A América Latina está sendo ameaçada por organizações e ativistas contrários ao reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos que atuam para limitar e reduzir qualquer avanço no campo da liberdade e da autonomia. Eles defendem uma agenda política que cerceia as liberdades e o exercício pleno de uma sexualidade sadia, prazerosa e responsável. É o que alerta o documentário peruano “Gênero sob ataque” que chega ao Brasil em uma ação do SPW (Observatório de Sexualidade e Política), com apoio do CFEMEA, Nem Presa Nem Morta e Portal Catarinas.
No país, onde a relevância do tema se fez mais que flagrante no contexto eleitoral, o lançamento celebra os setenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O evento ocorre na próxima quarta-feira (12) às 19h, na Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro (CAARJ), centro do Rio de Janeiro. A entrada é franca.
“Gênero sob Ataque”, dirigido pelo jornalista peruano Jerónimo Centurión Aguirre e lançado recentemente em Quito (Equador), aborda o complô que ocorre em países como Peru, Colômbia, Costa Rica e Brasil. Quatro países onde a conjuntura política, os processos eleitorais, as reformas nos currículos escolares e até mesmo um referendo pela paz se tornaram cenários onde esses movimentos conservadores impuseram lemas de ódio e discriminação, com argumentos falaciosos, carentes de qualquer evidência, responsáveis por semear medo e desconfiança. O documentário procura alertar e informar a opinião pública de que nossos direitos fundamentais estão em risco e que devemos estar preparados para defendê-los.
Assista ao trailer:
Produzido pelo Clacai (Consórcio Latino Americano Contra o Aborto Inseguro), o filme documenta campanhas anti-gênero no Brasil, Colômbia, Costa Rica e Peru, analisando as suas origens, atores nelas envolvidos e efeitos, não apenas sobre direitos reprodutivos, direitos das pessoas LGBT e educação sexual, mas também sobre processos políticos de amplo alcance, como o Referendo do Acordo de Paz na Colômbia (2016) e as eleições presidenciais na Costa Rica (2018).
O documentário procura informar e alertar o público em geral sobre o alcance territorial, político e ideológico por detrás do movimento Com Meus Filhos Não Te Metas, bem como os atores que operam essa corrente conservadora que atua na região latino-americana. Promove um debate sobre as consequências na vida das pessoas, contribuindo para desmistificar os conceitos mais utilizados e distorcidos por esse movimento.
Paula Guimarães, cofundadora do Portal Catarinas, é uma das entrevistadas. Ela participou da iniciativa neste ano, quando apresentou sua pesquisa e reportagem sobre criminalização de mulheres por aborto no Brasil, no Encontro de Comunicação do Caclai, realizado no México.
Entenda o contexto de cada país, reportado pelo documentário:
Costa Rica: fratura social
Um casal do mesmo sexo sonha em se casar em São José de Costa Rica, mas um candidato evangélico à presidência consegue dividir o país e alimentar a homofobia. Pode um político conservador bombardear os direitos humanos em um país considerado o mais feliz do mundo?
Mario Arias nasceu na Costa Rica e seu parceiro é Roberth Castillo, um venezuelano que conheceu pela Internet. Após vários anos de relacionamento à distância, decidiram morar juntos. Como em Caracas era impossível por causa da crise política e econômica, decidiram morar em São José, a capital de um país sem exército e conhecido por seu respeito aos direitos humanos. Mario e Roberth decidiram se casar no momento em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos definiu o casamento igualitário como um direito. Mas suas bodas foram frustradas por uma campanha de ódio, impulsionada por movimentos religiosos e conservadores contrários ao que denominavam “ideologia de gênero”. Tudo isso ocorreu em meio às eleições presidenciais de 2018.
A noite do 1º de abril deste ano foi crucial para o destino do casal. A Costa Rica escolheria seu novo presidente. Se Carlos Alvarado Quesada, do Partido Ação Cidadã, vencesse, respirariam aliviados. Mas se o pastor evangélico Fabricio Alvarado fosse eleito, sua vida, a da população LGBTIQ, e a das mulheres, seria afetada. Fabricio Alvarado, do Restauração Nacional, era o candidato conservador mais radical.
Durante esta campanha presidencial, a Costa Rica percebeu que vivera um mito por muito tempo: o de ser o país mais feliz do mundo. A violência e a discriminação se acentuaram graças aos discursos de ódio do candidato evangélico, respaldadas por conservadores que se opunham à igualdade de gênero. Neste cenário, e antes das eleições presidenciais, houve uma manifestação organizada pelo movimento conservador que se opunha à educação integral livre, e que queria romper com os estereótipos do que significa ser homem ou mulher e com o respeito à diversidade. A manifestação — carregada de mentiras — teve impacto sobre a população e sobre dez dos treze candidatos à presidência. Opuseram-se ao que denominavam ideologia de gênero, afirmando que esta promovia a homossexualidade, o casamento igualitário e o abuso sexual de crianças. Estava consumada a fratura social.
Enquanto isso tudo acontecia, Mario e Roberth estavam preparando o casamento. Mas o candidato Fabricio Alvarado aproveitou o contexto para anunciar que, caso ganhasse a presidência, não titubearia em denunciar o Pacto de São José e promover a retirada do país da CIDH, em razão de que a Corte estaria promovendo uma abordagem de gênero. Isto o catapultou ao primeiro plano no cenário político. Em cinco dias, Fabricio Alvarado ficou em primeiro lugar nas pesquisas e o Conselho Superior de Notários proibiu tabeliões do país de realizarem casamentos de casais do mesmo sexo. Golpeados, Mario e Roberth tiveram que suspender as suas bodas.
“Vimos nosso sonho frustrado apenas alguns dias e horas antes de o concretizarmos”, recorda Mario.
Com o apoio de grupos evangélicos, Fabricio Alvarado venceu o primeiro turno eleitoral. Ganhava o conservadorismo religioso do Restauração Nacional, disparando a homofobia na Costa Rica. Mario e Roberth foram alvos de ameaças. Eles sofreram a ditadura religiosa, sem que esta sequer tivesse ganhado as eleições.
No entanto, a juventude saiu às ruas para protestar contra o candidato religioso e, no dia da eleição, conseguiu-se alçar à presidência o candidato do Ação Cidadã, Carlos Alvarado. Milhares saíram às ruas para comemorar, mas o estrago estava feito. O país acabou fracionado. As cadeiras ocupadas pela bancada evangélica no Congresso costarriquenho dobraram e Fabricio Alvarado saiu fortalecido. Hoje ele já sabe como ganhar uma eleição e tentará novamente daqui a quatro anos.
Peru: uma ameaça constante
O Peru é um dos países que apresenta os maiores índices de violência de gênero contra a mulher. Grupos religiosos estão se preparando para tomar o poder. Eles pretendem chegar à presidência e a sua presença no Congresso foi responsável por censurar dois ministros da educação.
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Dados nacionais indicam que 70% das crianças sofrem bullying por não corresponderem aos estereótipos de gênero. Uma em cada cinco meninas sofre violência sexual antes de atingir os 15 anos de idade (OMS, 2003). Pelo menos 130 mulheres morrem a cada ano por feminicídio. Estes números alarmantes fizeram com que o Ministério da Educação implementasse, por mandato estatal, uma educação que introduzisse temas sobre gênero. Grupos religiosos e membros da oposição reagiram a este avanço pelo Congresso. Desde os átrios das igrejas católicas e evangélicas denunciavam que se pretendia homossexualizar as crianças. Censuraram dois ministros da educação: Jaime Saavedra em primeiro lugar e depois Marilú Martens.
Esses grupos evangélicos, liderados pelo pastor Julio Rosas e por Alberto Santana, deturparam a mensagem. Asseguravam que o Estado peruano estava promovendo a “colonização ideológica e homossexual”. Reuniram-se no grupo “Com Meus Filhos Não Te Metas” e inundaram as ruas com mensagens contra a igualdade de gênero, negando uma escola transformadora e livre de violência.
Para esses grupos ultraconservadores, tanto católicos quanto evangélicos, a luta contra o currículo escolar foi apenas mais uma batalha. Já haviam anteriormente atacado com alguns sucessos a contracepção de emergência, o aborto legal em casos de estupro ou por motivos de saúde e também atacaram a educação sexual, mas não foi suficiente para conquistar o apoio da população. Fizeram-se passar então por supostos defensores dos filhos e, como pais preocupados, temiam pela vitimização de seus filhos a um Estado que impunha a abordagem de gênero.
Frente a seus paroquianos, eles eram vistos como homens e mulheres preocupados com algo tão valioso como a Educação e, tendo em vista o sucesso que obtiveram, imediatamente pensaram na oportunidade política de ter ativistas predispostos contra a abordagem de gênero, comprando seu kit eleitoral para formar seu próprio partido político.
“Eles só querem poder”, diz José Luis Pérez Guadalupe, ex-ministro do Interior.
Enquanto isso, esses pastores continuam cobrando dízimos milionários, adquirindo grandes coliseus para transformá-los em igrejas, convocando as pessoas que vivem na pobreza para se tornarem seus seguidores, assinando pactos com líderes políticos, entre estes Keiko Fujimori, que rechaça a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
Brasil: o poder evangélico in extremis
Com a bancada parlamentar mais retrógrada de sua história, o país elegeu o presidente Jair Bolsonaro, um candidato de extrema-direita, homofóbico e capaz de dizer que prefere sua filha morta, mas não lésbica.
A bancada parlamentar evangélica é a mais retrógrada, conservadora e poderosa da história do Brasil. Tiveram agora um candidato ultraconservador, como Jair Bolsonaro, que disputou as eleições presidenciais em um segundo turno que aproximou o gigante da América do Sul do estado de alarme. O que aconteceu com o Brasil progressista? Hoje o país parece mais machista e homofóbico do que nunca.
Os grupos evangélicos vêm tirando proveito da crise de segurança e do fracasso da política da esquerda no Brasil. No país do samba, abre-se uma igreja evangélica por dia. São congregações que agem onde o Estado não está, aproveitando-se para passar às pessoas seus valores morais e religiosos. Fazem trabalhos de assistência social em prisões e também em clínicas de reabilitação, lugares em que ganham mais seguidores.
Muitos pastores trabalham em palácios, como o Templo de Salomé, da Igreja Universal do Reino de Deus, uma estrutura de cimento maior que um estádio de futebol. Ninguém conseguiu conter os conservadores. Nem o ex-presidente Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva se indispôs com eles. Muito menos a ex-presidenta Dilma Rousseff. Os ataques contra ela, no entanto, foram decididamente mais violentos.
O Brasil tem agora o pior parlamento em termos de direitos sexuais e reprodutivos de sua história. Quando o governo propôs um plano anti-homofobia nas escolas, houve contra-ataque e o material produzido foi qualificado como pornográfico. O político Anthony Garotinho ameaçou Dilma Rousseff dizendo que se ela não retirasse aquele material das escolas, ele traria à tona questões sobre o uso de dinheiro em sua campanha eleitoral. Funcionou e Dilma removeu o material anti-homofobia. Em seguida, foram retirados dos textos curriculares nos níveis nacional, estadual e municipal, qualquer menção ao termo “gênero”.
No Rio de Janeiro, projeto de lei propunha excluir a palavra “gênero” do plano municipal de governo e o fizeram ao exagero, cortando até mesmo menções ao termo “gênero alimentício”. Acredite, é ridículo a este ponto.
Com Dilma Rousseff fora da presidência, os grupos evangélicos se tornaram mais radicais na questão educacional. A intolerância também atingiu espaços culturais. A narrativa instalada é de que a crise social e política no Brasil tem uma base moral; que todos os males ocorrem porque seus cidadãos são pecadores e que, para se salvarem, devem ser pessoas melhores desde a escola; mas só a mão de Deus interposta com rigor, ordem, inclemência e disciplina poderá salvá-los. Essa mensagem foi capitalizada pelo candidato presidencial Jair Bolsonaro, uma espécie de Donald Trump brasileiro. Ele é popular por suas posições extremas a favor da tortura, capaz de ensinar uma menina a atirar e de dizer que prefere que sua filha morra, a que se torne homossexual. O conservadorismo se radicalizou e elegeu Bolsonaro como seu representante.
O que aconteceu com o Brasil progressista? Bolsonaro foi eleito por 39% da população. Desse total, 55% são homens e, entre homens jovens de 16 a 24 anos, 60% votou nele.
Colômbia, a paz frustrada
Como os grupos conservadores e uma aliança entre as igrejas católica e evangélica contribuíram para frustrar o processo de paz entre as FARC e o governo colombiano?
Durante 50 anos, diferentes governos colombianos tentaram chegar a um acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) por sete ocasiões. O presidente Juan Manuel Santos estava prestes a alcançá-lo por meio de um referendo. Para conseguir esta paz, os grupos armados deveriam reconhecer suas violações massivas, assassinatos e sequestros de grupos vulneráveis, como as mulheres e a população LGBTIQ que, por décadas, foram alvo de grupos paramilitares e guerrilheiros.
Neste contexto, os movimentos ultraconservadores tiveram papel-chave para desnaturalizar a abordagem de gênero utilizada pelo governo de Juan Manuel Santos para construir a paz com as FARC, convertendo-o numa pós-verdade. Eles disseram que o seria sinônimo de “ideologia de gênero” e que, se o acordo fosse aprovado, os colombianos se tornariam homossexuais. Contra todos os prognósticos, esse “argumento” pesou no momento do referendo, em que os colombianos disseram “Não”.
A campanha contra a paz estava cheia de mentiras. Os grupos religiosos alegaram que a paz era uma porta aberta para a “homossexualização” do país, que o diabo queria entrar na Colômbia e que as FARC queriam chegar ao poder.
O documentário mostra que esses fatos não são isolados, mas respondem a um trabalho coordenado de forças evangélicas e conservadoras na região. Este grupo de extrema-direita conseguiu que o acordo entre o governo colombiano e as FARC submetido a um referendo, fosse rechaçado. O documentário identifica, ainda, que por trás dessas articulações há uma aliança entre a Igreja Católica e as mais importantes igrejas evangélicas, instituições que foram rivais por séculos, mas que se aliaram para chegar ao poder político e, a partir daí, barrar os direitos da mulher.