– Vocês estão sozinhas?
As duas mulheres não se afastaram de imediato. Pelo contrário, foi quase em câmera lenta que desviaram os olhos uma da outra e viraram o rosto ao mesmo tempo para fitar o total desconhecido que as abordava.
Sem reparar na sincronia com que o fizeram ou na forma apaixonada que se olhavam, muito menos na intimidade que a proximidade em que estavam claramente indicava, o homem abriu um sorriso que provavelmente julgava sedutor ao completar:
– Posso me sentar?
Não era a primeira vez, nem seria a última. Mas, por mais que parecesse corriqueiro, sem importância e até banal, cada vez que isso acontecia, para Marcela era como se lhe arrancassem um pedaço. A prova concreta de tudo que o simples fato de serem um casal de mulheres num mundo injusto e cruel em suas desigualdades lhes roubava. Sabia perfeitamente que se uma delas fosse homem, o outro jamais teria se aproximado.
A ausência da figura masculina na mesa supostamente conferia ao cara o direito de protagonizar, como se as duas não passassem de meros complementos em busca do sujeito que faltava. Ele. O macho alfa.
Vivi também estava cansada. Exausta de uma vida inteira sendo incomodada, interpelada, invadida, ofensivamente assediada apenas por não atender aos estereótipos que talvez fizessem com que esse e outros galanteadores inconvenientes e indesejáveis lhe deixassem em paz e que a impedissem de ouvir uma vez mais: “você não parece nem um pouco”, como se fosse o maior dos elogios, algo a ser comemorado.
Claro que poderia mudar sua forma de se vestir, de agir, de se comportar. Tornar-se mais “pintosa”, fosse lá o que isso significasse.
Seria muito mais fácil.
Se deixar de ser quem realmente era fosse algo simples, e não do que realmente se tratava.
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Negar a própria essência para se enquadrar, ser aceita, perseguir os sonhos e objetivos alheios, atender a expectativas e cobranças de terceiros. Independente do motivo, era o pior sofrimento que poderia imaginar.
Só que era mais do que isso, havia muito envolvido, não se tratava de “sair do armário”. Era assumida, nunca tinha escondido o que sentia por Marcela, nem que eram casadas. Entretanto, impossível negar o quanto tinha medo de se expor em público. O passar dos anos a deixara mais e mais covarde. Temia pela própria integridade física e ainda mais pela da mulher que amava. Milhares de histórias de violências contra amigas, conhecidas e de que tomara conhecimento por meio da mídia ou nas redes sociais alimentavam esse receio, fazendo-o crescer internamente, fincando raízes cada vez mais profundas, dominando e minando sua vontade de resistir de forma parasitária, daninha e maquiavelicamente calculada. Tornando-a um pouquinho menos visível e dizível a cada dia que passava.
O silêncio das duas foi tomado como consentimento. Com um ar vitorioso – repleto de certeza na imprescindibilidade de sua presença e confiança na própria capacidade de salvar a noite de uma, ou talvez, com sorte, das duas mulheres solitárias –, o assediador inoportuno puxou a cadeira e teria se sentado, se Vivi não se levantasse num ímpeto:
– Fique aí onde está.
Aproveitou a surpresa dele para completar, alto o suficiente para ser ouvida por todo o bar:
– Quem está sozinho é você. Nós duas estamos juntas.
Indescritível a maneira como Marcela sorriu e se pôs de pé ao lado de Vivi, deixando à mostra as mãos que não tinham se separado nem por um segundo com a mais absoluta felicidade e orgulho:
– Há oito anos já.
*Diedra Roiz é escritora e diretora teatral. Possui 20 livros publicados, entre eles a trilogia “O suave tom do abismo”. Site: diedraroiz.com