“Eu falo para as defensoras que não silenciem, que não se intimidem, que a luta por justiça é muito maior”, ressalta a defensora. 


Eleonora Pereira da Silva, 58 anos, teve seu filho assassinado em 2010 por dar continuidade ao seu trabalho com meninas que haviam sido exploradas sexualmente dentro do Ceasa-Centro de Abastecimento e Logística de Pernambuco, perto de sua comunidade Jardim São Paulo, em Recife. Depois de mais de vinte anos de luta pela dignidade das meninas, ela vive em estado de vulnerabilidade social e está desassistida do Programa Nacional de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos desde 2019.

O Programa de Proteção foi criado pelo Estado após o assassinato de Dorothy Stang, 73 anos, ativista ambiental da Amazônia, em 12 de fevereiro de 2005, em Anapu (PA). Porém, os dados mostram um aumento dos assassinatos de defensoras e defensores dos direitos humanos por todo o país, revelando a fragilidade nas ações de implementação do programa.

Segundo o diagnóstico “Começo do Fim?” produzido pela organização Terra de Direitos e Justiça Global, este é o pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) desde a sua criação pelo Decreto nº 6.044/2007, revisado pelo Decreto nº 9.937/2019.

O programa teve a menor destinação orçamentária desde 2015. Dos problemas enfrentados foram identificadas a falta de participação social e transparência, falta de estrutura e equipe para atendimento da demanda, insegurança política na gestão e inadequação quanto à perspectiva de gênero, raça e classe, entre outros.

O Relatório “Violência, impunidade, criminalização de defensoras e defensores de direitos humanos”, lançado pelo Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos em dezembro de 2021, enfatiza os desafios para o exercício da função das/os defensoras/es de direitos humanos. O comitê é formado atualmente por 45 organizações e movimentos sociais do Brasil que atuam articuladas em rede. Em 2021, foram realizados 21 apoios emergenciais, 14 foram em áreas rurais e 7 em áreas urbanas.

Eleonora integra o Coletivo independente de mulheres defensoras dos direitos humanos que busca dar apoio às mulheres que estão vivendo situações semelhantes. Em entrevista ao Portal Catarinas, ela, que é neta de indígenas do Povo Tabajara, de João Pessoa (PB), conta um pouco sobre sua trajetória de luta, fala sobre a construção de políticas públicas e o cotidiano de resistência e resiliência das defensoras e defensores de direitos humanos.

Eleonora Pereira da Silva/ Foto: arquivo pessoal

CATARINAS – Eleonora, soubemos que você, mesmo sofrendo ameaças constantes, não faz mais parte do Programa de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos. Quais seriam os motivos?

Eleonora: Quem retirou a minha proteção foi o governo do estado, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, que tem o programa de defensores. Então, foi o programa de proteção de defensores e defensoras que tirou a minha proteção. O Ministério Público foi omisso, acompanhou todo o processo, quase dez anos acompanhando o processo e no final das contas deixou que o governo do estado tirasse a minha proteção.

Tem um documento do programa enviado para o Ministério Público me criminalizando. O documento diz coisas que não são verdade, tem um monte de omissão. Já bastam as ameaças, ameaças às minhas netas, ameaças indiretamente para mim.

Eu pedi ajuda ao secretário de Direitos Humanos e nem retorno eu tive. Novamente, o Estado é omisso. É assim que a gente vive aqui no estado de Pernambuco.

Eu sou neta de indígena, minha avó é indígena, meu pai é indígena, eu sou filha de indígena Tabajara de João Pessoa. Não sou aldeada até porque minha avó faleceu e nós nos afastamos para podermos estudar na cidade.

CATARINAS: Mas como começou tudo isso? Você poderia nos contar?

Eleonora: Toda história começou com o meu trabalho na comunidade com jovens, com meninas em situação de vulnerabilidade que mendigavam na Ceasa, que é a central de abastecimento de hortifrútis granjeiros de Pernambuco. Eu comecei a trabalhar e a identificar as meninas que viviam em situação de exploração sexual.

As meninas começaram a me revelar algumas situações como, por exemplo, o que chamavam de “Caminhão do Faustão”, que era uma urna que ficava em determinado galpão aqui na Ceasa que listava o nome das meninas e sorteava no final de semana. E para a menina que fosse “virgem” o valor era maior. Iam para um determinado motel aqui, próximo à Ceasa, e lá tinha a orgia com as meninas. As meninas que eram “virgens” tinham roupas, alimentos, dinheiro, tinham tudo, tinham uma valia maior para que eles “tirassem a virgindade” dessa menina.

Tudo começou com esse meu trabalho. Surgiram as denúncias desse grupo de extermínio que atuava na Ceasa, conhecido popularmente como “thundercats”. As meninas passaram a ser mortas debaixo do viaduto da Ceasa, em um dos casos colocaram uma pedra em cima da cabeça da menina. De repente, eu comecei a receber telefonemas de ameaças.

Uma matéria publicada em 2005 mostrou o que realmente acontecia dentro da Ceasa, a exploração de meninas. A Ceasa, que é do governo do estado, tentou encobrir, mas não conseguiu porque logo após surgiu a pesquisa que aponta, de fato, as violações de direitos com as meninas, tanto com as meninas que debulhavam feijão, como com as meninas que vendiam cafezinho. São violações de vários tipos, não havia mais como o governo do estado esconder. Daí eu comecei a ser ameaçada.

Foi no ano de 2000 que começou toda essa história, começaram as ameaças e as ligações e eu entro para o programa de proteção aos defensores de direitos humanos. Isso aconteceu quando a quadrilha foi presa pelo assassinato de uma das mulheres da comunidade. Ela foi assassinada com doze tiros na frente do pai, da mãe e dos filhos, um levou um tiro de raspão na barriga. Eles foram pegos, a quadrilha desarticulada e um deles deixou um recado na comunidade para que eu ficasse quieta: o primeiro tiro seria em mim quando ele saísse.

Eleonora e seu filho José Ricardo / Foto: arquivo pessoal

Essa quadrilha foi condenada no mês de setembro a trinta e dois anos de prisão. Em outubro o meu filho foi assassinado, aos 24 anos de idade. Foi crime homofóbico e de ódio. Tudo isso aconteceu logo depois que o governo me tirou pela primeira vez do programa de proteção, a pedido de um delegado. 

Correram atrás para me recolocar no programa novamente. Eu não queria voltar, mas mesmo assim a pedido dos amigos eu voltei. E veio toda uma situação de luta para buscar justiça, condenar os assassinos do meu filho. Eu consegui condenar a dezoito anos cada um, mesmo assim continuaram as ameaças.

A comunidade é Jardim São Paulo, em Recife, próximo à Ceasa. São jovens que eu vi iniciar no tráfico com o apoio político de ex-governador do estado. Neste grupo de extermínio ou milicianos têm delegados, militar da aeronáutica, exército, marinha, além da polícia civil e militar. Hoje só aconselho elas, pois são mulheres que têm outra visão do mundo e da educação.

CATARINAS – Você mora no mesmo local e tem o apoio da comunidade?

Eleonora: Hoje, eu atuo na luta contra a homofobia e apoio às mães de LGBTQI+, principalmente as mães que perderam seus filhos de forma violenta. Hoje eu sobrevivo, não consigo trabalhar porque muitas pessoas acham que eu sou um risco para elas por ser ameaçada. Sim, eu moro na área de risco. Mesmo com a avaliação de risco não recomendaram que eu voltasse ao programa de proteção. Tenho apoio da comunidade, mas não é suficiente.

CATARINAS – O que você acredita que pode ser feito como política pública, como projeto, dentro da tua experiência, para que de fato as defensoras e defensores dos direitos humanos tenham mais segurança e a sociedade tenha menos violência?

Eleonora: Para falar de políticas públicas a gente teria uma demanda enorme. Não temos uma política pública específica para defensores e defensoras de direitos humanos. A política de segurança que a gente tem é um programa vazio, sem pessoas preparadas. Precisava de uma política de segurança, de proteção mesmo, de prevenção e proteção.

Prevenir para que a gente não chegue nas ameaças, mas também proteger quando a gente já está ameaçada, não uma proteção fantasiosa.

A gente precisa que o país tenha uma política que seja de saúde mental, uma política social de saúde. Uma política social porque a gente tem defensores que, muitas vezes, pela própria atuação estão desempregados, são sustentados pela família, passam por necessidade e por violência dentro da sua própria família. E isso não é visto.

O defensor ou a defensora só são vistos quando são ameaçados, pois colocam a polícia para proteger e acompanhar. A gente é biopsicossocial. A gente precisa de uma política afirmativa que dê visibilidade a defensores e que acompanhe todo um sistema de proteção.

A gente precisa ver o defensor de forma sistêmica. Não o defensor só do lado da polícia. Só quando é ameaçado, tem que ver antes.

Precisa que os órgãos estaduais, nacional e os internacionais também vejam, porque não é só ajudar um defensor uma vez e depois dizer que o defensor não vai ser mais ajudado porque já foi ajudado. Isso é processo de exclusão. A gente precisa ver o defensor naquele momento das situações dele, das situações pesadas, nas situações que ele merece ser ajudado. 

Muitas vezes não temos uma política afirmativa de visibilidade, uma política completa, para que a gente possa proteger de fato esse defensor e essa defensora. Com certeza, essa família que foi assassinada, ninguém fala que são defensores, falam que se trata de uma família que lutava pelas questões ambientais.

A gente precisa ter política afirmativa. E as defensoras e defensores precisam gritar por essa política. Não é os outros gritarem pra gente, somos nós que devemos gritar.

Eleonora participa de campanhas contra a homofobia/ Foto: arquivo pessoal

CATARINAS – Há outras defensoras na região em que você mora na mesma situação? E como você está fazendo a sua segurança neste momento?

Eleonora: Estou fora do programa desde 2019. Deixaram de pagar o aluguel do pouso e me deixaram com uma dívida de oito mil reais sem condições de pagar. Tive que sair às pressas, pois foi feita uma ação de despejo. O programa não me deu opção de buscar outras alternativas a não ser voltar para minha área de risco. Uso os ensinamentos do curso de segurança da Frontline (Front Line Defenders é uma organização irlandesa de direitos humanos), e com o apoio de algumas lideranças da comunidade. 

Atualmente estou com dificuldades de locomoção, eu não estou na minha casa. Por segurança uma das mulheres do grupo me acolheu na sua casa. Estou em situação de fragilidade. É muito doloroso.

CATARINAS – Por que você está com dificuldades de locomoção?

Eleonora: No domingo após o Natal eu tive um AVC (Acidente Vascular Cerebral), mas leve. Perdi força no braço e na perna esquerda ando com dificuldade. Vou fazer fisioterapia para restaurar os movimentos. Entregamos os nossos corpos para a luta por acreditar em um mundo melhor para todos e todas. Não é fácil quando assumimos a luta por igualdade e direitos humanos.

CATARINAS – Você tem outros(as) filhos(as)?

Eleonora: Tenho dois, e são casados. Tenho seis netos. As duas netas mais velhas foram ameaçadas. Eu fiz denúncia para a Secretaria de Segurança Pública e até o momento não me deram resposta. Para a secretaria de segurança é obrigatório ir na delegacia para denunciar as ameaças. Isso é horrível, pois nos expõe. 

Eu passei um ano fora do Brasil e foram os melhores momentos, pois eu pude andar sem medo. A pior coisa é andar com medo de ser morta. Estive na África e pretendo voltar para ter um pouco de paz. Fui muito bem acolhida pelo povo africano. Com o apoio da União Europeia em 2017, pude contribuir com a luta deles. Estou falando para entenderem que a nossa vida é difícil.

Participação do movimento nacional das mães pela igualdade em Brasília na parada LGBT/ Foto: arquivo pessoal

CATARINAS – Neste momento político, o que você diria para as outras defensoras?

Eleonora: Eu falo para as defensoras que não silenciem, que não se intimidem, que a luta por justiça é muito maior. No momento, nessa conjuntura que a gente está vivendo, a injustiça está ultrapassando os limites. Então, a gente não pode silenciar em nem um minuto, não pode ser omissa, tem que continuar na luta e não deixar que o medo tome conta de nós. Precisamos estar juntas e unidas para que nos tornemos fortes, porque o nosso grito que a gente traz da população é bem maior.

CATARINAS – Você considera que as violências contra as defensoras aumentaram nos últimos anos?

Eleonora: Desde que se criou esse programa com a morte da irmã Dorothy a gente não vê reduzir, porque começou a se dar visibilidade a violência contra as defensoras e defensores. Do ano passado para cá a tendência foi um aumento, principalmente por parte de quem luta por terra, território e periferia. A tendência foi aumentar.

Inclusive agora com essa morte que teve dos três defensores ambientalistas que foi horrível. Isso deixa os defensores e defensoras em impacto. A gente precisa reduzir isso, mas para reduzir a gente precisa de políticas públicas afirmativas, principalmente na área de prevenção e proteção.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Vandreza Amante

    Jornalista feminista, antirracista e descolonial atua com foco nos olhares das mulheres indígenas. A cada dia se descobr...

Últimas