Por Alícia Lobato, da Amazônia Real.
A subnotificação da violência doméstica pode estar ocorrendo quando se olham os dados de feminicídio. Rondônia tem uma taxa de 0,33 feminicídios por 100 mil mulheres e está entre os Estados com o menor índice de mortes proporcionalmente ao número de habitantes, durante os seis meses da pandemia do novo coronavírus. O segundo monitoramento da série Um vírus e duas guerras levantou dados de 20 Estados, incluindo o Distrito Federal. A média nacional observada foi de 0,56 feminicídios por 100 mil habitantes mulheres.
Na análise do segundo quadrimestre deste ano, entre os meses de maio a agosto, a queda no número de feminicídios no estado ainda foi maior: 0,22 por mil mulheres.
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social à Mulher (Creas), em Rondônia, atendeu 82 mulheres vítimas da violência doméstica em julho. No mesmo mês do ano passado, haviam sido 46 atendimentos. Mas, em maio e junho, o Creas viu a procura por ajuda diminuir, meses em que a população viu crescer o número de pessoas infectadas pela Covid-19. Essa contradição acendeu um sinal de alerta para a coordenadora do Creas, Silvana Tomaz. Talvez os números estejam longe de retratar a realidade.
“Isso é um dado alarmante, porque significa que as mulheres não chegaram ao socorro. Onde estão elas? Eu não creio que a violência tenha diminuído. Muito pelo contrário, se intensificou com o isolamento”, explica a coordenadora. Embora o Creas não tenha deixado de atender presencialmente durante a pandemia do novo coronavírus, sempre com alguém na sede em Porto Velho, o que se percebeu foi uma redução drástica nas denúncias, principalmente as vindas de unidades de saúde, prontos socorros e UPAs. As denúncias dessas instituições “praticamente desapareceram”, diz Silvana.
Para a coordenadora do Creas, a retomada no atendimento presencial por parte das outras instituições, a partir de julho, explica o aumento de casos. Ou seja, a violência contra as mulheres estava acontecendo, mas elas não tinham a quem recorrer.
É com a preocupação de visibilizar esse fenômeno silencioso que as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo, se uniram em uma parceria inédita para levantar os dados das cinco regiões do País. O resultado desse trabalho colaborativo é a série Um vírus e duas guerras, que busca fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil.
Em números absolutos, de janeiro a agosto, a taxa de feminicídio caiu de 6 para 4 entre 2020 e 2019 em Rondônia. Entre os meses de março a agosto deste ano, três mulheres foram vítima de feminicídio ante os cinco casos do ano passado. Na pandemia, os três crimes foram registrados de março a junho. Uma das vítimas foi da jovem Ingrid Pereira dos Santos, 16 anos, morta pelo companheiro de 23 anos por um golpe de faca no peito, em Theobroma.
Para qualificar mais os dados sobre as vítimas do feminicídio, o monitoramento Um vírus e duas guerras solicitou à SSP de Rondônia mais informações sobre elas, mas o órgão disse que essas “características das vítimas serão preservados” e que não existem dados sobre etnia e orientação sexual no sistema de Registro de Ocorrência da Polícia Civil.
Os casos de homicídios também podem estar sendo subnotificados. De maio a agosto foram registrados 16 casos de homicídio de mulheres em Rondônia. Um aumento de 166% se comparado ao mesmo período de 2019, quando houve 9 mortes. A ausência de dados mais precisos sobre feminicídio evidencia que ainda há um embate entre os órgãos para se qualificar os crimes.
“A definição de fluxos claros e objetivos de atendimento para que a mulher saiba exatamente onde ir, dependendo do tipo e do grau de violência que sofreu, é primordial para não revitimizá-la e para que se descubra o grau de risco em que ela se encontra”, defende Rosimar Maciel, coordenadora da Rede Lilás. Da união de mais de 20 órgãos do Estado, em 2010, nasceu a Rede Lilás a partir de um protocolo assinado pelo prefeito, secretários municipais, Ministério Público, Delegacia da Mulher, Fórum Popular de Mulheres e outras instituições que combatem a violência doméstica até sua saída de vulnerabilidade.
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“Serviços são prestados por meio de cada órgão dentro de suas competências legais. A Rede (Lilás) não é institucionalizada”, explica a coordenadora Rosimar, que atua como auditora de controle externo do Tribunal de Contas do Estado (TCE) de Rondônia.
Alta da violência contra a mulher em julho
(Foto Arquivo pessoal de Anne Cleyanne Alves/2020)
Os números oficiais da violência doméstica em Rondônia indicam um aumento durante a pandemia. De maio a julho 2.410 mulheres formalizaram denúncias na delegacia, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP).
Nos meses de maio a julho, houve 317 e 315 boletins de ocorrência. Nesses meses em 2019, foram 271 e 285. Para Silvana, que está na coordenação do Creas há três anos, poucas organizações se atentaram a essa situação vulnerável em que dependentes desses programas foram deixadas durante o isolamento social.
Na prática, mulheres tiveram de conviver com o agressor dentro de casa, sem acesso a meios de comunicação ou a pessoas externas para pedir ajuda. As denúncias acabaram não chegando a instituições como Creas, que oferece orientação jurídica, assistência social e atendimento psicológico para vítimas da violência doméstica. E os encaminhamentos do Creas para outras instituições também não puderam ser feitas, sob a alegação da dificuldade de atendimento por conta da Covid-19.
A psicóloga Anne Cleyanne Alves, presidente e fundadora da Associação Filhas do Boto Nunca Mais, também atribui o aumento dos casos da violência contra a mulher à paralisação de alguns órgãos nos primeiros meses de isolamento. “A instituição precisou oficializar a falta de efetividade nos atendimentos dos órgãos públicos, pois a ONG não estava conseguindo sozinha atender toda a demanda, entre pedidos de cestas básicas, abuso sexual infantil, violência contra mulheres e pessoas desabrigadas. Foram mais de 800 solicitação de algum tipo de ajuda, que só foi possível atender graças a ajuda de outras ONGs”, diz.
A associação, que funciona como porta de entrada para acolhimento de demandas e encaminhamentos, atua com o trabalho de conscientização contra a violência doméstica na capital, Porto Velho, além de incentivar o empreendedorismo e a autoestima das vítimas, que em sua maioria se encontram vulneráveis tanto física quanto psicologicamente.
“Quando a demanda chega, inicia uma mobilização e articulação com a rede de atendimento e com outras ONGs”, explica Anne Alves. A Cufa, por exemplo, ajudou com as doações de alimentos e água. A Asmaron trabalhou em termo de violências e violações de direitos. Já a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Creas se mobilizam para acolher e receber a demanda. “A associação (Filhas do Boto Nunca Mais) acompanha a vítima.
As adaptações no atendimento das vítimas
(Foto de Nay Jinknss/Amazônia Real)
A equipe do Creas, composta de 12 colaboradoras, incluindo duas psicólogas, duas assistentes sociais e duas assessoras jurídicas, começou a estudar tudo o que saía sobre violência doméstica nos outros países, tão logo as políticas de isolamento social foram definidas. “O Brasil teve tempo de se preparar, fizemos um estudo e várias reuniões para construirmos um plano de segurança e sanitário para como continuar atendendo, a preocupação é real”, lembra Silvana Tomaz.
Embora 4 pessoas do Creas tenham adoecido da Covid-19, o atendimento não parou. Durante a pandemia, elas tiveram de se readequar a novas formas de atendimento e utilizaram de aplicativos de mensagens para dar maior suporte a vítimas. “O atendimento pelo Whatsapp era mais para mulheres que moram em distritos. Agora se intensificou. Em julho, só denúncias encaminhadas foram 22, fora as que recebemos de chamadas e pelo Whatsapp. As delegacias não estavam atendendo presencialmente, apenas por e-mail e Whatsapp, atendendo apenas roubos e flagrantes. Muitas mulheres sofreram muito mais por não ter esse acesso ao socorro”, diz Silvana.
Uma realidade que se nota é que a maior parte das mulheres em situação de violência e vulnerabilidade é negra e mora nas grandes cidades. Isso vale tanto para o Creas quanto para a Associação Filhas do Boto Nunca Mais. “A mulher negra é maioria dos atendimentos, infelizmente está no topo da pirâmide de violência, imaginamos que muitas devem estar sofrendo violência, mas poucas têm de fato meios de denunciar”, lamenta Anne Alves.
Leia a primeira reportagem da série Um vírus e duas guerras
Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid-19
A série Um Vírus e Duas Guerras vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídio e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.