Cerca de cinco mil pessoas, entre estudantes, professoras, sindicalistas, trabalhadoras das mais diversas categorias juntaram-se à marcha da Greve das Mulheres, na última quinta-feira (8), em Florianópolis. A manifestação encerrou as dez horas de atividades político-culturais concentradas na Esquina Feminista, no centro da cidade. Com o tema “É tempo de rebelião”, a marcha deste ano reuniu o dobro de manifestantes do ano passado, de acordo com a organização do evento.
“Quando vi a quantidade de pessoas na rua Felipe Schmidt, olhei para a colega e falei ‘valeu todo o esforço’. As mulheres sentem essa necessidade de participar. O movimento aumentou, cresceu demais. Ontem a gente levou o dobro de pessoas. É reflexo da necessidade das mulheres de se movimentarem e se organizarem contra o ataque aos direitos”, analisou a advogada Iris Gonçalves, integrante do Coletivo 8M.
De acordo com Iris, a adesão das mulheres, principalmente mais jovens, veio de uma construção que iniciou durante a ascensão do movimento feminista nos últimos anos e se fortalece com o segundo ano de mobilização para a greve. Já no início de 2018, cerca de 40 mulheres se reuniram para pensar a organização do 8M. Foram mais de 30 eventos, entre reuniões de organização, cine-debates e rodas de conversa para pautar a greve.
“A proposta é ressignificar o 8 de março, que ao invés de comemorativo, passe a ser um dia para marcar a situação da mulher na sociedade. Isso vem acontecendo mundialmente nos últimos anos”, disse a advogada.
O Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) integrou-se à greve com mais de 150 mulheres vindas do oeste do estado. Segundo Irma Bruneto, o intercâmbio com as feministas da cidade tomou corpo no Seminário Fazendo Gênero, realizado em agosto, e motivou a maior participação das camponesas no ato deste ano. “Para nós do campo é muito importante essa relação com as mulheres urbanas. Muitas demandas são próximas as da gente, como a pauta contra a reforma da previdência. Estamos construindo o feminismo camponês e popular dentro da realidade da mulher do campo que é mais oprimida”, falou a trabalhadora.
A professora de Filosofia da UFSC, Janyne Sattler, que participou da organização do ato deste ano, explicou que as demandas da greve passam principalmente pela questão econômica, para denunciar a exploração da mão de obra feminina, e pela reivindicação da autonomia das mulheres em relação ao próprio corpo, que vem sendo negada em leis que, por exemplo, criminalizam o direito ao aborto.
Foto: Chris Mayer
“É uma luta anticapitalista que dá continuidade à proposta do ano passado ‘Se nossas vidas não importam, que produzam sem nós’. Estamos vivendo um período no Brasil em que rebelar-se é a única saída. Rebelar-se politicamente, contra os direitos de cidadã que nos tiraram. Assim como desobediência civil, a rebelião cidadã é talvez a ação política que melhor se encaixe neste momento”, avaliou a professora enquanto marchava.
Não estamos todas
Tendas distribuídas pelo Largo da Alfândega traziam nomes de mulheres que tiveram seus direitos violados, foram perseguidas, violentadas ou assassinadas. O espaço “Olga Benário” promoveu um diálogo entre encarceradas e mulheres que puderam participar da manifestação. Quem passava pela tenda podia se corresponder com uma presa por meio de carta.
“Não desanime. Tenha bastante fé. Um dia isso tudo vai terminar e você poderá cuidar dos seus filhos e netos que te darão muita felicidade ainda. Um abraço apertado de alguém que a admira”, escreveu a artesã aposentada Adélia Domingues Garcia da Silva, 83 anos, para uma das presidiárias.
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Foto: Chris Mayer
A artesã passou pela atividade por curiosidade enquanto passeava pelo centro. “Gosto de ver o empenho das mulheres. Deveria ser assim o tempo todo. Depois do dia 8 de março, parece que passou e todo mundo esqueceu.”
Analfabeta, Adélia pediu ajuda para escrever a carta. Ela conta que, além de trabalhar fora de casa, também se dedicou aos cuidados das cinco gerações da família, do irmão, marido, filhos e netos. São 11 filhas/os e 40 netas/os. “Os homens sempre foram privilegiados. Depois que começaram a dizer que mulheres têm direitos, elas estão se libertando. Minha nora, por exemplo, divide as tarefas de casa com o marido”, contou.
Democracia
Na tenda da democracia, debates sobre a necessidade de lutar pela conquista e manutenção de direitos seguiram durante o dia. Em uma das mesas, a ativista do Movimento Negro Unificado (MNU), Vanda Pinedo, atentou para a baixa participação das mulheres no parlamento federal brasileiro. Elas representam apenas 9% do total de deputadas/os e senadoras/es. “Vivemos hoje num Estado de exceção, é bom que todos saibam, porque a TV não mostra. A primeira mulher presidenta foi retirada de seu posto. Esse país pensa que vive numa democracia. De que democracia estamos falando?”, argumentou.
Foto: Chris Mayer
Para a militante, as categorias que não se organizarem vão sentir ainda mais as consequências da onda reacionária que o país atravessa. “As mulheres vem para a rua para dizer que querem uma sociedade mais igualitária, que respeite nosso jeito de ser e estar no mundo. Queremos transformação, e só é possível com luta. O país está sendo entregue ao capital estrangeiro. Lutamos por democracia e soberania nacional”.
O direito à cidade pela comunidade LGBT também foi pauta das discussões da tenda da democracia. Formada em serviço social, a ativista trans Lirous K’yo Fonseca Ávila criticou o fato de algumas universidades ainda não aceitarem o uso do nome social. A presidenta da Adeh (Associação em defesa dos direitos humanos com enfoque na sexualidade) denunciou também as violências e o assédio sexual que sofre no espaço acadêmico. “Já tentaram me estuprar no banheiro da universidade”.
De acordo com a ativista, é negado às pessoas trans o direito a ocupar ruas e espaços públicos, como shoppings. Entre alguns casos citados por ela, está o de uma mulher trans agredida por policiais e civis no mercado público de Florianópolis pelo simples fato de estar “transitando” no local. “É como se aquele espaço não fosse para ela. As famílias tradicionais nos querem como amantes, mas não nos querem circulando entre os seus”.
Foto: Chris Mayer
Anticapitalista
Na tenda anticapitalista o projeto “Armário Coletivo” reuniu peças de roupas e sapatos que poderiam ser trocados ou simplesmente levados sem nenhum custo. A atividade buscou conscientizar sobre a importância das ações cotidianas de boicote à marcas que utilizam mão de obra escrava, assim como valorizar o consumo consciente e as formas solidárias de trocas. “Muita gente participou, foi lindo ver as roupas circulando. As pessoas pediram para a gente repetir as ações”, contou a ativista Tathiana Zimermann Farias que ajudou na organização.
O 8M continua durante o ano com ações em universidades, escolas e outros espaços. “Não é só o ato, tem desdobramentos, a gente começa a receber convites para fazer palestras. É um ciclo produtivo”, assinala Iris do 8M.