O filme “Assexybilidade”que seria exibido durante a 1ª Mostra de Artes Inclusiva, foi excluído da programação. Segundo o diretor do longa-metragem, o cineasta Daniel Gonçalves, o governo de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura (FCC), exigiu que ele fosse substituído sob risco de cancelar a Mostra, que será realizada nesta sexta-feira, 23 de agosto, no Centro Integrado de Cultura (CIC), em Florianópolis.

“Assexybilidade” traz histórias de 15 pessoas com deficiência sobre sexualidade e a pluralidade de experiências de cada uma delas. Premiado no Festival do Rio em 2023, será lançado em circuito comercial no Brasil no dia 19 de setembro.

A primeira exibição mundial foi em julho do ano passado, no Outfest Los Angeles, nos Estados Unidos, considerado o maior festival sobre a temática LGBTQ+ do mundo. O diretor Daniel Gonçalves, que é uma pessoa com deficiência, atribui a censura ao conservadorismo.

“O tema sexualidade é tabu de maneira geral, o que é bizarro. Quando se trata especificamente de sexualidade de pessoas com deficiência, esse tabu se multiplica por seis, sete. Existe toda aquela ideia de que pessoas com deficiência são anjos, seres que não têm sexo, infantilizados e incapazes. Há a mística de que não podem ter desejo, não podem ser desejadas. Muitas vezes isso vem disfarçado de proteção, mas é, na verdade, cerceamento e negação de direitos das pessoas com deficiência”, disse Daniel.

O cineasta aceitou substituir o “Assexybilidade” pelo também seu “Meu nome é Daniel” para evitar a suspensão da Mostra. Lançado em 2018, “Meu nome é Daniel” foi o primeiro longa-metragem dirigido por uma pessoa com deficiência a entrar no circuito comercial no Brasil.

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Daniel Gonçalves na exposição Assexybilidade no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro (RJ) | Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

Para contornar a censura, ele organizou, junto com integrantes do Núcleo de Estudos da Deficiência (NED/UFSC) e do Laboratório de Educação Inclusiva da Universidade Estadual de Santa Catarina (Ledi/Udesc), uma exibição do “Assexybilidade” em sessão especial, no sábado, 24 de agosto, um dia depois da Mostra, no auditório do Bloco B do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC (CFH/UFSC).

A exibição, às 15h, será seguida de debate com o próprio Daniel Gonçalves, o mestre em Psicologia Social e consultor em acessibilidade João Avelino; e a doutora em Psicologia Social Karla Garcia. João é uma pessoa surda oralizada e Karla é uma mulher com deficiência física. Ambos são integrantes do NED/UFSC.

Giovanna Nicolau, coordenadora temporária do NED, explica que o grupo se mobilizou para garantir a exibição do filme por considerar fundamental e urgente desmistificar a ideia de que corpos com deficiência são “abjetos, anormais, indesejáveis, incapazes”.

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Crédito: reprodução.

“Nossa mobilização foi para que nenhum corpo e nenhuma voz sejam deixados para trás, mas que todos os corpos sejam justiçados contra o capacitismo. É necessária a justiça defiça para que saibamos que não vão nos invisibilizar, nos amedrontar e nos calar, mas iremos florir, crescer e expandir nossas narrativas para nos emancipar e termos espaços para existirmos de forma digna e plena. No lema ‘nada sobre nós sem nós’, base do movimento emancipatório de pessoas com deficiência, se posicionar e se autodeterminar como pessoa com deficiência é um ato político e revolucionário”, disse ela, que é mestranda em Psicologia Social na UFSC e é uma pessoa autista.

Para a doutora em Psicologia Paula Helena Lopes, pesquisadora do NED/UFSC, o processo de negação da sexualidade de pessoas com deficiência as coloca num lugar de submissão e passividade em relação às demais pessoas, contribuindo, inclusive para o elevado número de violências sexuais contra elas.

De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, de janeiro a 18 de agosto deste ano foram registradas 4.577 denúncias de crimes relacionados à sexualidade de pessoas com deficiência por meio do Disque-100 em todo o Brasil, sendo 136 somente em Santa Catarina.

“Esse mito em torno da sexualidade das pessoas com deficiência se coloca como uma grande perspectiva capacitista, que as desconsidera como sujeitos de vontade, sem autonomia de dizer sim, tampouco de dizer não. Quando esse tema aparece numa obra artística, cinematográfica, teatral, há um estranhamento no olhar das pessoas. E eu acredito que a censura vêm na tentativa de manter as coisas como estão, para que ninguém precise de fato pensar na viabilização dessas pessoas como sujeitos de direito”, avaliou ela, que é autora da dissertação de Mestrado intitulada “Eu posso ser mãe sim: processos de significação acerca da gestação e da maternidade de mulheres com deficiência”.

Paula Helena lembrou ainda que a Lei Brasileira de Inclusão prevê, no artigo 6º, a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos de pessoas com deficiência, afirmando que essa condição  não afeta a capacidade civil para a tomada de decisões. Além disso, no artigo 8º estabelece que é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência a efetivação dos direitos referentes à sexualidade, à cultura, ao lazer etc.

A reportagem entrou em contato com a FCC solicitando posicionamento sobre a acusação de censura. Em resposta ao Portal Catarinas, a administradora do MIS-SC e da Sala de Cinema Gilberto Gerlach Maria Elizabeth Horn Pepulim disse que “Florianópolis que é conhecida por ter uma elevada qualidade de vida e que em 2013 chegou a ser a capital brasileira com maior pontuação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado pelo PNUD, das Nações Unidas, não poderia deixar de acolher eventos que promovam a inclusão de PcDs” e que a expectativa em relação ao evento, “como com todos os que acolhe, é proporcionar entretenimento variado, de qualidade, e que preferencialmente que possam acrescentar coisas boas para o cidadão”.

Em relação à acusação de censura, explicou que “o proponente ao descrever no documento o evento para o qual estava solicitando pauta, declarou‘Este é um projeto de arte e educação inclusiva, que tem como objetivo principal a promoção do acesso às artes para pessoas com DEFICIÊNCIA VISUAL.’ Com base nesta declaração a pauta foi deferida, uma vez que teremos na sequência outro evento para pessoas com deficiência visual. Qual a surpresa quando soube que o proponente mudou o objeto que havia proposto. O OBJETO FOI MUDADO. Legalmente e moralmente não precisaríamos mais acolher o evento, em vista desta alteração não solicitada previamente, e sequer autorizada. Mesmo assim, abrimos o precedente de manter a data solicitada, mediante a troca do filme por um com o conteúdo mais abrangente para pessoas com deficiência”.

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Exibição de Assexybilidade no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro (RJ) | Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil.

“Assexybilidade” é produzido pela TvZero e SeuFilme em coprodução com Globo Filmes, GloboNews e Globoplay. Coprodução e codistribuição da Prefeitura do Rio, por meio da RioFilme, órgão que integra a Secretaria Municipal de Cultura e Apoio à distribuição da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro através da Lei Paulo Gustavo. O filme tem distribuição da Olhar Filmes.

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  • Thais Araujo

    Jornalista, mestra e doutoranda em Jornalismo (UFSC), pesquisadora nos grupos Transverso e DhJor (Jornalismo e Direitos...

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