos dadas, rezaram um Pai Nosso, em memória de Vika. Ainda emocionadas, Andressa*, Roberta* e Elza*, ex-promotoras de venda, conversaram comigo.

“Teve que chegar ao extremo para que uma rede de supermercados tome conhecimento das coisas. Às vezes, tem conhecimento, mas faz vista grossa, por resultados que ele traz à empresa, por benefícios. Enfim, dinheiro fala mais alto, né?”, denunciou Roberta.

Ela, assim como as outras duas mulheres, já trabalhou na mesma unidade e reafirmou que o comportamento hostil do funcionário em questão acontecia há tempo. Sobre a maneira como Viviane foi retirada da loja, Elza comparou o tratamento com o que se daria a “um cão sarnento”. “Eu fico imaginando as palavras que ele falou para ela, fico imaginando como ela se sentiu enxotada”, expressou.

No início da entrevista, as três concordaram quando Elza afirmou que a hostilidade era direcionada principalmente às mulheres. Ao refletirem sobre o fato de Viviane somar várias identidades discriminadas, Roberta entendeu que essas características poderiam ser agravantes: “Ela sentia, sim, um certo preconceito, uma diferença de tratamento. Sempre foi bem claro”. Com uma guia cruzada no peito, Andressa falou sobre intolerância religiosa: “A Viviane sempre pregou que nunca deixassem ninguém falar do Deus dela. Ela deixou um legado muito grande de lutar pelo que tu acreditas”.

Pedro*, que estava há pouco mais de um mês como promotor de vendas naquela unidade, contou que o tempo foi o suficiente para que ele vivenciasse constrangimentos, que tinham relação com a sua sexualidade, de maneira velada: “É extremamente bizarro o jeito que, não só ele (referindo-se ao ex-gerente), mas que alguns funcionários tratam a gente aí dentro. É um pouco desumano o jeito, a ignorância, o jeito que eles falam com a gente”. Na sua fala, ele relembra que não se trata de uma relação de subordinação direta, o que deixa o tratamento ainda mais sem explicação, na sua opinião: “Eles acham que têm posição de mandar na gente, só que a gente não é da loja. Nós não somos funcionários do Fort Atacadista”.

Já tendo trabalhado na mesma função, Natanael* também conheceu os abusos de poder sofridos por Pedro: “Se a gente for avaliar certas situações, elas aconteceram mais com negros, com gays, com lésbicas. Então, eu acredito muito que isso possa ser um certo preconceito”. E, com as outras pessoas presentes, cobra uma resposta: “Até onde a administração do Fort vai permitir que isso aconteça? Precisou acontecer uma morte para o Fort Atacadista apenas afastar uma pessoa? A gente não pode fechar os olhos para uma situação tão grave”.

Busca por justiça

No dia da morte de Viviane, Daiane foi a única fonte que um jornal local alcançou. Assim como Mariana, ela falou por mensagens com a amiga minutos antes de ela falecer. Em suas falas, na ocasião, ela afirmou que entraria com um processo judicial contra o ex-gerente. Uma semana depois, no dia 10, o Catarinas a entrevistou.

Em resposta à pergunta sobre a maneira como estava atrás de justiça, ela expôs que, com a ajuda de outras pessoas, um dossiê está sendo montado com a compilação de denúncias. Enquanto isso, segundo Daiane, a decisão é que se aguarde os 30 dias do processo de sindicância para terem uma posição do Fort Atacadista sobre o que será feito a respeito do ex-gerente. Na semana do fato, a rede de supermercados soltou uma nota afirmando que, quanto aos depoimentos levantados, a direção “optou por afastar o gerente por tempo indeterminado e abriu uma sindicância interna para apuração dos fatos, para que, assim, possam ser tomadas as providências cabíveis”. 

“A gente quer a demissão dele”, demandou. “Não é somente um relato, não é somente o que aconteceu com a Viviane. É o que acontece com várias pessoas.” A estudante de Direito, que, assim como as demais pessoas entrevistadas, já passou pelo “chão de loja”, disse que querem uma explicação quanto à consciência da empresa em relação ao comportamento do gerente. “Ele veio transferido de uma loja, em Balneário Camboriú, já decorrente de situações de denúncia, então eu acredito que o superior sabia a forma que ele tratava as pessoas”, colocou. “Se a rede Fort não se manifestar, vamos fazer uma nova manifestação, para que seja tomada uma posição”, completou.

A redação procurou o Grupo Pereira e a World Merchandising para pronunciarem-se sobre o ocorrido. No contato com as assessorias, entre outras perguntas, fizemos questionamentos sobre relatos prévios de assédio moral e a existência de algum auxílio à família da vítima. Contudo, as empresas não prestaram quaisquer novas informações além da nota pública.

O Grupo Pereira restringiu-se a dizer que “como informado na nota anterior, o gerente da unidade em questão foi afastado enquanto ocorre a devida apuração dos fatos”. Já a World Merchandising optou por não declarar nada.

O que configura assédio moral no trabalho

Na Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral e Sexual, relançada em 2022 pelo Tribunal Superior do Trabalho, “assédio moral é a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades.” Ainda pela definição trazida no documento, “a humilhação repetitiva e de longa duração interfere na vida do profissional, comprometendo a identidade, a dignidade e as relações afetivas e sociais e gerando danos à saúde física e mental, que podem evoluir para a incapacidade de trabalhar, para o desemprego ou mesmo para a morte”.

Por se tratar de um caso em investigação, ética e juridicamente, ainda não se pode afirmar que o caso de Viviane se enquadre como assédio moral, como explica a advogada e pesquisadora Tayná Ferreira, que é mestre pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e, por lá, integra o Núcleo de Estudos em Direito e Diversidade. Porém, ainda que respeitando o processo legal, pelas notícias veiculadas pela mídia local, afirma que é possível inferir que, em alguma medida, ocorreram violências contra a trabalhadora.

“O assédio moral pode aparecer sob diferentes formas, nem mesmo cabe fazer uma lista do que pode ou não ser assédio moral, já que poderíamos deixar algumas situações de fora”, indicou.

Ela evidencia que as particularidades de cada caso devem ser consideradas e que os mecanismos legais devem ser usados, mas considera que não são suficientes: “Ir à raiz do problema demanda tempo e vontade, além de mexer com questões internas, a exemplo do racismo, mas não há como se falar em uma sociedade mais justa e igualitária sem enfrentar tais questões”.

*Os nomes usados durante a reportagem, exceto o de Daiane, são fictícios, para proteger o sigilo das fontes, por elas estarem ou, ocasionalmente, poderem vir a estar em situação de vulnerabilidade quanto aos seus empregos.

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    Joá Bitencourt é estudante de Jornalismo, pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e faz estágio obrigatório no Por...

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