Por Camila Sailer Rafanhim de Borba e Camila Ribeiro de Almeida Rezende.

“A Circe da humanidade, a moral, falsificou – arquimoralizou – todo o psicológico dos pés à cabeça, até chegar a esse espantoso absurdo de que o amor deveria ser algo ‘não-egoísta’” (Nietzsche, Ecce homo).

Ahhhh, o amor está no ar! Chega o 12 de junho – Dia dos Namorados no Brasil. Nossos olhares são arrebatados pelos corações vermelhos que enfeitam as cidades. Esses corações quase sempre passam despercebidos por nós, banais, em meio às propagandas, eles são apenas detalhes, são o símbolo gráfico da representação do amor romântico. Quantas de nós já não desenhamos um coraçãozinho para as pessoas que amamos? Pois bem, é sobre esse símbolo que gostaríamos de dedicar algumas palavras.

Por detrás de um singelo desenho de um coração vermelho percebemos uma representação social do amor romântico. O desenho traz sobretudo uma narrativa, que não se constrói apenas com as nossas trajetórias pessoais.

A verdade é que a forma como nós vivenciamos e sentimos as emoções também é influenciada por uma narrativa socialmente compartilhada e difundida pelas manifestações culturais – a literatura, a arte, o cinema, as mídias sociais, a publicidade e tantas outras manifestações possíveis.

Olhando atentamente para o símbolo gráfico do coração, percebemos uma linha tortuosa que atinge um movimento de subida e descida. Se pensamos bem, segundo o imaginário social, o amor é algo sublime, pleno, sólido, seguro, estável – diferentemente da paixão, que é um sentimento de furor incontrolável, que ofusca a razão, que opera entre altos e baixos, que nos arrebata.

Entretanto, o coração é um símbolo que representa ambos sentimentos. Estranho não? Já que o amor seria um sentimento mais “estável” que a paixão, as linhas tortuosas do coração não fazem jus à tal característica. Mesmo assim seguimos com essa representação – a reproduzimos pois aprendemos assim. Essas linhas do coração nos dão algumas pistas sobre a incoerência com que representamos o sentimento amoroso.

A representação social acerca de um sentimento, de uma emoção, pode interferir em diversos campos da vida como: trabalho, família, casamento, política, religião, etc. Assim, quando pensamos sociologicamente a representação do amor, e seu aspecto romântico e utópico, percebemos o quanto ela atua construindo as relações sociais.

E do ponto de vista do gênero, a partir de teóricas feministas, tal representação se torna um instrumento de criação e reprodução da desigualdade de gênero – por trazer um peso maior para nós mulheres em vários sentidos.

Eva Illouz, autora marroquina, reflete sobre essas questões na obra “El consumo de la utopía romántica. El amor y las contradicciones culturales del capitalismo” (2009). Ela demonstra como a cultura e o mercado influenciam na forma como são vivenciadas as emoções, em especial o amor romântico, ressaltando o papel que tiveram o cinema e a publicidade na construção dessa utopia no início do século XX – no período do chamado capitalismo tardio.

Segundo a autora, na era vitoriana o amor era visto como um meio para se alcançar o autoconhecimento e a edificação espiritual – daí sua proximidade com a religiosidade. Porém, essa proximidade se altera a partir do século XX, momento em que se inicia a construção de um ideário do amor enquanto “um valor em si mesmo e também como um elemento importante na busca da felicidade, definida cada vez mais em torno da individualidade e da esfera privada” (2009, p. 56). Na verdade, conforme Illouz, é evidente que os sentimentos em si não são a novidade desta nova era, mas sim a visibilidade que se dá a eles e às expressões públicas, bem como a importância que tem os meios de comunicação de massa para difundir esta nova forma.

Eva Illouz cita que a indústria cinematográfica – a partir de 1930 e em especial Hollywood – difundiu o amor como tema principal da maioria dos filmes produzidos. Mas, não apenas os roteiros e os personagens cumpriam este papel, as “estrelas” do cinema na “vida real” também comercializavam pela mídia uma vida com o mesmo glamour que tinham seus personagens nos filmes. Isso servia “para reconciliar duas ideias aparentemente contraditórias: a do matrimônio como um empreendimento frágil (confirmada pelo aumento da taxa de divórcios) e a do matrimônio baseado no amor eterno (ilustrada pelas vidas conjugais supostamente idílicas dos atores e atrizes)” (2009, p. 60). Em resumo, a autora demonstra que “a indústria cinematográfica, em fase de expansão, explora a temática do amor, o matrimônio e a felicidade em termos de consumo, diversão e ócio” (2009, p. 60).

Casablanca, filme estadunidense de 1942 dirigido por Michael Curtiz, conta um drama romântico na cidade marroquina de Casablanca.

Além do cinema, Illouz demonstra que a indústria publicitária também em ascensão no mesmo período, teve função igualmente importante nesta construção. Explica que a publicidade comercial muda sua forma de atuação e suas funções no século XX e “entre 1920 e 1929, a agência de publicidade deixa de ser um negócio simples que vende espaço em periódicos para se transformar em uma empresa que serve aos interesses de grandes corporações, o que contribui para elevá-la ao status de criadora de tendências econômicas e culturais”. (2009, p. 61).

Assim, a análise de anúncios publicitários de determinado período pode ser significativa dos valores da sociedade do período ou daqueles que o mercado pretende incutir. Para além da análise feita por Illouz da sociedade norte-americana, não é difícil perceber a influência dos anúncios publicitários na construção dos valores e do ideário de uma sociedade também quando olhamos para o Brasil. São famosas expressões como “família de comercial de margarina” para representar a família “perfeita” e feliz.

A investigação de Illouz passa por revisitar a representação dos casais e do amor neste tipo de material. Também diferencia, neste ponto, ao analisar anúncios do início do século XX, as características da publicidade voltada à classe trabalhadora, daquela direcionada às classes mais altas, reforçando sua hipótese inicial do viés de classe.

A Princesa e o Plebeu de 1953, dirigindo por William Wyler, rendeu à Audrey Hepburn o Oscar de melhor atriz.

Neste período também se intensifica o incentivo ao hedonismo, ao ócio e ao prazer, com publicidade de atividades como o cinema inclusive para a classe trabalhadora. Neste ponto, Illouz aponta que os anúncios que representavam casais na “emoção do romance” e longe do “tédio do casamento”, além de promover o consumo do produto especificamente anunciado, promoviam o consumo do ócio, ao incentivar a realização da atividade que aquele casal realiza na imagem.

Atividades como frequentar um restaurante, um bar, o cinema, fazer um piquenique, uma viagem ou ir a um baile. Assim como a representação destas atividades numa “aura” romântica é utilizada para a publicidade de outros produtos que não teriam, a princípio, nada de “romântico”. Ou seja: há a construção de um ideário romântico baseado no consumo do ócio, que é “vendido” pela publicidade destes produtos e serviços, bem como serve para promover outros tipos de produtos, uma vez estabelecidos.

A ideia de um amor romântico como imaginário social, portanto, não atinge apenas o relacionamento entre um casal, mas toda a família que se constrói a partir disto, inclusive a relação com os filhos quando há. Isto porque o próprio ato de escolher o cônjuge baseado no amor e ter filhos com esta pessoa pelo mesmo motivo são consequência desta utopia do amor romântico construída. Quando esta ideia surge, é algo transgressor da ordem social, porque desafia um dos mecanismos fundamentais de regulação dos grupos sociais que é o parentesco, bem como a utilização do casamento como uma operação comercial.

A construção de uma família, com ou sem filhos, baseada na ideia de amor romântico traz consigo a imposição de papéis distintos aos homens e às mulheres dentro destas relações. É perceptível o quanto o amor é naturalizado como um sentimento inato à mulher, algo que ela nasce sabendo desempenhar. O casamento/família se estabelece como “profissão”, e o sucesso é baseado em como ela consegue manter erguida essa instituição social. A forma como experimentamos estas emoções é moldada por este contexto.

Silvia Federici, teórica e militante feminista italiana, afirma que o capitalismo também se apropriou e manipulou a busca do amor, da afetividade e da solidariedade entre todos os seres humanos; o deformaram, usando-o como uma medida para extrair trabalho não pago. E para ela: “Isso que chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. Isto porque os sacrifícios que o papel de mulher impõe nessa representação são maiores que os que se integram ao papel de homem.

Essa questão da apropriação do capitalismo sobre os sentimentos é bem evidenciada no livro da Arlie Russell Hochschild “Managed Heart: commercialization of human feelings” (2003). Nesta obra, a autora analisa como a administração contínua das emoções assume a característica de uma jornada de trabalho extra para as mulheres. Como Arlie demonstra, o trabalho das emoções é mais acentuado entre as mulheres do que entre os homens, dado as distintas cobranças e deveres relacionados a cada gênero.

Isso também se reflete da divisão dos trabalhos domésticos. As mulheres, na maioria das vezes, se encontram designadas à essa demanda como se fosse algo de sua natureza, e por essa justificativa, elas sempre assumem a maior parcela da divisão, ou se não, toda ela. A autora toma o devido cuidado em não apresentar uma ideia simplista das relações de gênero. Logicamente, essas relações estão demarcadas por diferentes contextos, e levando em consideração as particularidades de cada indivíduo em dada cultura.

Tanto Hochschild quanto Illouz tratam os aspectos sociológicos do amor por detrás dos imaginários e representações românticas. Como afirmou Nietzsche: “O amor é o estado no qual o homem vê as coisas quase totalmente como não são. A força da ilusão alcança seu ápice aqui, assim como a capacidade para a suavização e para a transfiguração. Quando um homem está apaixonado sua tolerância atinge ao máximo; tolera-se qualquer coisa” (2007).

Em nome do amor, ou desse ideário de amor, muitas relações de poder são justificadas, muitas desigualdades são perpetuadas e muitos direitos são extraídos. Por conta das idealizações, muitos relacionamentos se configuram como celas ou espaços de exploração. Conhecer a origem e a característica dessa utopia de ser construída pode ser o meio para se livrar destes aprisionamentos na vida cotidiana.

Para finalizar, trazemos novamente a imagem do coração vermelho. Que o trajeto de sua linha possa evidenciar não somente no símbolo, mas na vida humana, que o caminho até o “ápice” da ilusão começa nas bases da tolerância. Para que algo se erga sobre nós, é preciso que sejamos o seu suporte.

Referências:

HOCHSCHILD, Arlie R. The commercialization of intimate life: notes from home and work. Berkeley, The University of California Press, 2003.

ILLOUZ, Eva. El consumo de la utopía romántica. El amor y las contradicciones culturales del capitalismo. Madrid-Buenos Aires: Katz, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. SãoPaulo: Editora Escala, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

Sobre as autoras:

Camila Sailer Rafanhim de Borba é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pelo Centro Universitário Unibrasil, Bacharela em Direito; Professora universitária. E-mail: [email protected]

Camila Ribeiro de Almeida Rezende é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR); Mestra em Artes – Teorias e Processos Poéticos Interdisciplinares – pelo Programa de Pós-graduação em Artes, Cultura e Linguagens da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Bacharela em Artes e Design (UFJF) com período de intercâmbio acadêmico em Artes Plásticas na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto – Portugal; Coordenadora de atividades formativas e assessora de escrita no Centro de Assessoria de Publicação Acadêmica (CAPA) da UFPR. E-mail: [email protected].

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